Livros

“O esplêndido e o vil”, uma resenha

Meu amigo Leonel Andrade, ciente do meu apreço pela temática das duas grandes guerras mundiais, me presenteou com o livro ‘O esplêndido e o vil’, do jornalista Erik Larson. Aclamado pela crítica, trata-se de um ‘tijolaço’ de 549 páginas, que cobre o período em que Churchill assume como primeiro Ministro da Inglaterra, em 10/05/1940 até Dezembro/1941, quando os EUA, atacados pelo Japão, entram na guerra e o Reino Unido deixa de ser o único antagonista livre às potências do Eixo. Com tão boas recomendações, a obra furou fila na minha lista e ganhou o direito à primeira resenha do ano.

Para começar, vale destacar o quão admirável é o trabalho de pesquisa do autor, que investiu muito tempo na leitura de dezenas de livros correlatos,  debruçou-se sobre os mais variados diários da época, assim como obras biográficas que foram surgindo ao longo das décadas após o término da guerra, para condensar de maneira brilhante seu conhecimento em uma obra que nos conduz à rotina de Churchill e seu círculo mais íntimo ao longo do biênio 1940/41, com pinceladas de histórias sobre pessoas comuns, assim como informações e algumas curiosidades sobre o alto comando do maligno Adolf Hitler.

A impressão que se tem ao longo da leitura, fácil e coloquial, é que somos convidados de uma espécie de ‘reality show’, com o grande personagem britânico do século XX na condição de protagonista. Em pouco tempo, nos tornamos íntimos das reuniões no número 10 da Downing Street, residência oficial do primeiro-ministro britânico, e dos finais de semana em Chequers, casa de campo disponibilizada para a família Churchill durante a guerra. Também passamos a acompanhar com atenção as inquietações da vida de jovens como John Colville (um dos secretários particulares de Churchill, cujos diários forneceram matéria prima para sua biografia, publicada em 1986), Mary Churchill (filha caçula do primeiro ministro, à época com 18 anos), Pamela Churchill (nora de Wintson, casada com seu problemático filho Randoplh) e outros tantos personagens próximos do primeiro ministro.

Fracassada a abordagem pacifista de Neville Chamberlain, cujo gabinete caiu em Maio/1940 após os contundentes avanços nazistas no continente europeu, a escolha para substituí-lo recaiu sobre Lord Halifax, que recusou o cargo em prol de Churchill, a quem considerava mais talhado para o cargo em tempos de guerra. O então veterano político, de 66 anos, não decepcionou sua intuição, conduzindo o Reino Unido, sozinho até o final de 1941, em uma guerra contra um adversário que até então ostentava uma supremacia bélica supostamente insuperável.

“Eu me senti levado pelo destino, como se toda minha vida até aqui não passasse de uma preparação para esta hora e desafio”….Winston Churchill, sobre o convite para ser primeiro ministro.

“O efeito na sede do governo foi dramático, sob o comando de Chamberlain, mesmo o advento da guerra não alterou o ritmo de trabalho, mas Churchill era um dínamo. Para espanto de Colville, servidores civis respeitáveis eram vistos correndo pelos corredores. Para Colville e seus colegas membros do secretariado privado de Churchill, o volume de trabalho aumentou para quantidades antes inimagináveis. Churchill emitia diretrizes e ordens em memorandos breves conhecidos como minutas, ditando-as para datilógrafas, as quais sempre estavam por perto, desde o momento em que acordava até a hora que fosse dormir.’….extraído do capítulo 4, Energizado.

 O livro também nos fornece detalhes interessantes sobre Lorde Beaverbrook, amigo próximo de Churchill e que foi nomeado ministro para produção de aeronaves, tarefa que cumpriu com louvor, fomentando a legendária RAF (Royal Air Force) com matéria prima suficiente para competir contra a Luftwaffe. Fosse a obra um filme, Beaverbrook, que renunciou 14 vezes durante o mandato de Chruchill (que só aceitou a décima quarta), seria candidato ao Oscar de melhor ator coadjuvante.

Finalizado o humilhante domínio alemão na França, a Grã Bretanha passou a ser a próxima investida dos nazistas, que pretendiam invadi-la ou ao menos rendê-la, a partir de sucessivos ataques aéreos que permitiriam enfraquecer as defesas das ilhas para que então pudessem empreender uma invasão. Foram meses de bombardeios intensos sobre as maiores cidades inglesas, Londres como principal alvo, período no qual tanto a RAF quanto a população resistiram bravamente. A rotina dos britânicos, as agruras desse período, os desafios de Churchill no âmbito político, também com algumas pitadas de vida pessoal, sua famosa retórica inflamada, que manteve a moral da população em alta são a tônica de boa parte do livro.

