Opinião

As bets. Ou o escândalo seletivo.

A vida é dura e são raros os seres humanos plenamente equipados para suportá-la. Daí nascem as válvulas de escape. Todo vício é, em última análise, uma válvula de escape.

Fumo, bebidas, jogos, drogas, sexo, comida, entretenimento, redes sociais. Tudo isso é usado como válvula de escape, e tem a capacidade, maior ou menor, de viciar.

Vejamos o mercado de bebidas. A Ambev, líder do mercado de cervejas, faturou R$ 80 bilhões no ano passado, dos quais 50% foram com a venda de cervejas (fonte: balanço da Ambev). A Ambev representa mais ou menos 60% do mercado brasileiro de cervejas (fonte: Abrasel), o que significa que, em 2023, esse mercado representou aproximadamente R$ 67 bilhões em vendas. Isso é só cerveja, sem considerar bebidas destiladas, como cachaça e vinho.

Coincidentemente, estudo recente do Itaú estimou o tamanho do mercado de bets em R$ 68 bilhões em 2023, o mesmo montante gasto com cervejas. De repente, descobrimos que há um novo vício na praça dos vícios.

E aí?

As bets viciam, as bebidas alcoólicas também. Nem todo mundo que bebe fica viciado, assim como nem todo mundo que aposta se vicia em jogo.

No final do dia, bebidas e apostas fazem parte daquele conjunto de bens que aliviam a barra, que trazem um pouco de prazer nessa vida já tão dura. Um relaxamento, uma diversão, uma válvula de escape. Qual o percentual de pessoas ultrapassa o limite do vício ao beber? Qual o percentual de pessoas ultrapassa o limite do vício ao jogar? Não consegui encontrar essa estatística, se é que existe. Mas difícil dizer, a priori, o que tem maior potencial viciante.

Causou furor um ranking publicado recentemente dos países com o maior número de acessos a sites de apostas esportivas em 2022. O Brasil aparece folgadamente em primeiro lugar, com o dobro de acessos do Reino Unido, o 2º lugar. Mas como sabe qualquer um que lide minimamente com estatísticas, é preciso corrigir esses números pelo tamanho de cada população. Quando fazemos isso, o Brasil fica em 2º lugar, bem atrás do Reino Unido, e não muito distante da Austrália, Peru, Turquia e Ucrânia.

E como a tabela engloba apenas os 10 primeiros colocados em termos de número absoluto de acessos, podemos estar perdendo outros países com menos acessos, mas com populações bem menores.

O fato é que os sites de apostas já estão começando a comer uma fatia do orçamento das famílias. Isso é bom ou é ruim? Depende. Se apostar for considerado um vício, isso é ruim, tanto quanto o consumo de bebidas alcoólicas. Por outro lado, se apostar for considerado como a compra de um produto como outro qualquer, trata-se da disputa normal pelo share of wallet do consumidor. No caso, o consumidor está procurando algo que lhe proporcione diversão e alívio para a pressão do dia a dia, e abrindo mão de outras alternativas de consumo.

Sim, sem dúvida, alguns vão se viciar e arruinar as finanças da família, assim como alguns vão abusar da bebida e causar tragédias no trânsito e arruinar suas famílias. Nem por isso deixamos de ter propaganda de bebida, com o onipresente “beba com moderação”, que, aliás, já começa a fazer parte da propaganda das bets (“aposte com moderação”).

Aliás, vamos falar de arruinar as finanças da família. No gráfico abaixo, temos a evolução do endividamento das famílias em relação à sua renda nos últimos 12 meses, exceto crédito habitacional.

Observe como houve um aumento do endividamento em 2021, no pós-pandemia, provavelmente porque as famílias elevaram o seu padrão de vida com o auxílio emergencial e a taxa de juros ultrabaixa em 2020, e foram pegas de surpresa com a inflação e o aumento da taxa de juros a partir de 2021. Mas note que o endividamento se estabilizou e até recuou um pouco a partir de 2022.

Podemos concluir duas coisas aqui:

1)      As bets, que começaram a ganhar tração em 2022, aparentemente pouco moveram o ponteiro do endividamento e, principalmente,

2)      Não são necessárias as bets para que os brasileiros se encalacrem em dívidas e arruínem as finanças de suas famílias.

Com relação a esse segundo ponto, é público e notório que os brasileiros gastam como se não houvesse amanhã, mesmo com uma das taxas de juros mais altas do mundo. A educação financeira é uma miragem, e as famílias são presas fáceis dos mais variados apelos ao consumo. Nem por isso se vê preocupação com o bombardeio de propaganda a que são submetidos os brasileiros 24 horas por dia, 7 dias por semana. Aliás, o cartão de crédito, principal instrumento de dívida do brasileiro, é tratado como um produto financeiro como outro qualquer, e não como uma arma que mata, como as bets. O consumo desenfreado, facilitado pelo cartão de crédito, também é um vício que arruína famílias.

Não me entendam mal. Não sou contra bebidas alcoólicas ou cartões de crédito ou o consumo a prori. Pelo contrário. Meu ponto é que todas essas coisas podem ser boas ou más, a depender do seu uso. Isso inclui as bets e os jogos de maneira geral.

Não tenho procuração de nenhuma empresa de bet, eu mesmo nunca apostei em um troço desses. Só me incomoda a falta de coerência. Se vamos começar cruzadas contra o vício, que seja contra todos os vícios. Senão, fica parecendo reserva de mercado para alguns vícios.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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Um Comentário

  1. Marcelo,
    Mais um excelente artigo. Sempre bem embasado com destaque, para mim, da sua observação pouco explorada em outros artigos:
    “Mas como sabe qualquer um que lide minimamente com estatísticas, é preciso corrigir esses números pelo tamanho de cada população.
    Apenas acrescento que , então, taxe-se mais os jogos, porque, em tese, gerarão mais carga sobre o SUS no futuro.

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