Política

A Guerra na Ucrânia – Capítulo 8: As Negociações de Paz

Em sua edição de 04/09/2014, a Economist colocou na capa o presidente da Ucrânia, Vladimir Putin, em um tabuleiro de xadrez. A conclusão da matéria de capa era melancólica: a triste realidade era que Vladimir Putin estava vencendo na Ucrânia, e o Ocidente deveria se preparar para uma luta de longo prazo.

Não por coincidência, o timing dessa reportagem coincide com a assinatura do primeiro Acordo de Minsk. Cinco meses depois do início da insurgência no Donbas, os separatistas, com o firme apoio de Putin, estavam ganhando a guerra.

Até um mês antes, o cenário parecia o justo oposto. Em sua edição de 04/08/2014, a Economist descreve como as forças do governo de Petro Poroshenko estavam próximas de voltar a estabelecer algum controle sobre a fronteira com a Rússia, o que poderia impedir o Kremlin de continuar a enviar ajuda aos separatistas. A reportagem termina com uma questão em aberto:

Ele (Putin) já demonstrou que fará esforços consideráveis ​​para impedir que Poroshenko declare vitória e exclua a Rússia de qualquer acordo futuro. Se isso significa uma intervenção ainda mais direta — 15.000 tropas russas estão localizadas ameaçadoramente na fronteira — talvez nem mesmo Putin saiba ainda”.

Menos de um mês depois, a “invasão furtiva” da Rússia no território ucraniano, como a ela se referiu a Economist na reportagem de capa, teve início, definindo rapidamente o destino do Donbas. Tropas e equipamentos russos reforçaram várias frentes, e territórios foram reconquistados pelos separatistas. Não restava outra alternativa ao presidente Poroshenko a não ser tentar chegar a um acordo com Putin. Este acordo foi assinado em 05/09/2014 em Minsk, capital da Bielorrússia, sob os auspícios da OSCE (Organização de Segurança e Cooperação da Europa), e ficou conhecido como Acordo de Minsk I.

O Acordo de Minsk I

Este primeiro protocolo era composto por 12 pontos, que podemos classificar em 3 grandes categorias: 1) os compromissos de segurança; 2) os compromissos políticos e 3) outros compromissos. Essa classificação é importante porque é aqui que reside a charada do “ovo e da galinha” deste acordo e do seu sucedâneo: a ordem em que compromissos de segurança e políticos deveriam ser cumpridos.

Os compromissos de segurança são os seguintes:

1 e 2. Cessar-fogo e monitoramento do cessar-fogo por parte da OSCE;

4. Garantir o monitoramento permanente na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia e a sua verificação pela OSCE, juntamente com a criação de uma área de segurança nas regiões fronteiriças da Ucrânia e da Federação Russa.

10. Remover formações militares ilegais, equipamentos militares, bem como militantes e mercenários do território da Ucrânia.

12. Fornecer garantias de segurança pessoal aos participantes das consultas.

Desses pontos, os essenciais para a Ucrânia são o 4 e o 10, que garantem a retirada das tropas russas e de mercenários de seu território, além do equipamento militar, e devolve sua fronteira com a Rússia, com monitoramento por parte da OSCE.

Já os compromissos políticos são os seguintes:

3. Implementar a descentralização do poder, inclusive por meio da promulgação da Lei “Com relação ao status temporário do autogoverno local em certas áreas das regiões de Donetsk e Lugansk” (Lei sobre Status Especial).

5. Libertar imediatamente todos os reféns e pessoas detidas ilegalmente.

6. Promulgar uma lei que proíba o julgamento e a punição de pessoas em conexão com os eventos ocorridos em certas áreas das regiões de Donetsk e Lugansk, na Ucrânia.

9. Garantir a realização de eleições locais antecipadas de acordo com a Lei “Com relação ao status temporário de autogoverno local em certas áreas das regiões de Donetsk e Lugansk” (Lei sobre Status Especial).

Desses pontos, os essenciais para a Rússia são o 3 e o 9, que se referem a uma lei a ser inscrita na constituição ucraniana, prevendo a autonomia da região do Donbas, além de eleições antecipadas nessa região.

Note, portanto, que os compromissos de Minsk opõem compromissos de segurança que interessam à Ucrânia e não interessam à Rússia, e compromissos políticos que interessam à Rússia e não interessam à Ucrânia. É no choque desses dois tipos de compromisso que os acordos de Minsk, e de resto qualquer tentativa de acordo, não avançaram.

