Opinião

A Guerra na Ucrânia – Capítulo 3: Os referendos e as eleições presidenciais

Através do acompanhamento das diversas votações ao longo da curta história da Ucrânia independente, poderemos observar o vai-e-vem das preferências e simpatias dos cidadãos ucranianos, assim como as divisões geográficas e étnicas dessas votações.

O Referendo da Independência

A Ucrânia moderna nasce em 1991, com a dissolução da União Soviética. Vladimir Putin, em sua campanha para justificar as suas ações, defende a ideia de que a Ucrânia e a Rússia formam um só país e a Ucrânia, de fato, nunca existiu como país soberano. Realmente, isso aconteceu no passado. Durante o reinado de Catarina a Grande, entre 1764 e 1781, a antiga Ucrânia foi absorvida pelo Império Russo, e assim ficou até a revolução bolchevique de 1917, quando a região foi constituída como a República Soviética da Ucrânia, passando a fazer parte da União Soviética. Com a sua dissolução, temos o ato fundacional da Ucrânia moderna em 01/12/1991, quando ocorre o referendo popular do ato de Independência da Ucrânia, texto que havia sido elaborado pelo Congresso ucraniano em 24/08/1991. Boris Yeltsin, no dia seguinte ao referendo, reconheceu o seu resultado.

texto da declaração da independência diz o seguinte:

Em vista do perigo mortal que cerca a Ucrânia em conexão com o golpe de estado na URSS em 19 de agosto de 1991,

Continuando a tradição de mil anos de desenvolvimento do Estado da Ucrânia,

Procedendo do direito de uma nação à autodeterminação de acordo com a Carta das Nações Unidas e outros documentos legais internacionais, e

Implementando a Declaração de Soberania do Estado da Ucrânia,

a Verkhovna Rada (Congreso) da República Socialista Soviética Ucraniana solenemente

DECLARA

a Independência da Ucrânia e a criação de um estado ucraniano independente – UCRÂNIA.

– O território da Ucrânia é indivisível e inviolável.

– A partir deste dia em diante, apenas a Constituição e as leis da Ucrânia são válidas no território da Ucrânia.

– Este ato entra em vigor no momento de sua aprovação.

Note a menção à “indivisibilidade” e “inviolabilidade” do território ucraniano. O resultado desse referendo é fundamental para entender o que vem nos anos seguintes. No mapa a seguir, temos o nível de aprovação desse ato por província (fonte aqui).

Observe no mapa abaixo que mesmo nas províncias do leste, o apoio à independência foi acima de 80% dos votantes. O referendo foi aprovado mesmo na Crimeia e Sevastopol, onde a população de origem russa é ampla maioria.

No gráfico abaixo, temos as 10 províncias com maior população russa, e o percentual da população russa sobre a população total que votou pela independência:

As barras azuis mostram o percentual de população russa em cada província e na cidade de Sevastopol, de acordo com o censo de 1989. Podemos observar que Crimeia, Donetsk, Sevastopol e Luhansk têm mais do que 70% de sua população de origem russa.

Já as barras laranjas mostram a parcela da população russa sobre a população total que votou pela independência da Ucrânia. Com exceção da Crimeia e de Sevastopol, em que cerca de 45% da população russa votou pela independência, em todas as outras províncias a independência teve o apoio de mais de 70% dessa população, sendo que em Donetsk e Luhansk, as duas províncias rebeldes, esse apoio chegou a 80%. Na província de Dnipropetrovsk, onde Zelensky nasceu, 73% da população de origem russa votou a favor da independência.

Houve um comparecimento total de 84% da população apta a votar. Cabe destacar que o referendo foi acompanhado de perto por observadores ocidentais.

Eleição presidencial 1991

Na mesma votação no referendo da independência, foi eleito o 1º presidente da Ucrânia, o antigo presidente do Soviete Supremo (Parlamento) da Ucrânia, Leonid Kravchuk, que venceu com 62% dos votos no 1º turno. Seria a primeira e última eleição em que o eleito venceu no 1º turno com larga margem, até o advento de Volodymyr Zelensky, em 2019.

