Opinião

Setembro de 2019: Pandemia? Que pandemia? Mais uma intriga dos ecochatos.

O fato: nós,  gestores de risco, comemos  bola. De novo. 

Não, esse post não está desatualizado. É que na coleção de erros de gestão de risco, 18 setembro de 2019 é a data que tem que ser bem lembrada.

Parecia uma manchete inflamatória, similar a de 21 de fevereiro de 2003 quando o Warren Buffet escreveu para os acionistas alertando que os derivativos eram armas de destruição em massa. Em 2005, a  mesma tese foi  referendada pelo economista chefe do FMI. Essa comida de bola aconteceu de 3-5 anos antes da crise de 2008, a que provou o caráter atômico dos derivativos sub-prime. 

Essa matéria da CNN sobre pandemia era baseada em relatório da OMS, que analisou 1483 (!) epidemias que aconteceram entre 2011 e 2018. As análises foram reunidas num reporte chamado “A WORLD AT RISK https://apps.who.int/gpmb/assets/annual_report/GPMB_annualreport_2019.pdf,. O  reporte alertava para a ciclotimia na preparação do mundo para pandemias: “ Por muito tempo, permitimos um ciclo de pânico e negligência no que diz respeito a pandemias: intensificamos os esforços quando há uma ameaça séria e, em seguida, rapidamente os esquecemos quando a ameaça diminui. Já passou da hora de agir”. [Consegue imaginar olhos virando na Faria Lima, Wall Street ou London City? – eu sim]. 

Figura 1: Exemplos de doenças emergentes e re-emergentes – reporte WHO 2019 link acima

O estudo posicionava-se como uma franca e honesta análise pedindo que o mundo prestasse mais atenção à real ameaça de um vírus respiratório letal. E, caso fosse da magnitude da pandemia de 1918, de 50 a 80 milhões de pessoas poderiam morrer e 5% da economia mundial seria impactada (ou 2.8% em uma pandemia de média virulência – guarde esse número e veja abaixo o que aconteceu).

O relatório explicava que apesar de epidemias não serem ameaças novas, a próxima seria diferente. A maior densidade demográfica e a possibilidade de se viajar de qualquer lugar para qualquer lugar em 36 horas, significaria que uma doença poderia se espalhar pelo mundo muito mais rapidamente. Os custos poderiam ser desde perda de empregos, migração forçada, sistemas de saúde em colapso à óbvia grande mortalidade. As conclusões do artigo eram um desenvolvimento de estudos publicados em fevereiro de 2018 por renomados pesquisadores e economista (Pandemic risk: how large are the expected losses? Victoria Y Fan, Dean T Jamison & Lawrence H Summers). Só que o alerta não era novo nem em 2018 nem em 2019. 

Era só mais uma das repetidas tentativas da ciência para alertar governos, gestores de riscos, formadores de opinião e políticos que, na arrogância do “temos controle de tudo” não ouviram foi é nada.

Até empresas foram alertadas. Na minha garimpagem, achei esse artigo de uma consultoria DE JULHO DE 2017 com uma interessante pergunta: Sua empresa está preparada para uma pandemia? https://www.ftijournal.com/article/Is-Your-Company-Prepared-for-a-Pandemic, O artigo relembrava para a economia mundial poderia ser USD 60 bi/ano e dava uma receita de bolo dos riscos como o de rompimentos nas cadeias de suprimentos caso houvesse uma pandemia. 

O vexame do 6 a 1

Mas voltando ao estudo da OMS de setembro de 2019. Além do alerta do risco que estávamos correndo, ele dava 7 recomendações para preparar o mundo para uma emergência sanitária. Seguem as lições onde os líderes mundiais (e gestores de risco) devem ter faltado no dia da aula. 

#1 e 2 – Liderança pelo exemplo dos vários Gs (países grandes)– investimento do que prometeram desde 2005 e monitoramento dos progressos. Tradução/Bingo 1 e 2 :  os grandes não se prepararam, não deram exemplos e deram vexame. 