Em 17/09/2014, 12 dias após a assinatura do acordo, o parlamento ucraniano aprovou uma lei de autonomia (texto completo aqui – em ucraniano), de caráter temporário, e que foi renovada anualmente até 31/12/2022. Depois disso, obviamente, não houve mais renovações em função da invasão russa. Essa lei tinha caráter temporário, e sua inscrição definitiva na constituição ucraniana dependia justamente do avanço nos compromissos de segurança do acordo, o que nunca aconteceu. Essa lei previa, entre outras coisas, a anistia aos separatistas (artigo 3), o direito à autodeterminação linguística (artigo 4), a nomeação local de juízes e promotores (artigo 5) e a criação de uma polícia local (artigo 9). Por fim, em suas disposições transitórias, previa eleições antecipadas locais para o dia 07/12/2014, sob monitoramento de observadores internacionais. Tudo, portanto, de acordo com o protocolo aprovado em Minsk.

Além disso, no mesmo dia, o parlamento ucraniano também passou uma lei de anistia aos separatistas, conforme previsto no ponto 6 do Protocolo.

Se a Ucrânia avançou em alguns dos pontos mais sensíveis desse primeiro acordo, o que deu errado? Em sua edição de 13/09/2014, a Economist cita um líder separatista, que teria dito que

“[…] à frente temos uma longa luta política e militar. O Estado rebelde da Novorossiya deve, no final, se estender por toda a costa do Mar Negro até a fronteira com a Romênia e a Moldávia, e, no final, passar a fazer parte da Rússia”.

O problema, como se vê, é que, em realidade, os separatistas, certamente insuflados por Putin, não queriam realmente uma autonomia limitada. Começaram a organizar um Estado paralelo, incluindo o re-registro de empresas da região sob o novo governo e a coleta de impostos, constituindo um verdadeiro Estado paralelo. Eleições foram realizadas nos territórios ocupados pelos separatistas em 03/11, sem a supervisão da OSCE ou outros órgãos internacionais, e antes da data definida na lei aprovada no Congresso ucraniano (07/12), sendo “eleitos” fantoches de Moscou para liderar as “Repúblicas” de Donetsk e Luhansk. Todos esses movimentos se constituíram em uma clara transgressão ao espírito de Minsk.

Em linha com o espírito do estabelecimento da Novorossiya, os separatistas atacaram Mariupol em meados de janeiro de 2015 e Debaltsevo no início de fevereiro, o que levou Angela Merkel e François Holland a patrocinaram um segundo acordo, conhecido como Acordo de Minsk II, assinado em 12/02/2015. Este é o acordo que seria lembrado daí em diante por todas as partes envolvidas, com um lado acusando o outro de descumpri-lo.

O presidente russo Vladimir Putin, o então presidente francês François Hollande, a então chanceler alemã Angela Merkel e o então presidente ucraniano Petro Poroshenko em Minsk, Bielorrússia, em 11 de fevereiro de 2015. Desta foto, somente Putin continua firme e forte. Fonte: Kiev Independent

O Acordo de Minsk II

A segunda versão do Acordo de Minsk é bem mais detalhada, procurando preencher as lacunas de interpretação deixadas pela primeira versão, mas prevê basicamente os mesmos pontos. Por exemplo, o item 9 do primeiro acordo, que previa eleições antecipadas nas províncias, passou a ser escrito da seguinte forma:

“4. No primeiro dia após a retirada, iniciar um diálogo sobre os procedimentos para a realização de eleições locais, de acordo com a legislação ucraniana e a Lei “Sobre a Ordem Temporária de Autonomia Local em Certas Regiões das Províncias de Donetsk e Luhansk”, bem como sobre o futuro regime dessas regiões, de acordo com esta Lei. Imediatamente, no máximo 30 dias a partir da data de assinatura deste documento, adotar uma resolução da Verkhovna Rada (Congresso) da Ucrânia especificando um território sujeito ao regime especial, de acordo com a Lei “Sobre a Ordem Temporária de Autonomia Local em Certas Regiões das Províncias de Donetsk e Luhansk”, com base na diretriz estabelecida no Memorando de Minsk de 19 de setembro de 2014.”

O problema é que a retirada prevista neste item, descrita em detalhe no item 2, nunca de fato aconteceu por parte de nenhum dos dois lados. Pelo contrário. Apenas 3 dias depois de assinado o acordo, que previa um cessar-fogo inicial, os separatistas avançaram e conquistaram a cidade de Debaltseve, um importante hub logístico e onde milhares de soldados ucranianos estavam estacionados, dos quais 110 foram mortos no ataque. O governo ucraniano precisou ordenar uma retirada atabalhoada para evitar mais baixas.