Interessante observar que Kravchuk foi eleito mesmo tendo sido o último burocrata apontado pela antiga União Soviética para comandar a Ucrânia, vencendo candidatos que se notabilizaram pela sua dissidência e que estavam presos até há pouco tempo. Aparentemente, conseguiu, durante a campanha presidencial, convencer seus compatriotas de sua “conversão” à causa da independência, e se mostrou o mais preparado para liderar a transição.

No mapa a seguir, vemos a distribuição dos votos de Kravchuk pelas províncias. Podemos observar que as votações do presidente estão razoavelmente espalhadas pelo país, tendo perdido em apenas 3 províncias, as de tendência mais nacionalistas. Esta dominância de um candidato no país inteiro somente irá repetir-se com a eleição de Zelensky, em 2019.

Eleição presidencial 1994

Dadas as condições péssimas da economia ucraniana pós-independência, as condições políticas de Kravchuk ficaram insustentáveis, e ele concordou em antecipar as eleições, que estavam programadas para 1995. Assim, em julho de 1994, o presidente Leonid Kravchuk concorreu à reeleição, mas perdeu para Leonid Kuchma no 2º turno, por 53,6% a 46,4%. O interessante é que o incumbente, que havia perdido as eleições nas províncias do Oeste nas eleições anteriores, foi o mais votado nessas províncias nas eleições de 1994, conforme podemos observar no mapa a seguir:

Aparentemente, o seu desafiante Kuchma era ainda mais pró-Rússia do que o antigo líder do Soviete Supremo ucraniano, o que levou as províncias nacionalistas do Oeste a escolherem preferencialmente o atual presidente. Mas o que fez Kravchuk perder a cadeira certamente foi a questão econômica: como vimos no 1º capítulo da série, o PIB ucraniano encolheu nada menos do que 15% em 1993 e 25% em 1994, um verdadeiro descalabro econômico.

Esta é a primeira eleição em que vemos uma divisão clara entre o Leste e o Oeste da Ucrânia. Este padrão irá se repetir mais fortemente a partir das eleições de 2004.

Eleição presidencial 1999

Em 1999 tivemos a única reeleição na história ucraniana moderna, com Leonid Kuchma sendo reconduzido à presidência com uma margem folgada no 2º turno, de 59,8% a 41,2% de seu oponente, Petro Symonenko, do Partido Comunista. Kushma obteve votação mais forte nas províncias do Oeste (veja o mapa abaixo), o que é mais compreensível, dado o partido do seu adversário. No entanto, podemos observar que Kushma, apesar de ser mais à direita do que seu adversário, conseguiu votações importantes no Leste, como em Donetsk e Sevastopol. A distribuição dos votos entre Leste russo / Oeste europeu ficou borrada aqui.

Eleição presidencial 2004

As eleições de 2004 marcam uma virada histórica na vida política ucraniana. O candidato do presidente Leonid Kuchma era o seu primeiro-ministro Viktor Yanukovych, do Partido das Regiões, pró-Rússia. O seu adversário era Viktor Yushchenko, do bloco Nossa Ucrânia, que congregava desde partidos e políticos pró-Europa até as franjas nacionalistas de extrema-direita. As eleições são disputadas palmo a palmo, e Yanukovych obtém uma vitória apertada, por 51,5% a 48,5%.

Mas assim que os resultados foram divulgados, começaram protestos em várias cidades ucranianas contra evidentes fraudes eleitorais a favor do candidato do governo (falaremos mais sobre isso no próximo capítulo). Era a Revolução Laranja, que recebeu esse nome porque os manifestantes usavam fitas cor de laranja. Com a pressão, a Suprema Corte cancelou o 2º turno, que foi repetido. Na nova eleição, o candidato da oposição conquistou a presidência com uma vantagem de 54,0% a 46,0%.

