Opinião

Quão importante é a enfermagem?

Estava lendo uma matéria sobre o papel da enfermagem no sistema de saúde nacional e mundial e comecei a voltar no tempo, lá no início da faculdade. A Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo ficava inteiramente dentro do Hospital, o que era muito interessante, mas assustador também. Eu careca, pois naquele tempo cortavam os cabelos dos calouros, me sentia pequeno naquele hospital de arquitetura imponente, que até hoje me lembra cenas do Filme Carruagens de Fogo.


O início da faculdade de medicina não foi fácil, de repente estavam despejando conteúdos de bioquímica e fisiologia e o pavor era grande. Mas a Santa Casa tinha um currículo considerado ousado para época e já no primeiro ano tínhamos aula de enfermagem. A professora, simpática, nos ensinava a aplicar injeção numa laranja e depois, treinamos uns nos outros, obviamente sem injetar nada.


Por fim fomos a enfermaria e aprendemos a medir pressão a aplicar injeções e até puncionar veias. Aquilo era mágico e fato é que antes do final do primeiro ano, já era capaz de aferir pressão, temperatura, fazer curativos, trocar o lençol da cama, sem precisar tirar o paciente dela, instalar um soro e saber a função e funcionamento básico dos drenos. A sensação era boa e aquelas paredes centenárias, pararam de olhar para mim com um ar de desprezo. Queria lembrar e citar o nome das enfermeiras que me deram aula ou me acompanharam nos estágio, mas aviso, desde já, que não vou citar o nome de ninguém para não ser injusto e também porque eu não pedi autorização.


A Faculdade de medicina se dividia, no meu ponto de vista e no ponto de vista da maioria dos meus colegas em três blocos. O primeiro e o segundo ano onde estudávamos muito, com medo e chance real de não passar e onde não havia tempo para nada, o terceiro e quarto anos, onde as disciplinas ficavam mais interessantes e você estudava muito, mas conseguia ter alguma vida e o quinto e sexto anos, o famoso internato, onde a gente ficava praticamente internado no Hospital.
Antes de começar o quinto ano, um amigo me deu um único conselho: “não brigue com as enfermeiras, fique amigo delas, elas vão te ajudar e te ensinar muita coisa”.


Segui a risca o conselho e num tempo onde a mão de obra era escassa, os internos faziam de tudo, inclusive empurrar macas até a radiologia, levar exames correndo para o laboratório, se quisesse o resultado no mesmo dia, além de todas as tarefas, incluindo prescrições, evoluções, suturas, curativos complexos e o resto das inúmeras atividades que compõe o ensino médico.


Desde cedo, eu observei que, algumas profissionais, mesmo que fossem auxiliares ou até atendentes de enfermagem, algo que hoje não existe mais, tinham um conhecimento tácito do manejo de pacientes e podiam identificar aqueles que iam complicar. Óbvio que havia profissionais e profissionais, mas encontrei muita gente extremamente inteligente e competente, pessoas que infelizmente não tiveram a oportunidade na vida de fazer um curso superior.


Eu vi a transição de uma era, na verdade o fim de uma, onde a enfermeira que na época chamavam de “enfermeira padrão” era uma figura rara nos hospitais de pequeno e médio porte e onde a maioria do serviço de enfermagem era conduzido por atendentes, auxiliares e freiras, já que boa parte da rede de hospitais era de Santas Casas ou outras instituições católicas.


A vida foi passando e em 1995, quando comecei na hematologia, percebi que o trabalho da enfermagem era fundamental para tudo não dar muito errado. Numa época em que as rotinas de segurança que temos hoje ainda engatinhavam, eram elas que chamavam nossa atenção sobre eventuais erros de diluição e mesmo dosagem de medicamento, num tempo em que a internet estava nos primórdios e celular era um tijolo caro e pesado, que alguns carregavam preso no cinto. Não era fácil consultar doses ou diluições e se você não tivesse seu livrinho ou suas anotações nada feito. Nada de olhar no celular e nem mesmo no computador.


O impacto veio mesmo quando entrei na unidade de transplante de medula óssea, na época com apenas um e depois dois leitos. As enfermeiras sabiam rotinas, terminologias, cuidados que eu nem de longe conhecia. Aquilo foi amor a primeira vista e rapidamente notei que, para fazer um procedimento complexo como o transplante de medula óssea, ou se tem uma equipe de enfermagem competente ou nada feito.


No final daquele mesmo ano, outro impacto. Minha primeira viagem internacional, para ir a um congresso e de quebra passar visita no Hospital onde havia sido feito o primeiro transplante de medula óssea do mundo, e onde ainda atuava, ainda que num ritmo menor, o prêmio Nobel Dr. Donnal Thomas. Imagine um fã dos Beatles na casa do Paul MacCartney. Era essa minha sensação.