Além disso, o documento sofre de contradições internas, inerentes aos interesses antagônicos de Kiev e Moscou. O cientista político Duncan Allan assim descreve o que ele chama de “paradoxo” dos acordos de Minsk:

“Minsk-2 pode, portanto, ser lido de maneiras bastante diferentes. A versão da Ucrânia coloca o restabelecimento do controle no Leste antes de um acordo político. A Rússia evacuaria suas tropas e devolveria a fronteira à Ucrânia. As eleições seriam realizadas de acordo com os padrões da OSCE/ODIHR. O Donbas seria reintegrado em conformidade com o programa nacional de descentralização (com alguns poderes extras) e subordinado novamente às autoridades de Kiev. Como resultado, a Ucrânia seria restaurada como um estado soberano. A versão russa de Minsk-2 inverte elementos-chave dessa sequência. Um acordo político finalizado viria antes que a Ucrânia retomasse o controle do Donbas: eleições seriam realizadas na DNR e LNR; e Kiev concordaria com uma devolução abrangente de poder a esses regimes. Isso consolidaria pequenos estados controlados pela Rússia, quebrando a espinha dorsal do estado ucraniano, impedindo as autoridades centrais de governar o país como uma unidade integrada e torpedeando sua integração ao Ocidente. Só então a Ucrânia recuperaria o controlo sobre a fronteira, embora seja discutível se a Rússia o permitiria. Em suma, Minsk-2 apoia visões mutuamente exclusivas de soberania: ou a Ucrânia é soberana (interpretação da Ucrânia), ou não é (interpretação da Rússia) – este é o “paradoxo de Minsk”.

O grande problema deste acordo, como de resto de qualquer negociação envolvendo a Rússia, é que a palavra “autonomia” tem significados diferentes para Kiev e para o Kremlin. Para os ucranianos, autonomia significa algum grau de autogovernança, mas dentro do marco da Constituição ucraniana. Para os russos, autonomia significa independência do governo central e dependência de Moscou.

Dois dias depois da assinatura do acordo, Putin assim se referiu a ele:

Talvez nem todos tenham percebido ainda, mas isso é extremamente importante – o lado ucraniano, as autoridades de Kiev, de fato, concordaram em implementar uma profunda reforma constitucional para atender aos pedidos de autossuficiência [samostoyaltelnost] – seja qual for o nome: descentralização, autonomização, federalização – de certas regiões do seu país. Este é o significado essencial e mais profundo da decisão tomada pelas autoridades.”

Segundo Duncan Allan,

A implementação dessas medidas destruiria, na prática, a Ucrânia como país soberano. As Repúblicas Populares de Dontesk e Luhansk seriam reincorporadas à Ucrânia, mas como entidades políticas, econômicas e jurídicas distintas, vinculadas à Rússia – introduzindo assim um Cavalo de Troia constitucional que daria ao Kremlin uma presença duradoura no sistema político ucraniano e impediria as autoridades de Kiev de governar o país como um todo integrado. De fato, uma transferência radical de poder para o Donbas poderia levar outras regiões a pressionar por poderes semelhantes, causando o desmembramento da autoridade central e, efetivamente, a balcanização da Ucrânia.”

Assim, o acordo de Minsk II, da forma como a Rússia o entende, seria o fim da soberania ucraniana. Sendo assim, cabe a questão: por que, então, afinal, Viktor Poroshenko aceitou assiná-lo?

Em primeiro lugar, como vimos, a interpretação sobre a autonomia das províncias do Donbas era mais limitada do que aquela almejada pelos separatistas ou pela Rússia, que queriam verdadeiras repúblicas independentes. Em segundo lugar, Poroshenko acreditou nas garantias de segurança oferecidas pela OSCE, que ficou responsável pelo monitoramento do cessar-fogo, mas o acesso dos representantes da OSCE no lado dos separatistas sempre foi muito limitado. Por fim, como disse o próprio Poroshenko, “nossa tarefa era, primeiro, evitar a ameaça ou pelo menos atrasar a guerra. Conseguimos oito anos para restaurar o crescimento econômico e fortalecer as Forças Armadas”. Claro, pode ter sido apenas uma conveniente leitura ex-post do ex-presidente.