A distribuição dos votos pelas províncias pode ser vista no mapa a seguir (os números representam as votações na primeira e na segunda eleição, respectivamente). Observe como todos os números a favor de Yunukovych diminuíram e todos os números a favor de Yuschenko aumentaram. As maiores diferenças ocorreram nas províncias do Oeste, onde houve os maiores protestos contra fraudes.

Essa eleição marcou claramente a divisão do país entre províncias do Oeste / Norte e do Leste / Sul, e que será o padrão até as eleições de 2019.

Eleição presidencial 2010

O mundo não gira, ele capota. O mesmo Viktor Yanukovych que havia tido a sua vitória anulada pelo Supremo em 2004, venceu as eleições de 2010 por uma diferença apertada, de 51,9% a 48,1%. Sua adversária no 2º turno, Yulia Tymoshenko, era uma das lideranças políticas mais radicais pró-Europa, e seria presa pelo governo de Yanukovych no ano seguinte, o que foi amplamente condenado pela comunidade internacional. O incumbente, Viktor Yushchenko, recebeu apenas 5,5% dos votos no 1º turno, contra 35,3% de Yanukovych e 25,0% de Tymoshenko. Os eleitores ucranianos definitivamente não tratam bem os incumbentes. Yushchenko e Tymoshenko representavam mais ou menos o mesmo campo político, mas Tymoshenko era mais radical, provável razão de ter atraído mais votos no 1º turno.

A distribuição dos votos nas províncias foi a seguinte:

Eleição presidencial 2014

As próximas eleições deveriam ser em 2015. No entanto, o Euromaidan, que será analisado no próximo capítulo, mudou tudo. Com a queda do presidente Yanukovych, as eleições foram antecipadas para maio de 2014, e vencidas por Petro Poroshenko já no 1º turno, com 56,7% dos votos válidos. Em um distante segundo lugar, ficou novamente Yulia Tymoshenko, com apenas 13,0% dos votos válidos.

Poroshenko foi visto como a solução de compromisso do Euromaidan, um candidato centrista que poderia ser aceito pelos russófonos do Leste, uma vez que o Partido das Regiões, do presidente afastado Viktor Yanukovich, havia sido banido. De qualquer modo, sua votação nessa região foi das menores, como podemos ver no mapa a seguir:

Não houve votação na Crimeia, já anexada pela Rússia, e em partes de Luhansk e Donetsk.

Eleição presidencial 2019

O 1º turno das eleições de 2019 levaram ao 2º turno a novidade dessas eleições, o comediante Volodymyr Zelensky, com 30,2% dos votos, e o incumbente Petro Poroshenko, que obteve 16,0% dos votos. O 2º turno, como dizem os americanos, foi um landslide: Zelensky ganhou em todas as províncias menos uma, Lviv, centro do nacionalismo ucraniano, obtendo um total de 75,0% dos votos. Mesmo províncias que normalmente votam em candidatos pró-Europa ou nacionalistas, como Ternopil e Ivano-Frankisky, deram a maior parte dos votos para Zelenksy, que ganhou nesses territórios por uma vantagem mais estreita do que no restante do país.

Vale a pena, no entanto, analisar o voto das províncias do Leste/Sul, onde Zelensky obteve a maior parte de seus votos. No primeiro turno, Donetsk e Luhansk deram a vitória a Yuriy Boyko, o candidato mais pró-Rússia do pleito, enquanto Lviv, Ivano-Frankvisk e Ternopil deram a vitória a Yulia Tymoshenko, radical pró-Europa, a mesma que havia sido presa pelo presidente Viktor Yanukovych em 2011 e que foi libertada depois do Euromaidan. No 2º turno, entre um candidato pró-europeu mais centrista e outro que era uma incógnita, a Ucrânia votou maciçamente em Zelensky, que ganhou o 2º turno com 73% dos votos. Suas maiores votações ocorreram justamente no Leste e Sul, o que não surpreende. Mas a sua vitória em regiões claramente mais pró-Europa, e mesmo em províncias marcadamente nacionalistas, demonstraram o quanto o povo estava cansado do status quo e quanto ansiava por algo diferente.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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