Fui passar visita, graças ao excelente relacionamento que meus professores da época tinham com aquele grupo e fiquei espantado com o nível de conhecimento dos médicos, que sabiam de cor tudo o que havia passado com os pacientes, com os protocolos nos quais estavam inscritos. Somente no final da visita soube do meu engano. Não eram médicos, quem sabia tudo dos casos era a enfermeira. No melhor centro de transplante de medula óssea do mundo na época (e um dos melhores até hoje), a enfermagem tinha um papel central.


Óbvio não quero fazer aqui nenhuma injustiça aos outros profissionais como fisioterapeutas, nutricionistas, assistentes sociais, psicólogas, terapeutas ocupacionais, agentes administrativos, só que esse é um texto sobre enfermeiras e técnicas. Tomei a liberdade de chamar todos de enfermeiras e técnicas, pois as mulheres predominam na área. Acho injusto chamar de enfermeiros como manda a norma gramatical ou “enfermeires” ou pior “enfermeirx”.


A vida foi me conduzindo por diversos hospitais onde conheci gente brilhante e o interessante é que as enfermeiras e particularmente as técnicas passam muito tempo com os pacientes, ouvindo, observando e sentindo coisas que nos médicos não temos tempo de perceber, dada a correria de muitos pacientes e hospitais. Eu sempre fui aberto a ouvir e não foram poucas as vezes que observações de técnicas me auxiliaram a fazer um diagnóstico, a ajustar a medicação para dor. Algo que eu aprendi é que, se existe um diagnóstico difícil, um problema social complexo, uma dor de difícil manejo, uma das alternativas e buscas informações com as técnicas e enfermeiras. Isso ajuda a colocar peças no quebra-cabeças dos diagnósticos e tratamentos. Também nunca deixei de dar atenção, quando um paciente estava particularmente grave e muitas vezes, confiando na avaliação das enfermeiras, eu pedia que chamassem a avaliação da UTI quando eu eventualmente estava fora da unidade ou envolvido em outras tarefas. Essa conduta deve ter salvo algumas vidas, creio eu.


Mais recentemente, fazendo algumas consultorias sobre transplante de medula óssea, para hospitais que desejavam instalar suas unidades, eu dizia, sem medo de errar, que para ter um bom transplante era fundamental ter uma boa enfermagem e que elas deveriam ser treinadas em primeiro lugar.


Voltando à pergunta do título, quão importante é a enfermagem e como se dá o reconhecimento dessa classe profissional. Alguns aspectos negativos que valem ressaltar são a baixas remunerações e a falta de reconhecimento em diversos locais de trabalho. Particularmente as técnicas sofrem bastante, pois fazem o trabalho duro e encaram as dores dos pacientes de perto. Só quem ficou internado, sabe o quanto é bom ser atendido de forma carinhosa por alguém que vem administrar seu analgésico, ou ajeitar a posição do seu travesseiro


A parte positiva é que o curso técnico em enfermagem é relativamente barato e não faz muito tempo hospitais de ponta, criaram cursos técnicos próprios, não com o objetivo primário de ganhar dinheiro, mas de formar boa mão de obra. Alguns inclusive, oferecem bolsa integral. Assim temos um mercado amplo, onde técnicas, trabalhando muito, conseguem concluir um curso superior de enfermagem, tendo a chance de progredir na carreira. Hoje as enfermeiras encontram um amplo mercado em setores de gestão, comercial e relacionamento, não ficando mais restrita somente à assistência de pacientes.


Ainda que o cenário seja por um lado duro e difícil e o reconhecimento não venha do modo adequado, por outro lado temos um setor que emprega mais de dois milhões de profissionais, dando a muitas pessoas uma chance de inserção no mercado de trabalho e mobilidade social.
Finalmente, respondendo de forma direta a pergunta do título, quão o importante é a enfermagem, a resposta é simples, sem enfermagem nosso sistema de saúde não existiria.

Cláudio Galvão

Cláudio Galvão é médico Hematologista, faz transplante de medula óssea e oncologia pediátrica. Queria ser piloto da Varig e até chegou a pilotar aviões. Depois fez física, mas parou e finalmente concluiu o curso de medicina. O gosto por aviação e por divagações acerca de números e da física teórica nunca o abandonou.

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2 Comentários

  1. Que texto mais maravilhoso, uma visão pouco dita, este tipo de “papo” da um vigor mais no que fazemos todos os dias, com muito amor, dedicação e paciência muita paciência.

  2. Que texto emocionante. Que reconhecimento ao profissional de enfermagem que faz tanta diferença. Parabéns! Continue escrevendo…

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