Também havia interesse por parte de Angela Merkel em forçar uma solução para o conflito, de modo a agradar a Vladimir Putin, com quem tinha interesses econômicos em comum, principalmente a ampliação do gasoduto Nord Stream. Foi o chanceler alemão Frank-Walter Steinmeier que formulou o que ficou conhecido como “Fórmula Steinmeier” para superar o conflito de interpretações do Minsk II.

A Fórmula Steinmeier e o movimento “Capitulação Não!”

Uma tentativa de resolver o “paradoxo de Minsk” foi a chamada “Fórmula Steinmeier”.

Frank-Walter Steinmeier era o chanceler da Alemanha à época da assinatura de Minsk II. Seu nome ficou ligado a uma fórmula de implementação do acordo, que seguia mais ou menos o seguinte roteiro: 1) eleições a serem realizadas nos territórios controlados pelos separatistas sob a legislação ucraniana e a supervisão da OSCE (Organização de Segurança e Cooperação Europeia) e 2) se a OSCE considerar a votação livre e justa, será iniciado um status especial de autogoverno para os territórios.

Esta fórmula tem dois problemas, aos olhos de muitos ucranianos: 1) a definição do que vem a ser “autogoverno”, conforme discutido acima, e principalmente 2) eleições enquanto as tropas russas não deixam o país, o que é visto como uma capitulação. Tratava-se de um roteiro visto como muito favorável à Rússia.

Para a surpresa de muitos ucranianos, Zelensky convocou uma coletiva de imprensa em 01/10/2019 para anunciar que a Ucrânia havia subscrito a Fórmula Steinmeier, provavelmente como uma forma de colocar novamente em andamento as conversações de paz após 5 anos de congelamento.

íntegra do texto acordado no dia 01/10/2019 é a seguinte:

A lei (de autonomia das províncias) entra em vigor às 20h00, horário local, no dia da votação para as eleições locais antecipadas em determinados distritos das províncias de Donetsk e Luhansk, que são designadas e realizadas de acordo com a Constituição da Ucrânia e uma lei especial da Ucrânia que rege as eleições locais nos distritos mencionados. A lei atuará provisoriamente até a data da publicação das conclusões finais da Missão de Observação Eleitoral do ODIHR da OSCE, com base na prática estabelecida do ODIHR da OSCE, sobre a conformidade das eleições locais antecipadas com a OSCE e os padrões internacionais para eleições democráticas, bem como com a legislação ucraniana, e que responderá à questão acordada no formato Normandia, aprovada pelo Grupo de Contato Tripartite e encaminhada pela Ucrânia em seu convite e pelo Presidente em exercício da OSCE ao Diretor do ODIHR.

Esta Lei continuará a ser aplicada de forma contínua se, de acordo com a prática estabelecida, o Relatório Final do ODIHR da OSCE concluir que as eleições locais antecipadas em certas áreas das províncias de Donetsk e Luhansk foram, de modo geral, conduzidas de acordo com os padrões da OSCE e a legislação ucraniana, respondendo à questão acordada no formato Normandia, aprovado pelo Grupo de Contato Tripartite e encaminhado pela Ucrânia, a seu convite, e pelo Presidente em exercício da OSCE ao Diretor do ODIHR.

A parte ucraniana aceita o texto desta fórmula.

Respeitosamente,

Representante da Ucrânia no Grupo de Contato Trilateral, Leonid Kuchma

Nota: o formato Normandia citado no texto refere-se à reunião de chefes de estado de Ucrânia, Rússia, França e Alemanha.

Como podemos observar, não há menção a qualquer medida de segurança, seja a retirada de tropas russas, e muito menos o retorno do controle da fronteira com a Rússia para as forças ucranianas.

Naquela mesma coletiva, o presidente ucraniano afirmou que “Não haverá eleições sob a mira de uma arma. Não haverá eleições lá se as tropas ainda estiverem lá”, o que, afinal, não estava previsto na Fórmula. De qualquer forma, iniciaram-se protestos em Kiev e outras cidades da Ucrânia logo depois desse anúncio, tal a ojeriza que a Fórmula causava na opinião pública ucraniana. Este movimento ficou conhecido como “Capitulação Não!”, e mobilizou milhares de manifestantes em toda a Ucrânia. Zelensky esclarece que a adoção da Fórmula não significa que estaria disposto a ceder territórios, e que qualquer eleição no Donbas deve ser precedida pelo desarmamento dos separatistas e retirada de tropas russas.

