Opinião

O Covid e a loira do banheiro

A seguir, uma notinha de hoje (03/01/21) no Estadão, que me fez pensar em vários aspectos dessa pandemia no estágio atual.

Em primeiro lugar, salta aos olhos o viés do jornalista: Bolsonaro não “provocou” uma aglomeração. A aglomeração já estava ali. Os jornais não cansam de estampar fotos de aglomerações em ruas, praias e festas todos os dias. E Bolsonaro não está em nenhum desses lugares. As pessoas que se aglomeraram em torno de Bolsonaro não brotaram do fundo do mar. Já estavam lá antes da chegada de Bolsonaro e continuaram depois.

Claro que o presidente deu um mau exemplo. Se usasse o poder de seu cargo para reforçar as medidas sanitárias preconizadas pelos especialistas, não haveria aglomeração na praia. Será? É justamente este o ponto que me fez parar para pensar.

Será que Bolsonaro (ou qualquer presidente) tem esse poder de liderança, a ponto de fazer as pessoas mudarem de comportamento? Ou será que Bolsonaro faz a leitura do que vai nas mentes e corações de uma parte do povo e age de acordo? Ou, até mais do que isso: não será que Bolsonaro é uma parte desse povo, que está cansado de quarentenas e não acredita mais em “especialistas”? Estarão errados em sua percepção negacionista? Vejamos.

Depois de 10 meses de epidemia temos 200 mil óbitos. Arredondando, 0,1% da população. Imagine você chegando para uma festa com mil convidados. Um amigo seu também foi convidado, só que vocês chegaram em momentos diferentes. Sua missão: encontrar seu amigo nesse salão, mas sem sair muito do seu lugar. Essa é a chance de um brasileiro conhecer pessoalmente algum morto por Covid. Podemos tentar melhorar a estatística, dizendo que meu amigo e eu temos um conhecido em comum na festa. Lembre-se que isso significa que temos, em proporções brasileiras, 200 mil amigos em comum. Mas vá lá. Mesmo assim, a chance de conhecermos alguém que conhece alguém que morreu de Covid também é relativamente baixa. Sobram 997 pessoas que não conhecem nem você e nem o seu amigo.

Na falta dessa experiência pessoal, resta somente a cobertura jornalística, que procura trazer os casos de mortes por Covid para o cotidiano das pessoas. Ou seja, procuram transmitir a sensação de que o seu amigo é amigo de todo mundo. No início até funciona.

Quando eu era criança, de vez em quando aparecia, na escola, o boato da loira do banheiro. Seria uma mulher morta, com algodão no nariz, e que ficava no banheiro assustando as pessoas. Os mais velhos entravam no banheiro e saiam afetando terror, para assustar os mais novos. No início todo mundo ficava apavorado e evitava ir ao banheiro. Mas a vontade de fazer xixi era mais forte, e uma criança mais valente arriscava. E, adivinha? Não havia loira nenhuma ali! Estava desfeita a farsa, para júbilo da garotada.

Não estou dizendo que a Covid seja uma farsa, longe disso. Mas, com as estatísticas atuais, apenas um em mil banheiros tem uma loira com algodão no nariz. A imprensa procura chamar a atenção para este banheiro, mas o fato é que os outros 999 banheiros ainda não tem loira alguma, e as pessoas cada vez mais têm a sensação de que não vão encontrar nenhuma mesmo.

É bem conhecido o fenômeno da assimetria da atribuição de probabilidades: o ser humano costuma dar maior probabilidade subjetiva a um fenômeno positivo do que a um fenômeno negativo. Assim, as pessoas apostam na Mega-Sena com a firme esperança de ganhar, mesmo que a chance seja de 1 em 50 milhões, mas não apostam na chance de morrer de Covid, cuja chance real (já aconteceu) é uma em mil. Aliás, é maior do que isso, pois a letalidade é maior que 0,1%. Mas o ser humano olha com esperança o fato de uma ou duas pessoas terem ganho a Mega-Sena, e olha com desdém o fato de 200 mil terem morrido de Covid. Esta é a psique humana.

Voltando a Bolsonaro e à parcela da população que não está nem aí para a epidemia. O problema é que estamos há 10 meses dizendo que tem uma loira no banheiro, e a tal da loira não aparece na vida concreta das pessoas. As pessoas sentem falta do convívio, da vida normal, e começam a retoma-la, acreditando que a loira não vai aparecer mesmo. Pelo menos, não para elas. A única forma de mudar essa percepção é acontecer um desastre de proporções bíblicas, que sirva de aviso. Tipo, cadáveres sendo carregados por caminhões do exército porque acabaram os carros funerários, e pessoas morrendo ao vivo nas portas dos hospitais por falta de atendimento. O problema é que, depois do desastre, há pouco o que se possa fazer. O próprio aviso é o desastre, de modo que, quando acontecer, pouco mais poderá ser feito.

Nassim Taleb, eu seu livro O Cisne Negro, fala sobre risco e percepção de risco. Ele faz um experimento mental, em que um legislador exige portas blindadas para a cabine do piloto dos aviões, para evitar atentados como o das torres gêmeas. Obviamente, não teria sido aprovado, pois era um risco muito baixo, desprezível. Precisou ocorrer um evento daquele tipo, de proporções bíblicas, para ser adotado, mas aí o atentado já havia ocorrido. Se tivesse sido adotado antes, o atentado não teria acontecido. Mas sem o atentado ter acontecido, todo aquele gasto pareceria inútil, pois evitava um risco muito remoto. O próprio atentado serviu de aviso, mas aí o atentado já ocorreu.

Tudo isso para dizer que aglomerações são um problema global, não é exclusividade brasileira. Elas acontecem mesmo em países onde os dirigentes estão comprados com as medidas sanitárias, pois faz parte da própria forma como os seres humanos percebem a realidade e se comportam diante dessa percepção. Claro que, como narrativa política, colocar a conta da pandemia no colo do presidente faz todo sentido. Por isso, parece-me que Bolsonaro erra ao reforçar essa narrativa. Mas, do pontos vista prático, uma parcela da população estaria se aglomerando hoje, com ou sem o aval do presidente. Bolsonaro é apenas mais um que acha que não tem loira nenhuma no banheiro. E a percepção probabilística está do lado dele.

PS.: Não estou aqui negando a tragédia que significam 200 mil óbitos por conta de uma única doença em tão pouco tempo. Longe disso. Estou apenas tentando entender a cabeça de quem não está dando importância a isso. Até para que estratégias mais eficazes possam ser adotadas.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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2 Comentários

  1. O “X” de toda esta questão é quem em 2020 NÃO temos 200 mil mortos a mais que em 2019, portando estes ‘mortos’ estão superfaturados sem dúvida, como em diversos outros lugares do mundo onde houve um grande estímulo para computar mortes por outras causas como ‘covid’. Que tal deixarmos em torno de 30-40 mil esta 200 mil? E olhe lá!

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