#3 Construir sistemas efetivos de reação para serem usados no Dia D – o botão Vermelho testado com todos os agentes públicos, privados, laboratórios, redes de  suprimentos e comunidades.  Tradução/Bingo 3:  cadeias produtivas interrompidas, falta de seringas, de insumos básicos e respostas lentas de todos. Aqui uma mensagem justa de agradecimento especial para empresas que mandaram bem e salvaram parte da lavoura – no espírito de capitalismo da gratidão temos sim que agradecer empresas que mantiveram seus lucros, os empregos e a economia funcionando onde dava como Amazon (apesar de muitos problemas) , Netflix (mais que especial), bancos (sim, bancos!) e empresas que administraram seus caixas e doaram muito para nos salvar   (Itaú, BRF, Magazine Luíza e outros tantos).

#4 A ciência (e doadores) tem que se preparar para o pior e investir em tecnologia de vacinas e mapeamentos (e compartilhamento) de genomas. Tradução Bingo 4: sim nossos cientistas se preparam para o pior.  

#5 Financiamento multilateral só  para quem estivesse preparado para pandemias – Banco Mundial e FMI deveriam integrar em suas análises de risco financeiro de um país, a sua capacidade de resposta e investimentos ligados a emergências sanitárias (isso por conta do impacto econômico de uma pandemia). Segundo o artigo, o FMI considera como medida de um evento extremo econômico  uma perda de 0.5% do PIB. Não considerar preparo para uma pandemia seria um erro teórico imperdoável. Tradução/Bingo 5:  a pandemia superou em 10 vezes o pior cenário econômico do FMI. 

#6 Doadores, órgãos multilaterais e filantrópicos, deveriam aumentar as verbas para financiar o preparo a resposta dos países mais pobres, antecipando que o impacto nos mais pobres seria desproporcional e colocaria em risco o combate a pandemia em todo o mundo  Tradução/Bingo 6:  países devastados e  cultura de variantes  que pode por a perder a corrida da vacina. Nunca antes tivemos tantas provas de que a pobreza de um é a tragédia de todos.

#7 Coordenação global A ONU deveria se preparar para garantir uma resposta coordenada , incluindo testes periódicos, fechamento de fronteiras e simulação de desastres. Tradução/Bingo 7: sem comentários.

Resultado do Bingo: 6×1 Como visto, todos faltamos nas aulas, com exceção dos cientistas…. Só fomos aprovados em uma das 7 lições

O mundo em 2019

Apesar das recomendações nada parecia indicar que a coisa iria apertar. 

2019 transcorria como  um ano normal com as emoções costumeiras seguidas de auto-anestesia. No Brasil, um novo presidente improvável, a condenação de Lula, Lula solto, Michel Temer preso, Michel Temer solto, a tragédia de Brumadinho, as queimadas da Amazônia em novo patamar, a morte de pessoas queridas, como Boechat, Paulo Henrique Amorim, Gugu Liberato, Neymar acusado e inocentado e por aí vai. No mundo, as queimadas na Austrália, o fogo na Notredame, a novela do Brexit que  se prolonga pelo ano todo mas ao menos toma um rumo em dezembro, a lei de extradição e os protestos em Hong Kong, a guerra comercial entre EUA e China se acirra, Trump enfrenta seu primeiro processo de impeachment, Greta é eleita a personalidade do ano. Um ano animado, o nosso saudoso normal. Seguíamos sofrendo, celebrando para esquecer e zumbi como sempre. Mas a economia, a essa estava bem, e é o que importava, não é? 

Segundo o FMI (foto acima), em 2019, quando essa matéria da CNN foi ao ar, o mundo crescia 2,8%, os mais avançados 1,6% e muitos emergentes prá lá de 5%. Um mar verde de prosperidade como vemos. O tom alarmista do artigo não condizia com a calmaria. E os gestores de risco também não pareciam antever problema algum no horizonte.  O Insight Report de Gestão de Risco do Fórum Econômico Mundial colocava risco de acontecer uma pandemia nos 10 anos seguintes com probabilidade indetectável e impacto em 10o lugar (ver última foto desse post) .http://www3.weforum.org/docs/WEF_Global_Risks_Report_2019.pdf.