Aqui, vale uma interrupção para retomar o documentário do Brasil Paralelo que inspirou essa série. Em determinado momento, o narrador afirma que, no final de 2019, Zelensky chegou perto de firmar um acordo de paz, mas teve que dar meia-volta (há uma acusação velada de covardia por parte do presidente ucraniano) porque teria sido pressionado por grupos nacionalistas radicais neonazistas. O fato é que estes grupos estavam obviamente nos protestos, mas não eram os únicos. Seria o mesmo que caracterizar os protestos contra a ex-presidente Dilma Rousseff como sendo exclusivamente de grupos de “extrema-direita”. Sim, esses grupos, que pregavam um golpe militar, estavam lá também. Mas não eram, de maneira alguma, a maior parte dos manifestantes, e estavam longe de definir a natureza dos protestos.

A esse respeito, podemos ler, em texto da Rádio Europa Livre, o seguinte:

Alguns veteranos ucranianos e partidos políticos de oposição, bem como alguns grupos da sociedade civil e ultranacionalistas ucranianos, se posicionaram contra a Fórmula Steinmeier ou qualquer acordo de paz que pudesse beneficiar a Rússia. […] Muitos desses críticos apoiam o ex-presidente Petro Poroshenko, que sugeriu que mesmo a menor concessão à Rússia significaria capitulação. O ex-assessor de política externa de Poroshenko, Kostyantyn Yeliseyev, escreveu no Twitter em 1º de outubro que, para a Ucrânia, assinar a Fórmula Steinmeier ‘é parar de lutar e se render’. Após a coletiva de imprensa de Zelensky, um grupo de nacionalistas de extrema direita protestou contra sua decisão com cartazes que diziam “sem capitulação”, alguns o acusando de traição, e um grupo de membros da sociedade civil se reuniu na Praça da Independência, no centro de Kiev, a Maidan, para criticar a medida.

Note como há menção a grupos “nacionalistas de extrema-direita”, mas há também outros atores, como veteranos de guerra, grupos da sociedade civil e aliados do ex-presidente Poroshenko, que pode ser tudo, menos um político de extrema-direita. Assim, é muito reducionista a visão de que os grupos ultranacionalistas dominam a vida política da Ucrânia. A verdade é que pouca gente, na Ucrânia, confiava nas boas intenções da Rússia, e admitir eleições antes de reaver os territórios tomados, como previa a Fórmula Steinmeier, simplesmente não parecia ser uma boa ideia. Como descreve uma matéria da Economist:

Putin quer que o Donbas receba um status especial na Constituição ucraniana, desde que Moscou mantenha sua influência sobre o território e possa usá-la para aumentar a pressão sobre Kiev quando quiser. A Ucrânia apresentou a possibilidade de realizar eleições locais no Donbas e conceder-lhe mais autonomia em questões locais, desde que as eleições sejam livres e justas. Para que isso aconteça, no entanto, a Ucrânia e seus aliados insistem que a Rússia deve retirar seu equipamento militar do Donbas; que os moradores da região devem estar livres de militantes violentos; que aqueles que foram forçados a fugir do Donbas devem ter permissão para votar; e que a Ucrânia deve ser capaz de controlar sua fronteira externa com a Rússia.”

Zelensky deixou claro, logo no seu discurso de inauguração do mandato (veremos este discurso no próximo capítulo), que não abriria mão de territórios. Este ponto nunca esteve em discussão, o que significa que a Fórmula Steinmeier não poderia significar, na prática, a perda do Donbas. Não houve, portanto, um “recuo” por parte de Zelensky, sob pressão de grupos radicais. O que houve foi a clara intenção de Putin de forçar uma “solução” que alijava essa região da unidade territorial ucraniana, pois as eleições se dariam “sob a mira de fuzis” dos separatistas apoiados por tropas de Putin.

O artigo The Tragedy of Volodymyr Zelensky, do jornalista Michael Desch, em que se baseou o documentário do Brasil Paralelo, é generoso com Putin nesse aspecto. O jornalista afirma que, na virada de 2019 para 2020, a Rússia parecia “inclinada a negociações”. Evidências dessa “inclinação” seriam uma declaração do porta-voz de Putin a respeito das eleições de 2019 (“queremos a vitória de um candidato disposto a encerrar o conflito”), e que o próprio Putin defendeu que “o Donbas é um assunto interno do Estado ucraniano” até às vésperas da invasão, quando só então defendeu a independência da região. Resta saber se o jornalista é ingênuo ou mal-intencionado para comprar essas posições russas a valor de face.

Zelensky esperava que a concordância com a Fórmula Steinmeier funcionasse como um gesto de boa-vontade, de forma a levar Putin a se reunir em uma conferência de alto nível com os chefes de Estado da Alemanha e França, no formato Normandia. Foi o que aconteceu em Paris, em 09/12/2019.

