Opinião

O Telegram e a democracia brasileira

O Telegram chutou o pau da barraca, e resolveu enviar para toda a sua base de usuários um texto descascando o PL das Fake News. Eu printei a mensagem antes que o aplicativo fosse obrigado a retirar a mensagem de sua página ou, pior, fosse tirado do ar. Vamos analisá-la.

O Telegram começa de maneira pouco diplomática, afirmando que a democracia estaria sob ataque no Brasil. Trata-se de uma opinião forte, que não se espera de uma comunicação corporativa, mas, ainda assim, uma opinião. A empresa não determina quem estaria atacando a democracia, mas entende-se que sejam os patrocinadores do PL.

Em seguida, a empresa afirma que o PL, da forma como está, poderia forçar, inclusive, o encerramento das suas atividades no Brasil. Alguns poderiam alegar que se trata de uma chantagem barata, mas a empresa pode, por suposto, ameaçar fechar suas portas a qualquer momento. Esta ameaça pode ou não ser crível, mas não parece ser um crime.

A seguir, afirma que o PL “concede poderes de censura ao governo”. Parece uma afirmação exagerada ou imprecisa, na medida em que este “poder” do governo é apenas indireto, ao exigir que as plataformas removam conteúdos inadequados. O problema do PL (e veremos isso no próximo parágrafo) é delegar às plataformas o poder de definir o que pode ou não pode ser publicado, elevando as plataformas ao status de juízes de conteúdo, sob pena, e esta é a crítica do Telegram aqui (e, de resto, de todas as outras plataformas), de serem consideradas coniventes. Ou seja, não é exato dizer que o governo será um censor, mas na medida em que as plataformas forem penalizadas por não removerem conteúdos que juízes ou agências do governo considerem inadequados, o governo passa a ter um poder discricionário sobre as plataformas que, na prática, as obriga a serem a longa manus do governo quando se trata de conteúdo na internet.

No parágrafo seguinte, o Telegram é exato ao afirmar que o PL “transfere poderes judiciais aos aplicativos”, ponto que eu já havia levantado no post em que analiso o PL. O resultado, como adiantei, é que as plataformas aplicarão critérios apertados, levando a uma hipercensura de conteúdos. Uma ameaça de morte é relativamente fácil de classificar como crime. O problema, claro, ocorre quando opiniões políticas ou de costumes podem ser classificados como “discurso de ódio” ou “ataques à democracia”. As plataformas não querem esse tipo de responsabilidade, pois não têm os instrumentos nem a legitimidade para tanto. Aliás, o próprio tratamento dado pelo STF a este texto do Telegram mostra o quão pantanoso é esse terreno.

Em seguida, a empresa afirma que o PL “cria um sistema de vigilância permanente”. Bem, isso é verdade, não opinião, está lá no art. 11: “os provedores devem atuar diligentemente para prevenir e mitigar práticas ilícitas no âmbito de seus serviços, envidando esforços para aprimorar o combate à disseminação de conteúdos ilegais gerados por terceiros, que possam configurar:”, e seguem-se os crimes que as plataformas precisam vigiar, incluindo “crimes contra o Estado Democrático de Direito”, com base em decreto de 1940, editado por ninguém menos do que o ditador Getúlio Vargas!

O problema é que o Telegram ousou afirmar que este é um sistema “semelhante ao de países com regimes antidemocráticos”. Bem, isso é a opinião do Telegram. Pode estar certa, pode estar errada, mas não me parece que esta afirmação em si atente contra o Estado Democrático de Direito.

Por fim, o Telegram diz que o PL seria desnecessário, pois o país já “possui leis para lidar com as atividades criminosas que esse projeto de lei pretende abranger”. Daí, em seu estilo incendiário, o Telegram afirma que o PL “visa burlar essa estrutura legal, permitindo que uma única entidade administrativa regule o discurso se supervisão judicial independente e prévia”. Bem, o Telegram está desatualizado, pois essa parte (o da entidade supervisora) foi retirada do PL. Mas, mesmo assim, parece forte demais afirmar que o PL tem como objetivo “burlar” a atual estrutura legal, o que poderia ser interpretado como uma acusação de desonestidade por parte dos congressistas que estão por trás do PL.

