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Economia Aplicada a Aborto

1 Introdução

O tema aborto é polêmico e, frequentemente, perde-se em algumas discussões insolúveis. Em particular quem defende a legalização do aborto argumenta que o sistema neurológico não se forma antes da décima-segunda semana de gestação e, por isso, o ser humano não se formaria até esse momento. Os que são contra a legalização costumam argumentar a respeito do potencial do ser humano e que o aborto interromperia a materialização desse potencial. Um primeiro artigo sobre o assunto é este aqui, que apresenta argumentos éticos para as duas posições e, depois, seguem-se outros por esse sítio.
O propósito deste artigo, diferentemente das abordagens tradicionais, é mostrar de uma maneira informal como a teoria econômica pode ser usada para evidenciar as escolhas da sociedade. Parece-me que essas escolhas nunca foram claramente definidas e este fato obscurece um pouco o assunto, mas não pretendo aqui esgotar o tema ou discutir todas suas nuances, até porque se trata de um tema delicado e, muitas vezes, de foro íntimo.
A abordagem que vou usar é positiva, mas, ao fim, expressarei algumas opiniões, necessariamente de caráter normativo.

2 Modelo

A forma da teoria econômica abordar esse tipo de situação é por meio de uma análise custo-benefício na situação-alvo, também chamada de tratamento, em comparação à situação alternativa ou contrafactual. O maior problema desse tipo de análise é caracterizar a situação contrafactual, especialmente quando ela inexiste ou nunca existiu. Esse argumento ficará mais claro em breve, mas no presente caso talvez não seja uma procupação.
Assim, vamos analisar aqui duas situações. Na situação I, o aborto é ilegal, exceto nos casos de estupro e risco de vida para a gestante, conforme prescreve a Lei brasileira, inovada com a decisão do STF de permitir o aborto dos anencéfalos. Essa condição é irrelevante para a análise que será feita, pois valerá nesta e na situação a seguir.
Na situação L, o aborto é legal, talvez com algumas limitações de semanas de gestação ou outras condições. Mais uma vez, essas condições não afetarão a análise a ser feita. Por conseguinte, a situação-alvo é a ilegalidade do aborto (I); e a contrafactual, sua legalização (L).
No que segue, procuro descrever os custos e benefícios de cada situação.

3 Análise

No caso de ilegalidade do aborto (I), há um número B de fetos que serão abortados, não importa o que está escrito na lei. Na prática, isso é muito comum. O problema usual é que uma fração das gestantes desses fetos são mais vulneráveis e, por isso, acabam fisicamente feridas, machucadas ou, em casos mais extremos, falecem. Admita que G seja o número dessas gestantes desafortunadas. Este é um custo evidente da política oriunda da ilegalidade (I) do aborto.
O caso de legalidade (L) parece ser mais interessante. O mesmo número B de fetos abortados não muda, pois agora é legal, e não haveria razão de quem abortaria na situação de ilegalidade (I) deixar de o fazer na situação de legalidade (L). O que muda, em tese, é G, que passa a ser um número virtualmente zero, em função da assistência médica que poderá usufruir no sitema privado ou público de saúde. Eu creio que isto é um benefício claro da mudança da lei. Porém, há outros efeitos.
O segundo efeito da mudança da lei será o aborto de fetos que não seriam abortados sob ilegalidade do aborto (I), pois a lei não é inócua. Algumas pessoas não vão abortar, porque não querem correr o risco de um processo criminal, e isso se verifica empiricamente quando médicos exigem a autorização judicial para abortos mesmo em casos autorizados pela Lei. Vamos chamar esse número de Bb. Importante destacar aqui que o grupo de fetos nesse caso (Bb) existe como indivíduo e ser humano dotado de direito à vida no caso em que o aborto é ilegal (I), mas desaparece no caso de legalidade (L). Considerando que vida humana tem valor, creio que se trata de um custo da política de legalização do aborto (L).
Há um outro efeito no caso de legalização (L), alguns casais que adotariam métodos contraceptivos mais rigorosos podem relaxar quanto a isso, visto que não há penalidade caso se aborte uma gravidez indesejada. Isso pode levar a um aumento de doenças sexualmente transmissíveis como efeito colateral da mesma política. De qualquer forma, creio que esse número não deve ser significativo, pois continuam existindo custos financeiros e não financeiros ao relaxamento. Admita que o número de fetos abortados nessa situação seja Bbb. Acontece que esse grupo de fetos não existirá em nenhum dos casos, seja de aborto ilegal (I) ou legal (L), seja porque se usou um método contraceptivo de forma mais rigorosa no caso da ilegalidade do aborto (I), ou porque se abortou no caso da legalidade (L). Por isso, o grupo de fetos abortados (Bbb) não é custo evidente da política de legalização do aborto (L).