As negociações de Paris

Antes de avançarmos para as conversações em Paris, será útil recuperar o que disse Zelensky em seu discurso de posse a respeito do conflito no Donbas.

“No entanto, nossa primeira tarefa é o cessar-fogo no Donbas. Muitas vezes me perguntam: qual preço você está pronto para pagar pelo cessar-fogo? É uma pergunta estranha. Qual preço você está pronto para pagar pelas vidas de seus entes queridos? Posso garantir que estou pronto para pagar qualquer preço para impedir a morte de nossos heróis. Definitivamente não tenho medo de tomar decisões difíceis e estou pronto para perder minha fama, minha popularidade e, se necessário — sem qualquer hesitação, meu cargo, para trazer a paz, contanto que não desistamos de nossos territórios.”

Volto aqui novamente ao documentário do Brasil Paralelo, que cita justamente o trecho acima, em que Zelensky se compromete a fazer de tudo para encerrar a guerra, inclusive colocando o seu cargo à disposição. O documentário afirma que Zelensky “desistiu” de sua promessa por motivos obscuros, sugerindo covardia ou apego ao poder. No entanto, o documentário, infelizmente, omite a frase final, “contanto que não desistamos de nossos territórios”, o que é uma condição e tanto para qualquer acordo. Zelensky insistirá nessa condição em Paris.

Volodymyr Zelensky, Emmanuel Macron, Vladimir Putin e Angela Merkel reunidos em Paris em 09/12/2019. Fonte: Élysée

A esse respeito, vale recuperar o que falaram Zelensky e Putin no encerramento das negociações.

Em seu discurso final, Zelensky, entre outras coisas, afirmou o seguinte:

Hoje enfatizei a necessidade de restaurar o controle total da Ucrânia sobre sua fronteira. Estou convencido de que voltaremos a esse assunto na próxima reunião no formato Normandia, em 4 meses. Além disso, em diversas ocasiões enfatizei a necessidade de garantir a retirada de todas as formações estrangeiras, forças armadas e desarmamento nas regiões de Donetsk e Luhansk. Enfatizei que as eleições só poderiam ser realizadas de acordo com a legislação ucraniana e em conformidade com os critérios da OSCE e do Código Penal. Ambas as partes decidiram aguardar os acordos no âmbito do formato da Normandia e do contato tripartite, quando todas as questões da gestão desses territórios, o status especial desses territórios e a incorporação da fórmula Steinmeier seriam esclarecidas. […] Ao mesmo tempo, gostaria de estabelecer os princípios que nunca violarei, como Presidente da Ucrânia, e que o povo ucraniano nunca aceitará. Em primeiro lugar, há a impossibilidade de federalização. A Ucrânia é um estado único. Esta é a mudança da Constituição da Ucrânia sobre este assunto. Segundo ponto: a impossibilidade de exercer qualquer influência na direção política e no desenvolvimento da Ucrânia. A Ucrânia é um país politicamente independente e livre, a direção do seu desenvolvimento será decidida pelo povo ucraniano. A terceira é a impossibilidade de chegar a um acordo para resolver os problemas no Leste através da cessão de territórios ucranianos.” (grifos meus)

Note como Zelensky enfatiza a questão dos territórios e da independência da Ucrânia, ao mesmo tempo em que joga o esclarecimento da fórmula Steinmeier para negociações no futuro.

Já o discurso de Vladimir Putin enfatiza os compromissos de Minsk:

Adotamos uma declaração conjunta que destaca a importância da implementação contínua e incondicional de todas as medidas de Minsk de fevereiro de 2015. […] Também é necessário intensificar o armistício com a implementação das reformas políticas previstas nos acordos de Minsk. Em primeiro lugar, trata-se de alterar a Constituição para transcrever permanentemente o estatuto especial do Donbas. É claro que é necessário estender a duração da lei sobre o estatuto especial para finalmente lhe dar um carácter permanente, tal como previsto nos acordos de Minsk, no conjunto de medidas de Minsk que mencionei no início. Planejamos a alteração deste texto, em primeiro lugar, no que diz respeito à aplicação da chamada fórmula Steinmeier.