No fim, o Telegram sugere que o que vai acima “apenas toca a superfície” do problema. Trata-se de recurso retórico, é óbvio que o problema está todo descrito aí acima. Além disso, menciona Google e Meta, trazendo para a arena outras empresas que também publicaram suas análises sobre o PL, inclusive com o link para essas análises. Obviamente, Google e Meta trataram de dizer que não têm nada a ver com o discurso incendiário, mas os links não mentem.

O STF (ministro Alexandre de Moraes) ordenou que o Telegram tirasse a mensagem de sua página, e substituísse por um texto em que afirma que a mensagem anterior do Telegram caracterizou FLAGRANTE e ILÍCITA DESINFORMAÇÃO” (assim mesmo, em caixa alta) contra nada menos que “o Congresso Nacional, o Poder Judiciário, o Estado de Direito e à Democracia Brasileira”, pois teria cometido fraude ao distorcer a discussão e os debates sobra o PL, “na tentativa de induzir e instigar os usuários a coagir os parlamentares”.

Que o Telegram, fiel ao seu estilo, não foi nem um pouco delicado ao tratar o assunto, não resta dúvida. Seu texto é forte, acusando, de várias formas, os defensores do PL de atacarem a democracia. Agora, daí vai uma distância imensa ao cometimento de algum crime tipificado, que merecesse a intervenção do judiciário. O Google publicou um texto muito mais bem-educado, e mereceu o mesmo fatwa dos representantes do Estado brasileiro. De onde se conclui que o problema não foi a forma, mas o conteúdo.

Chego a duvidar que este texto entre aspas tenha sido mesmo escrito por um ministro da Suprema Corte. O tom do texto consegue rebaixar-se ao mesmo nível do texto do Telegram, em uma falta de serenidade que fica bem para panfletos, não para decisões judiciais. Isso na forma. No conteúdo, fico realmente preocupado quando um texto de críticas a um PL, por mais que seja de uma parte interessada, por mais que tenha frases fortes, é considerado um “ataque à Democracia Brasileira”. Se esse texto do Telegram não pode, o que pode? Quem define o que pode ou não pode? Qualquer texto contra o PL das Fake News seria, por definição, anti-democrático? Preciso começar a me preocupar com o que eu escrevo aqui?

Mas o que mais me faz desconfiar de que essa retratação do Telegram não foi escrito por Alexandre de Moraes é a crase antes do verbo em “à coagir”. Nunca um ministro do STF cometeria um erro gramatical desse naipe.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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3 Comentários

  1. Marcelo,
    Esse é um assunto espinhoso. Na Europa as redes estão sob a lei que regula as regula. Foi discutido e não foi fácil.
    Concordo com o que escreveu em seu artigo, quando menciona que é preciso mais serenidade. Inclusive para se sentarem à mesa e discutirem um assunto que precisa de normas. O que não é possível, descendo ao “chão da fábrica”, é que um professor seja acuado por alunos numa rede, e humilhado em sala de aula, com vídeo mostrando, tudo combinado na internet.

    1. Sim, sem dúvida, trata-se de um assunto espinhoso. O problema é que alunos já humilhavam professores antes do advento das redes sociais, e continuam a fazê-lo usando as redes. Responsabilizar as redes por isso parece-me ser um caminho inadequado, pois corremos o risco de jogar fora o bebê junto com água suja do banho. Além disso, se a coisa se restringisse a proteger professores, até poderíamos discutir. O problema é que, dentro desse balaio, tem também “ataques ao Estado Democrático de Direito” e “discursos de ódio contra minorias”, que são terrenos pra lá de pantanosos, e onde as redes sociais não querem, com razão, meter a mão, dado que a interpretação do que é ou não é “ataque” depende de quem está interpretando.

  2. Marcelo,
    Concordo que os Professores já eram humilhados antes das redes, sem dúvida, mas eram outros tempos. Os pais eram chamados na escola , alunos expulsos ou advertidos e a ordem era recuperada sem que o mundo soubesse. O mundo digital traz uma ordem nova, e os Europeus, nesse sentido, já se posicionaram.
    Acredito que precisa-se entender, mais a fundo, qual o interesse real das redes sociais. O que ganham ? O que perdem ? Na Europa cederam. Com Big Data e a IA não seria tão difícil saber ou o que poderia causar um dano imediato às pessoas. Como já mencionamos, assunto espinhoso.

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