4 Discussão

Em resumo, temos o seguinte quadro resultante:

Aborto Ilegal (I) Aborto Legal (L)
Custo Benefício Custo Benefício
B Bb B G
G   Bb  

  A métrica para colocar B como custo é de vidas humanas em potencial, mas veja como é irrelevante na análise, haja vista que desaparecem em qualquer situação, da mesma forma que Bbb. Por inspeção, portanto, a política de ilegalidade do aborto (I) beneficia o grupo de bebês que nasceriam (Bb) nessa situação, mas seriam abortadas no caso de legalidade (L), às custas de G. E o contrário acontece no caso de legalidade (L).
Portanto, a decisão que a sociedade deve tomar, em termos de política legal, é se ela prefere preservar a saúde e vida das gestantes (G) via legalização do aborto (L), ou a vida dos fetos que se tornam seres humanos (Bb) com direitos no caso de ilegalidade do aborto (I).
Importante notar que a discussão sobre quando a vida começa ou quando o feto passa a ter direitos fica escanteada, pois comparam-se vidas de gestantes com vidas de fetos que efetivamente se tornam humanos com direitos. Ou seja, a discussão é sobre vidas de uns versus as vidas de outros. E a sociedade deve decidir qual grupo quer preservar.

5 Critérios de Decisão

Exposto o modelo e seus resultados, vamos a questões normativas sobre como decidir sobre o tema, como se isso pudesse ser feito aqui, sem passar por uma ampla discussão na sociedade. A pergunta é: por que a sociedade deveria proteger o grupo G às custas do grupo Bb ou vice-versa?
É necessário estabelecer um conjunto de critérios, e fica difícil, se considerarmos que nesse caso o viés ideológico acaba predominando. Mas, inicialmente, eu diria que o critério “meu corpo, minhas regras”, usual entre progressistas, não se aplica ao caso, pois ficou evidenciado que há dois grupos de seres humanos a serem comparados.
No que segue, elenco alguns critérios, sem querer exaurir as possibilidades, que me parece numerosa. Sem dúvida, qualquer dos critérios é discutível e, certamente, não é definitivo.
Se o critério para decidir for idade, parece-me que o grupo Bb tem mais potencial por ser mais jovem que o de gestantes (G). Mas, é razoável supor que os mais velhos, por fazerem a lei, têm um natural conflito de interesse.
Se o critério para decidir for proteger o mais vulnerável, é difícil achar que o grupo Bb não é o mais vulnerável.
Se o critério for proteger quem não é responsável pela situação, forçoso concluir que o Bb não tem responsabilidade pela gravidez indesejada de seus pais.
Se o critério for proteger o maior número de vidas, a questão é empírica e requer números.
Se o critério for o de maior benefício social, de novo é uma questão empírica e requer números. É certo que uma fração de Bb, cuja família é mais vulnerável, estará em condições potencialmente piores do que gestantes que puderam usar livremente o sistema de saúde para o aborto.
Se o critério for ético, o que envolve de certa maneira os critérios mencionados anteriormente, associado a uma questão moral ou até religiosa, tenho a impressão de que Bb teria mais chances de ser escolhido para proteção, caso da legislação presente.
Vou encerrar por aqui, certo de que não elenquei todas as possibilidades de critérios, o que deixo isso para futuras reflexões. Também não creio que a discussão breve sobre cada critério seja suficiente. Trata-se somente de algumas conjecturas.

6 Conclusão

Acredito que o aborto seja traumatizante para a gestante em qualquer circunstância possível. Só o desespero sobre o futuro de si própria ou de seu(sua) filho(a) pode levar a uma decisão extrema como essa.
Por outro lado, evoluímos como sociedade e temos meios contraceptivos para evitar uma gravidez indesejada. Parece-me que em qualquer política, o uso desses meios é a forma menos custosa de enfrentar essa situação.

PS: Algumas pessoas tiveram dificuldades com a notação que usei. Por isso, troquei B’ para Bb e B” para Bbb. Estes seriam abortados no caso de legalidade, mas não seriam concebidos no caso de ilegalidade; aqueles seriam concebidos no caso de ilegalidade, mas abortados no caso de legalidade.

Rodrigo De Losso

Rodrigo De Losso tem Ph.D em Economia pela Universidade de Chicago e é professor do Departamento de Economia da USP. A ideia aqui é mostrar como teoria econômica pode ser aplicada a temas do cotidanos, às vezes polêmicos, sem deixar de falar dos outros assuntos que o interessam com música, vinhos, literatura, cinema e política.

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