E menos de 3 meses depois, a tragédia anunciada e ignorada, revela-se para um mundo atônito. A previsão econômica  terrorista virou verdade e foi até um pouco pior. Uma epidemia pela escala de letalidade da OMS, foi média – não morreram 50m. Morreram 3m até agora nas estimativas oficiais. A The Economist de 15 de maio de 2021  entende que o número esteja mais próximo dos 10 milhões. E a escala de prejuízos econômicos foi  estelar –  os 5% de queda no PIB ficaram, para alguns, um cenário otimista. Imagine se a epidemia tivesse sido pior. Sim poderia ter sido pior. 

E você pode ver no quadro abaixo do mesmo reporte do WHO (OMS) que nem eles achavam que os grandes iriam ser tão afetados por uma epidemia.

A gestão de risco da humildade e da escuta

Uma vez, um piloto de Boeing da ponte aérea, que derrapou e foi parar no mar, deu uma entrevista falando que a causa do acidente foi arrogância, excesso de autoconfiança. Nunca mais me esqueci dessa passagem, 

Quando estava na faculdade de economia, o “too big to fail” (muito grande para quebrar) era quase um dogma. Não imaginaríamos que instituições solidas como AIG, Lehman ou Citibank poderiam quebrar um dia. Muito menos que o título americano pudesse não ser risco zero.  Em 2008, economistas, todos, engolimos seco nossas crenças. Nosso avião tinha ido parar no mar. E relembramos de professores que, sabiamente, quando nos perdíamos em equações belíssimas, alertavam-nos que a economia não era uma ciência exata, para baixarmos a bola. Mas ninguém viu chegando, ou poucos viram.  Não baixamos a bola e a comemos inteira e crua.

E poderia seguir listando exemplos de  sinais não escutados pelos gestores de risco, até mesmo das ciências exatas como os cálculos das barragens de Mariana e Brumadinho. Para facilitar a lembrança, segue o link https://www.youtube.com/watch?v=xyhaCbVtR9Q e imagem triste do rompimento de Brumadinho capturada pelo olhar sensível do Rafael Paes https://instagram.com/rafaelpaesart?igshid=5pwvmn7yazk2.

O que tudo isso quer dizer? Para alguns assuntos, será que seríamos todos uns “terraplanistas esclarecidos”? 

Tendo achado esse alerta do WHO de 2019, sinto-me como seu meu médico de confiança tivesse esquecido na gaveta um diagnóstico de câncer nível 2 e o deixado evoluir para nível 4.

Sinceramente, eu não estou mais interessada no assunto pandemia. Já era: corpo mundial carcomido pelo vírus e 10 milhões de vidas a menos.

https://www.economist.com/graphic-detail/2021/05/14/how-many-lives-has-the-pandemic-cost

Quero saber qual vai ser a nossa próxima comida de bola. Qual o próximo tópico que vamos escolher ignorar. Que tal mudança climática? “Mudança climática? Que mudança climática? Lá vai mais terrorismo… “

Quero saber qual vai ser a nossa próxima comida de bola. Qual o próximo tópico que vamos escolher ignorar. Que tal mudança climática? Mudança climática? Que mudança climática? Lá vai mais terrorismo… “

Para ajudar um pouco na reflexão, segue na foto abaixo o sumário dos reports de risco do Fórum econômico mundial, de 2019 e de 2021,  listando os possíveis riscos para os próximos 10 anos (tags em verde = riscos climáticos). Agora sim, pandemia subiu no ranking dos maiores riscos. Tarde. Mas que ao menos tenhamos encontrado a humildade nas 10 milhões de vidas perdidas.

Julieda Puig

Julieda ... é a Julieda. Mãe de 2, companheira de 1, filha, irmã, amiga e, nas horas vagas, trabalha e é responsável por Compliance em um banco na terra da Rainha. Graduada e mestre em Economia pela USP e GV. Vive em Londres, “fisicamente” e, no Brasil, “virtualmente”, já que seu coração não se separa de lá. A ideia é visitar o boteco de vez em quando, como uma “correspondente 🗺” contar um pouco como é a vida por essas bandas do planeta. Às vezes vai falar séria e apaixonadamente (porque, afinal é boteco e porque senão não seria ela!) sobre ética, compliance, sustentabilidade, políticas públicas, corrupção e inclusão, seus temas preferidos. Mas a verdade é que a maior parte das vezes não pretende falar muito sério não... Já deixa claro que é bem livre na opinião, prá desespero dos carimbadores de plantão..

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