CinemaCultura

O Gambito da Rainha: como transformar o boring em exciting

A excelente minissérie da Netflix, sobre garota prodígio do jogo de xadrez, ajuda a compor um Top10 de obras com a proeza de fazer com que materiais potencialmente entediantes se tornem empolgantes

Eu gostava de xadrez quando adolescente, muito graças a um colega meu de escola, o João Frederico. Ele era melhor no jogo e mais entusiasmado que eu, até levava para a sala de aula jornais para a gente conferir transcrições de partidas dos grandes mestres soviéticos de então (final dos anos 1980). Eu torcia para o Karpov (mais comunista) e ele, para o Kasparov (mais liberal). Tão rindo do quê? Garanto que nossas discussões ingênuas eram mais interessantes que as dos radicais intelectualoides de hoje!

Aliás, reproduzi essa situação no meu pequeno romance; como se passava numa época anterior, as torcidas dos meninos personagens eram para Karpov e o americano Bob Fischer (com a anedota da motivação política mantida). No jogo mesmo, eu ainda era muito ruim na coisa, o João Frederico chegou a me aplicar o xeque-mate do pastor (aquele em quatro lances)! Enfim, depois, perdi contato com meu colega, abandonei o xadrez e o mundo acabou deixando de ter um grande mestre brasileiro em potencial! (só que não)

Agora deu vontade de voltar a jogar, ao assistir à minissérie O Gambito da Rainha (fiquem avisados que esse título não se refere a uma posição do tipo “canguru perneta”, e sim a uma sequência de abertura do xadrez (favor rirem)). Pra mim é o melhor seriado desde Chernobyl! A trama é meio clichê, sobre garota órfã que se revela um gênio do xadrez, mas que, enquanto amadurece e se destaca no meio enxadrista, tem de lidar com sua inadequação social e vícios degradantes (no caso, em calmantes e bebidas). A premissa é semelhante, por exemplo, à do Dr. House, à do jovem de Gênio Indomável (Good Will Hunting) e de mais tantos brilhantes e desajustados personagens da ficção (e até da vida real, como Amy Winehouse, entre outros).

No entanto, a minissérie da Netflix deixa a sua marca com um roteiro envolvente (no qual, apesar da possibilidade de ficar muito pesada, há um equilíbrio de registro), uma produção de época impecável (o episódio na Moscou soviética é um primor de direção de arte), um bom comentário sobre preconceito de gênero e interpretações marcantes. A jovem atriz Anya Taylor-Joy consegue transmitir com seus olhares arregalados não só seu espírito atribulado, mas também a quantas anda a partida que está a disputar, já que o jogo propriamente dito raramente é exibido em detalhes. Isso porque, por mais que a gente da audiência conheça as regras básicas do xadrez, tem que ser um exímio especialista para apontar, só de olhar para o tabuleiro, por exemplo, quem está ganhando ou perdendo.

Esse, de fato, é, pra mim, o feito mais admirável de O Gambito da Rainha. Eu gosto de xadrez, mas tenho que admitir que, para quem não é do métier, é um troço paradão e sem possibilidade de acompanhar de forma compreensível. E é aí que a série toma uso de vários recursos criativos para transmitir o que está acontecendo, com suspense, tensão, emoção, e até uma percepção de dinamismo. Ora ouvimos a fala posterior da protagonista Liz Harmon relatando a alguém as idas e vindas do certame, ora há um narrador oficial do torneio apresentando todo o andamento e os riscos envolvidos em cada movimento. Na maior parte das vezes, porém, o diretor se apoia nas caras e bocas: nos sustos e frustrações dos oponentes e, como já disse, no indefectível zoião da atriz, do qual já sinto saudade!

Considero uma arte essa de pegar materiais, em tese, “oh, no, so boring!” e transformar em algo “oh, yeah, so exciting!” Isso sim é pura magia do cinema! Será que rola um Top10 de obras audiovisuais que cometem essa façanha? Vamos tentar! (Obs: antes que as associações dos profissionais dos objetos mencionados me acusem de preconceito ao me referir a eles como entediantes, saibam que estou considerando meros padrões cinematográficos, OK? E que se trata de uma brincadeira, claro!)

Começamos considerando as obras já citadas. Pensei em incluir Gênio Indomável (1997), no qual Matt Damon é uma virtuose rebelde da matemática. Mas nesse caso, o foco do filme logo sai dessa ciência com fama de difícil e se cola no lado humano. Preferi elencar o mais recente Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures, 2016), em que a matemática da pioneira mulher negra na NASA salva o fatídico primeiro voo para a lua da Apolo 11, na última hora. Bem legal, mas o cineasta deve ter fantasiado a situação real pra ficar mais emocionante, né?

O mesmo ocorre em outro filme, o vencedor do Oscar de Ben Affleck, Argo (2012), sobre um resgate real de reféns americanos no Irã. Tudo bem que não dá pra chamar uma operação arriscada dessa de entediante, mas me pareceu que, no episódio factual, o plano correu bem demais para um script de cinema. Tem que dar muitas coisas erradas pra garantir a dramaturgia! Então, para não desrespeitar a história, Affleck abusou da montagem para passar a percepção que foi tudo por um fio. Lembrei-me do programa Master Chef: quando o tempo da preparação de pratos está se esgotando, a edição nos dá a impressão que os participantes sempre finalizam o prato no derradeiríssimo segundo, o que quase nunca me parece ser o caso.

Entre os supracitados, acho que também dá para incluir no ranking a série House, afinal deduzir diagnósticos na vida real não é exatamente algo eletrizante. Mas as pioras inesperadas dos pacientes, os procedimentos radicais de emergência e a bomba-relógio da doença se aproximando do óbito dos pacientes dão bastante conta de acrescentar muita emoção aos episódios da excelente série.