Fica claro que Putin quer a implementação de Minsk (da forma como ele entende Minsk), enquanto Zelensky enfatiza o retorno ao status anterior. Não havia como dar certo. A parte política da declaração final do encontro teve o seguinte teor:

As partes expressam interesse em chegar a um acordo, […], sobre todos os aspectos jurídicos da Ordem Especial de Autogoverno Local – status especial – de Certas Áreas das Regiões de Donetsk e Luhansk – conforme delineado no Pacote de Medidas para a Implementação dos Acordos de Minsk de 2015 – a fim de garantir seu funcionamento permanente. Consideram necessário incorporar a “fórmula Steinmeier” à legislação ucraniana, de acordo com a versão acordada no âmbito do N4 e do Grupo de Contato Trilateral.”

A questão é que nenhuma versão da fórmula Steinmeier foi “acordada” nesta reunião, ficando como “lição de casa” a ser feita em uma próxima reunião, em 4 meses. Então, veio a pandemia, e nada mais avançou a partir daí.

As negociações no âmbito do TCG – Grupo de Contato Trilateral

Paris seria o último encontro entre chefes de Estado no formato Normandia. No entanto, as negociações continuaram no âmbito do TCG.

TCG – Grupo de Contato Trilateral na sigla em inglês, foi um grupo criado logo após a tomada das províncias do Donbas por parte dos separatistas. Fazem parte a Ucrânia, a Rússia e um representante da OSCE – Organização para a Segurança e Cooperação Europeia. O grupo começou a se reunir de maneira mais estruturada em maio de 2015, após a assinatura do acordo de Minsk II, de modo a implementá-lo. São formados 4 grupos de trabalho para tratar de 4 assuntos diferentes: segurança, política, assistência humanitária e economia. Ao longo do tempo, o grupo de segurança somente determinou cessares-fogos que nunca foram cumpridos completamente, e o grupo político nunca avançou de fato, dado o “enigma” que abordamos anteriormente e que nunca foi solucionado.

Até 2019, durante o governo Poroshenko, as negociações não avançaram. Com Zelensky assumindo o poder, seu primeiro ato no âmbito das negociações foi, como vimos acima, ressuscitar a Fórmula Steinmeier, justamente em uma reunião do TCG, em 01/10/2019.

Várias reuniões do TCG ocorreram após a cúpula de Paris. A mais importante foi a de 22/07/2020, em que se detalharam várias medidas para um cessar-fogo permanente. O comunicado desta reunião inicia-se da seguinte forma:

Emissão e promulgação, a partir das 00h01 (horário de Kiev) de 27 de julho de 2020, pela liderança das Forças Armadas Ucranianas e pela liderança das formações armadas de certas áreas das regiões de Donetsk e Luhansk, e cumprimento, durante todo o período até a solução completa e abrangente do conflito, das respectivas ordens de cessar-fogo, contendo as seguintes medidas de apoio ao cessar-fogo:

Esta fórmula foi interpretada na Ucrânia como uma equiparação oficial dos separatistas com o Estado ucraniano, transformando a Rússia em um mero observador externo não interessado. Putin sempre havia afirmado que o conflito do Donbas era um problema interno da Ucrânia, mas este é o primeiro documento oficial em que a Rússia, de fato, não aparece como uma contraparte.

Os termos desse cessar-fogo ressuscitaram o movimento de protestos “Capitulação Não!”. Até porque envolvia, inclusive, ordens para que o exército ucraniano não revidasse ataques dos separatistas, uma determinação que não durou muito tempo, por motivos óbvios. A resistência da opinião pública ucraniana a qualquer tipo de concessão era muito forte.

O aspecto curioso é que, no mesmo artigo citado antes, e que inspirou o documentário do Brasil Paralelo, o jornalista Michael Desch afirma que “em Julho de 2020, [Zelensky] sinalizou falta de interesse no Grupo de Contato Trilateral coordenado pela OSCE — que tinha sido uma plataforma central para as negociações — ao nomear o antigo presidente Leonid Kravchuk, que tinha então oitenta e seis anos, como representante da Ucrânia.” O documentário irá repetir a mesma “acusação” de falta de interesse. Ora, Kravchuk, o primeiro presidente da Ucrânia moderna, era o representante que dava peso político à delegação ucraniana, e que substituiu, a pedido, o também ex-presidente Leonid Kushma. O verdadeiro negociador era Andriy Yermak, então chefe de gabinete de Zelensky. Mas o problema dessa “acusação” de Zelensky ter desistido da paz contradiz o próprio resultado da reunião, em que o governo ucraniano faz mais uma concessão que desagradou uma parcela dos ucranianos.

