Macondo é aqui

Interessante e reveladora entrevista de André Singer publicada no site da BBC dá conta do estado de espírito da intelectualidade petista. Singer, criador do termo “lulismo”, que traduz a conexão de Lula e a base da sociedade, vê com preocupação a queda de popularidade do presidente junto à chamada “classe média baixa”, pessoas que têm renda entre 2 e 5 salários-mínimos. Atribui essa queda à desestruturação causada pelo que ele chama de “capitalismo contemporâneo”. Vale a pena transcrever esse trecho, que é chave para entender a desorientação do PT nesse momento:
O capitalismo contemporâneo está dissolvendo a antiga classe trabalhadora, à medida que vai havendo a desindustrialização. O PT é um partido herdeiro da tradição da classe trabalhadora organizada. E ele tem dificuldades diante de uma classe trabalhadora profundamente desorganizada, eu diria até estruturalmente desorganizada. Porque é isso que o capitalismo contemporâneo está fazendo.
E aí vem o chororô da precarização do trabalho, que o trabalhador (que Jessé Souza chama de “pobre de direita”) não sabe que está sendo explorado etc. A chave de tudo está em que o PT nasceu nos sindicatos, entre trabalhadores de grandes e poucas empresas gigantes, e simplesmente não está conseguindo se adaptar à nova realidade da uberização do mundo do trabalho. Aquele trabalhador via o empregador como o inimigo, fazia algum sentido falar em “luta de classes”. O motoqueiro do iFood, por outro lado, não tem esse “inimigo” tão claro, ele se vê como o próprio patrão, não tem sentido ficar brigando com uma plataforma tecnológica que lhe permite trabalhar “por conta própria”.
A chamada “crise do PIX” precisa ser entendida nesse contexto. Houve uma revolta justamente desse “trabalhador precarizado”, que tem uma renda incerta sem quase nenhum benefício social garantido. Ele não está na base da pirâmide e, portanto, não é elegível a benefícios sociais, e tampouco é classe média alta, quando as suas necessidades na pirâmide de Maslow estão relativamente bem satisfeitas. Não tendo um patrão contra quem se revoltar, esse trabalhador se revolta contra o Estado, que lhe tira, via impostos, o pouco que ganha, devolvendo muito pouco em troca. Quando esse trabalhador ouve dizer que o Estado vai lhe tirar mais um pouco, a revolta é instantânea.
O que o PT deveria fazer diante desse cenário? Antes de continuar, vou aqui transcrever um dos trechos mais brilhantes, na minha opinião, do romance mais famoso de Gabriel Garcia Márquez, Cem Anos de Solidão, que foi recentemente transformada em série na Netflix. Trata-se da cena em que o coronel Aureliano Buendía recebe uma comissão de delegados de seu partido, o liberal, que está em guerra civil contra os conservadores. Esses delegados querem arrancar um compromisso do coronel para aumentar as chances de ganhar a guerra. Segue o trecho:
(os delegados) Pediam, em primeiro lugar, que ele renunciasse à revisão dos títulos de propriedade da terra para recuperar o apoio dos latifundiários liberais. Pediam, em segundo lugar, que renunciasse à luta contra a influência clerical para obter o apoio do povo católico. Pediam, por último, que renunciasse às aspirações de igualdade de direitos entre os filhos naturais e os legítimos, para preservar a integridade dos lares.
– Quer dizer – sorriu o coronel Aureliano Buendía quando terminou a leitura – que só estamos lutando pelo poder.
– São reformas táticas – replicou um dos delegados. – Por enquanto, o essencial é ampliar a base popular da guerra. Depois, veremos.
Um dos assessores políticos do coronel Aureliano Buendía se apressou a intervir.
– É um contrassenso – disse. – Se essas reformas são boas, quer dizer que bom é o regime conservador. Se com elas conseguiremos ampliar a base popular da guerra, como dizem os senhores, quer dizer que o regime conservador tem uma ampla base popular. Quer dizer, em síntese, que durante quase vinte anos estivemos lutando contra os sentimentos da nação.
Ia continuar, mas o coronel Aureliano Buendía interrompeu-o com um sinal. “Não perca tempo, doutor”, disse. “O importante é que a partir deste momento, estamos lutando só pelo poder”. Sem deixar de sorrir, tomou os papeis que os delegados entregaram a ele e se dispôs a assinar.
– E já que é assim – concluiu –, não temos nenhum inconveniente em assinar.
Seus homens se olharam consternados.
André Singer é um desse homens consternados com Lula. É o que se depreende de outro trecho chave da entrevista, em que Singer afirma:
O PT não pode aderir a uma ideologia do empreendedorismo do salve-se quem puder. Isso é contra os seus próprios princípios. É contra aquilo que ele veio para propor para a sociedade brasileira.
O PT está descobrindo que, como disse um assessor de Buendía, “é o regime conservador que tem uma ampla base popular”. Adotar o programa do regime conservador é um contrassenso, ou “contra os seus próprios princípios”, como diz Singer. A não ser…
A não ser que a questão seja pura e somente a “luta pelo poder”, como reconheceu Aureliano Buendía. Assim, por exemplo, Guilherme Boulos não se envergonhou de vestir o figurino de “defensor dos empreendedores” na reta final de sua campanha pela prefeitura de São Paulo, mesmo que isso fosse uma contradição em termos em relação à sua atuação à frente do MTST. O governo Lula, por sua vez, tem tentado resolver a quadratura do círculo, ao procurar enquadrar os motoristas de Uber e entregadores do iFood em um regime sindical próprio de trabalhadores de grandes fábricas.
O fato é que, como diz André Singer, com razão, essa adaptação do PT contradiz toda a sua história, e é, como afirmou o assessor de Buendía, o reconhecimento de que o PT vem lutando “contra os sentimentos da nação”.
Lula, por sua vez, assim como Aureliano Buendía, sabe que tudo não passa de “luta pelo poder”. Que se danem os princípios, tão caros a intelectuais como André Singer. O problema do PT é que essa contradição interna se resolve na base da mão forte do seu líder. Na cena acima, o coronel Gerineldo Márquez, o mais próximo auxiliar de Aureliano, tenta impedir a assinatura dos papeis com as concessões, afirmando que aquilo era uma traição aos princípios liberais. Aureliano Buendía, sem pestanejar, pede as armas de Gerineldo, e o encaminha a uma corte marcial, que o condenará à morte por traição.
Lula é essa liderança para quem o poder vale mais do que qualquer coisa, e é o que empurra o PT. Sem Lula, o PT se perderá em seus “princípios” cada vez mais descolados da base da sociedade. André Singer afirma:
Quando Lula não for mais candidato, vai se formar um vácuo. E como ele vai ser preenchido, eu não sei. […] O problema, e eu diria que acontece sempre que você tem a situação de uma liderança carismática, é a sucessão dessa liderança carismática. Sempre é, de certa forma, traumático.
Lula é, sem dúvida, uma liderança carismática. Mas também é alguém para quem o poder é mais importante que todo o resto. Não há princípios, há apenas a luta pelo poder. Macondo é aqui.