Opinião

Escolha política não define caráter

Assisti ontem a um filme indiano despretensioso mas muito bom: The Pad Man. Trata da história de um empreendedor indiano que bolou uma máquina para fabricar absorventes higiênicos baratos, com o fim de popularizar o seu uso entre as mulheres indianas.

Vou escrever dois posts a respeito, um mais “sociológico” e outro do ponto de vista econômico. Este é o primeiro, que abordará o aspecto sociológico.

A inspiração que levou à invenção foi a esposa do inventor. Condoído pelo fato de que a esposa usasse um pano pouco higiênico “naqueles dias”, ele foi comprar absorventes na farmácia. No entanto, custavam uma pequena fortuna, e a esposa se recusou a usar, dizendo que não era justo, pois o inventor tinha irmãs que também tinham o mesmo direito, e não havia dinheiro para comprar para todas. Começa daí a saga para chegar em algo mais barato.

O grande obstáculo enfrentado pelo inventor não foi tecnológico, como se poderia supor. Foi sociológico: em uma sociedade extremamente conservadora, os homens não podiam conversar sobre esse assunto, quanto mais testar um invento. Não havia forma de avançar se as mulheres simplesmente se recusavam a usar o absorvente fabricado pelo inventor.

Houve o choque de duas mentalidades: a do inventor, que sinceramente queria resolver o problema mensal da esposa, e o da sociedade onde ele estava inserido, cuja escala de valores dava mais importância para a intimidade das mulheres do que para a sua saúde.

Nós, com nossa mentalidade ocidental urbana, nos colocamos automaticamente ao lado do inventor na história: que absurdo, pensamos, a postura da esposa e de seus parentes, que rechaçam, por uma tradição tola, a oportunidade de melhorar o padrão de vida das mulheres.

Isso me fez um pensar um pouco sobre os nossos posicionamentos políticos. As pessoas têm formas diferentes de fazer o que consideram “o bem”. As opções políticas não são, em grande parte do tempo, uma sinalização da retidão moral de ninguém. São apenas opções diferentes para se fazer “o bem”.

Em certos círculos, é preciso tomar cuidado ao dizer que se vota em Bolsonaro, pois isso torna a pessoa homofobica, racista, misógina e, mais recentemente, genocida. Assim como em certos círculos é preciso tomar cuidado ao dizer que se vota em Lula, pois isso torna a pessoa conivente com a ladroagem e com regimes liberticidas.

Ao ligar a opção política a um problema de caráter, fecha-se qualquer possibilidade de diálogo civilizado. Afinal, como dialogar com alguém que não tem caráter? No filme, as pessoas da aldeia acreditavam piamente que o inventor era um mau caráter que queria se aproveitar das mulheres. Não havia possibilidade de diálogo.

Quando se trata de política, essa mistura entre moral e opinião é um veneno. A política é o campo onde os seres humanos organizamo-nos como sociedade civilizada. Fora da política, o que temos é a barbárie, a lei do mais forte. E a política, que deveria ser o campo do entendimento, do mínimo denominador comum, muitas vezes se converte em campo de batalha moral. Somos o “nós contra eles”, em que seres humanos que se acham “do bem” lançam o seu “fatwa” sobre os seres humanos “do mal”.

Conheço gente muito boa e honesta que votou em Haddad e vai votar em Lula na próxima eleição, e gente muito boa e honesta que votou em Bolsonaro e vai votar em Bolsonaro novamente na próxima eleição. O voto não deveria servir de parâmetro para o caráter de uma pessoa. O voto é apenas o resultado de uma escala de valores que, às vezes, não é o nosso. Todos querem o bem, apenas por caminhos diferentes.

Sinceramente, acho que falta uma abertura para entender o outro. Colocar-se no seu sapato, como dizem os americanos. Procurar entender a escala de valores que rege as suas preferências e decisões. Seria bom se reconhecêssemos que somos imperfeitos na compreensão do mundo que nos cerca, temos uma visão muito particular e limitada pela nossa formação, história de vida e psicologia. Em determinado do filme, o inventor consegue furar o bloqueio social. Isso só acontece quando ele se coloca no lugar do outro, respeitando a sua escala de valores.

Tenho respondido a certos comentários aqui com um “essa é a sua opinião”, apesar de até poder concordar com a pessoa, e de fato concordar na maioria das vezes. No entanto, quero tentar mostrar, com isso, que existem outras opiniões e posicionamentos, e seria interessante procurar compreender porque isso acontece, de modo a acertar mais na análise da realidade. Da realidade como ela é, não como nós desejaríamos que ela fosse.

É sempre muito agradável conversar com pessoas que concordam conosco 100%. Mas é pouco útil. Saímos mais enriquecidos e conscientes de nossas limitações se ouvimos opiniões diversas, procurando entender a escala de valores que está por trás daquelas opiniões. Entender não significa concordar. Eu posso achar, por exemplo, que o PT e o Lula são a pior desgraça que aconteceu ao Brasil nos últimos 30 anos, ou que Bolsonaro é um genocida cruel. Mas isso não me permite desconfiar da integridade de quem discorda de mim.

Enfim, sei lá. É isso.

PS.: Não quero, de maneira alguma, relativizar o bem e o mal. Há coisas certas e há coisas erradas. Os políticos fazem coisas certas e fazem coisas erradas. Isso não está em discussão. O meu ponto é que o apoio a político A, B ou C não deveria ser medida do caráter de ninguém. Nós apenas arranhamos a superfície da natureza humana.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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