E já que incluí matemática e medicina entre exemplos de coisas entediantes, também vou colocar a engenharia e a física da maravilhosa série Chernobyl (2019). Não há nada mais complexo e hermético a leigos do que a explicação técnica do que houve no acidente nuclear dos anos 1980. No entanto, a obra, ao encenar o julgamento do evento, criou um sistema com um painel e placas vermelhas e azuis que, não só finalmente faz a gente entender a sequência que levou ao desastre, como escancara a enorme dimensão até então impensável da coisa. É arrebatador!

E, claro, sobre campos da ciência complexos, não posso deixar de fora as brincadeiras de Christopher Nolan com as teorias do continuum de espaço-tempo, como no recente filme Tenet (resenhado aqui). Resolvi elencar a ficção científica Interestelar, que além de ser grandioso e tecnicamente lindo, explora efeitos físicos de cair o queixo de buracos negros, buracos de minhoca e que tais. A gente pode não entender tudo, mas não dá pra não ficar impressionado!

Por fim, pra não dizer que puxei sardinha para a minha área de Letras, pensei em algo bem aborrecedor para se adaptar para o cinema: uma trama 100% baseada em uma troca de cartas! Palavras pra cá, palavras pra lá, e o que mostramos na tela?

Mas é o que acontece em alguns filmes, como a ótima animação Mary & Max (2009). Preferi colocar na lista um mais antigo que me marcou, com um título (brasileiro) já desanimador: Nunca te vi, sempre te amei (84 Charing Cross Road, 1987), sobre um livreiro e uma escritora que trocam cartas a vida toda sem nunca se encontrar. O filme nem se esforça para dar ares mais dinâmicos à premissa, mas então por que ele nunca saiu da minha memória afetiva? Tudo bem que eu adoro o tema do amor platônico e irrealizável, mas não teria sido um pouco demais? Bom, na falta de explicação lógica, vai pro meu ranking e pronto!

Voltando para a categoria de jogos, como o xadrez de Liz Harmon, um outro bem recorrente em filmes americanos é o pôquer. Sério que vocês acham emocionante um jogo de cartas cujo único propósito é ter ou não uma mão melhor que o oponente? Pois é, não há outra alternativa que possa dar margem a sacadas e reviravoltas inesperadas: ou você tem uma mão superior ou não!  Mesmo assim, o cinema gringo está cheio de filmes com esse popular jogo, a maioria se apoiando nesse suspense básico. Destaco aqui 007: Cassino Royale (2006), que ao menos criou uma cena aflitiva em que o famoso agente é envenenado no meio da partida, deixando o jogo, digamos, mais animadinho. Por essa boa sequência, Bond, James Bond, garantiu um lugar no meu ranking.

Enfim, chegamos às cerejas do meu bolo. Filmes que transformam atividades realmente insuspeitas em eventos eletrizantes. A Datilógrafa (Populaire, 2012) é uma comédia romântica francesa sobre uma moça dos anos 1950 que participa de um concurso de velocidade de datilografia. Isso mesmo, incrível como o longa torna essa competição tensa e frenética, só vendo! Isso, somado à nostalgia à moda antiga da romântica Paris dos anos 1950, e esse filme se tornou um dos meus preferidos ever! Pena que é tão difícil de achar pra eu rever.

Mas o número um do meu ranking reservei para Whiplash: Em Busca da Perfeição. Nele, um jovem baterista de jazz se submete à tutela de um conceituado professor (o ator J.K. Simmons, vencedor do Oscar) que se revela um perfeccionista ao extremo, até o nível do assédio moral (uma espécie de Capital Nascimento do jazz, pode ser?). E aí que: sabe os solos intermináveis de batera em shows de rock, que significam o momento de a gente ir ao banheiro? Nesse thriller, esses solos ganham ares épicos, uma jornada radical à procura da batida absolutamente perfeita, a qualquer custo. Não menos que excelente!

Segue, então, meu Top10 “do chato ao empolgante”.

  1. Whiplash – Em Busca da Perfeição (2014) (bateria)
  2. O Gambito da Rainha (minissérie, 2020) (xadrez)
  3. A Datilógrafa (Populaire) (2012) (datilografia)
  4. Chernobyl (minissérie, 2019) (física nuclear)
  5. Interestelar (2014) (astronomia)
  6. 007: Cassino Royale (2006) (pôquer)
  7. House (série, 2004-2012) (medicina diagnóstica)
  8. Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures) (2016) (matemática)
  9. Argo (2012) (operação praticamente sem falhas)
  10. Nunca te vi, sempre te amei (84 Charing Cross Road) (1987) (troca de cartas)

E agora, depois de tornar partidas de xadrez emocionantes, o que falta aos roteiristas? Pensem vocês em alguma possibilidade! Uma chocante competição de tricô? Uma eletrizante pesquisa biológica catalogando espécies de pulgões em pequizeiros (como já vi em uma aula de EPB)? Uma treta arrebatadora entre cabeças-ocas radicais autoproclamados de direita e de esquerda? Não, definitivamente, nem Hitchcock conseguiria tirar essa última do nível do so booooooooriiiiiing!

Vladimir Batista

Vladimir Batista é escritor, professor e cinéfilo. Após 25 anos trabalhando como engenheiro em multinacionais de tecnologia, resolveu abraçar sua paixão de infância pelas palavras e por contar histórias e segue carreira na área de Letras e Literatura. Gosta de filmes e livros de gêneros variados, atendeu a vários cursos e oficinas de roteiros de cinema, de série e de técnicas de romance e tem um livro publicado pela Amazon: “O Amor na Nuvem De Magalhães”. Vladimir é casado, vegetariano e “pai” de cachorros resgatados.

Artigos relacionados

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo
Send this to a friend