O presidente americano Donald Trump costuma dizer que, fosse ele presidente, esta guerra não teria se iniciado. No entanto, a julgar pelo ânimo da sociedade ucraniana, fica difícil imaginar qualquer arranjo que envolvesse cessão de territórios para evitar a invasão russa, como Trump recentemente colocou na mesa de negociações. Se uma mera equiparação com os separatistas já foi o suficiente para provocar protestos, imagine a concessão de territórios. Impensável.

Um sinal de que Putin havia conquistado uma posição forte nas negociações foi a carta enviada pelo seu negociador, Dmitry Kozak, aos representantes de Alemanha, França e Ucrânia, no dia 27/07/2020. Segundo matéria do diário Strana.ua, um jornal ucraniano em língua russa, que teve acesso à carta por meio de um diplomata ucraniano, Kozak afirmava que o trabalho dos assessores dos chefes de Estado no formato Normandia era ineficaz, e que os termos do recente cessar-fogo foram baseados inteiramente em propostas russas. Kozak propõe simplesmente encerrar as negociações no formato Normandia, e focar no TCG, onde agora a Ucrânia está praticamente sozinha contra a Rússia e seus proxies, que foram elevados a interlocutores de mesmo nível.

As reuniões do TCG continuaram quinzenalmente ao longo de 2020 e 2021 previsivelmente sem avanço algum no que concerne à implementação do lado político dos protocolos de Minsk. Em 15/07/2020, o Congresso ucraniano passou uma lei convocando eleições locais para outubro daquele ano. Em seu artigo 4º, a lei diz o seguinte:

“4. As eleições de deputados de conselhos locais e prefeitos de vilas, assentamentos e cidades não nomeados de acordo com os parágrafos 2 e 3 desta Resolução serão nomeadas de acordo com o procedimento e os termos estabelecidos por leis separadas, sujeitas às seguintes condições: término da ocupação temporária e da agressão armada da Federação Russa contra a Ucrânia, a saber: retirada de todas as formações armadas ilegais lideradas, controladas e financiadas pela Federação Russa, tropas de ocupação russas e seus equipamentos militares do território da Ucrânia; restauração do controle total da Ucrânia sobre a fronteira do Estado da Ucrânia; desarmamento de todas as formações armadas ilegais e mercenários que operam nos territórios temporariamente ocupados da Ucrânia; restauração da ordem constitucional e da lei e da ordem nos territórios temporariamente ocupados da Ucrânia; garantir a segurança dos cidadãos da Ucrânia que residem nos territórios relevantes da República Autônoma da Crimeia, nas regiões de Donetsk e Luhansk e na cidade de Sebastopol, após a conclusão completa dos procedimentos de desarmamento, desmilitarização e reintegração nos territórios relevantes, de acordo com os padrões das Nações Unidas e da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa.” (grifo meu)

Esta cláusula, colocando claramente a situação singular dos territórios do Donbas e da Crimeia, e elencando condições claramente anti-russas para a realização de eleições nos territórios ocupados, travou de vez as negociações políticas no TCG.

Em 29/09/2021, o relatório do representante da OSCE no TCG informa que a Rússia não renovou a permissão para que a Missão de Observação da OSCE continuasse a monitorar a situação na fronteira Ucrânia-Rússia. Foi reportado também que a missão de monitoramento da OSCE foi impedida de trabalhar 37 vezes nos territórios ocupados e duas vezes no lado controlado pela Ucrânia nas duas semanas anteriores, em um claro sinal de que Putin já começava a planejar a invasão. Do mesmo modo, no relatório de 10/11/2021, informa-se que a missão de monitoramento da OSCE foi impedida de fazer o seu trabalho em 37 oportunidades nas duas semanas anteriores, das quais somente duas no lado do governo da Ucrânia.

Houve uma reunião extraordinária do TCG no dia 09/12/2021, por iniciativa da Ucrânia, para discutir condições para um cessar-fogo. Não se chegou a um acordo.

O representante da OSCE no TCG convocou uma reunião extraordinária do grupo para 19/02/2022, mas “certos participantes” condicionaram a sua participação a “certas condições políticas”, e a reunião não ocorreu. Neste mesmo comunicado, o representante diz o seguinte:

Junto-me totalmente à declaração do Presidente em exercício da OSCE, Zbigniew Rau, e da Secretária-Geral da OSCE, Helga Schmid, nas quais lamentam a disseminação de desinformação sobre uma ação militar iminente pelas forças do governo ucraniano.” (grifo do representante da OSCE)

Este seria o último relatório do TCG, que obviamente deixou de se reunir depois da invasão russa. Temos aí, por parte do árbitro do conflito, a constatação de qual lado é o agressor.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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