“O racionamento continuou sendo irritante. Não havia ovo algum nas lojas, mas era algo possível de se adaptar. As famílias passaram a criar galinhas no quintal, uma tática adotada pelo Professor, que mantinha galinhas em seu laboratório e na Christ Church Meadows, em Oxford. Uma pesquisa Gallup descobriu que 33% da população passou a cultivar a própria comida ou criar animais” …capítulo 51, Refúgio.

“A aparente resiliência da Inglaterra tinha repercussões inesperadas – e preocupantes – em casa, entre o povo alemão. Com a Inglaterra ainda lutando, os alemães perceberam que um segundo inverno em guerra era inevitável. O descontentamento crescia. Noticias de que o governo alemão havia ordenado uma evacuação obrigatória de crianças em Berlim provocou um aumento de ansiedade popular, pois contradizia a própria propaganda de Goebbels, que visava assegurar a capacidade da Luftwaffe de defender a Alemanha contra ataques aéreos. As evacuações eram voluntárias, frisou Goebbels em uma reunião seguinte, na quinta-feira, 3 de Outubro, e prometeu que qualquer um que estivesse espalhando boatos contrários ‘devia esperar ser enviado para um campo de concentração’ “ …capítulo 52, Berlim.

Do livro podem ser tiradas várias conclusões, ao gosto do leitor, sobre diferentes assuntos:

Primeiramente, para mim, chama atenção a resiliência do cidadão comum diante de meses de ataques aéreos, quase sempre noturnos, e que poderiam matá-lo ou feri-lo, à sua família, além de destruir sua casa. À medida do possível, os britânicos ‘tocaram a vida’ como se esse período fosse somente uma pedra em seus sapatos. Não sei se a famosa ‘fleuma’ britânica foi forjada nesses eventos, mas se não foi, certamente ali consolidou-se. Também interessante saber que os ataques ocorriam à noite, hora do dia em que por muito tempo a RAF teve dificuldade para interceptar os aviões inimigos. Os bombardeios alemães primeiramente lançavam bombas incendiárias, que iluminavam os alvos para as bombas letais que vinham na sequência. Imagine-se na escuridão da noite, sob ataques aéreos intensos, praticamente todos os dias por meses a fio, precedidos por alarmes e na sequência pelos ‘zunidos’ das bombas antes de suas explosões…

Uma iminente invasão nazista à Inglaterra sempre assustou o imaginário dos britânicos nesse período, mas ela nunca esteve perto de acontecer. Para que isso fosse possível, primeiramente a RAF deveria ser dizimada e podemos dizer que na batalha dos ares, os britânicos sempre se mantiveram à frente de seus inimigos. Como disse Churchill em um de seus célebres discursos, “nunca antes na história da humanidade, tantos deveram a tão poucos”, referindo-se especificamente ao desempenho dos pilotos da Força Aérea Britânica em uma das várias decisivas batalhas no ar.

O leitor percebe em Churchill uma personalidade com virtudes e defeitos, o autor tem o mérito de em nenhum momento partir para o endeusamento, mas é inegável que o primeiro ministro tinha absoluta claridade sobre o momento histórico e devoção total ao princípio da resistência e da busca incessante pela vitória. Soube como poucos usar da retórica, então nos rádios (que era o meio de comunicação em massa da época), para inflamar a população, assim como valeu-se em várias ocasiões de momentos simbólicos para catalisar sua popularidade. Era frequentemente visto em locais destruídos, vistoriando as construções e interagindo com as pessoas. Segundo muitos, ele ensinou os britânicos a não temerem. Segundo ele próprio, apenas os ajudou a encontrar a coragem que já possuíam.

Desde o primeiro dia de seu mandato, Churchill cortejou os EUA, na figura do não menos célebre Franklin D. Roosevelt, pois tinha convicção que a entrada americana no teatro da guerra aceleraria seu fim e traria a vitória. O livro traz detalhes das interações de Churchill com alguns emissários enviados pelo presidente americano ao Reino Unido. (Um deles, Averell Harriman, tornou-se amante da nora de Churchill, Pamela, casada com seu filho Randolph, cujo casamento se desfez ao longo da guerra. Ambos chegaram inclusive a se casar mais tarde, em 1971). Algumas passagens sobre essa relação amistosa com os EUA são imperdíveis.

“Churchill ficou na Casa Branca, assim como o secretário Martin e vários outros, e pôde ver bem de perto o círculo secreto de Roosevelt. Roosevelt, por sua vez, também pôde ver Churchill de perto. Na primeira noite que Churchill e sua comitiva passaram na Casa Branca, o inspetor Thompson – que também era um dos hóspedes – ficou com Churchill no quarto dele, explorando vários pontos de perigo, quando alguém bateu à porta. Instruído por Churchill, Thompson abriu e encontrou o presidente do lado de fora em sua cadeira de rodas, sozinho no corredor. Thompson abriu bem a porta, e em seguida, viu uma expressão estranha tomar o rosto do presidente enquanto ele olhava para o quarto atrás do detetive. ‘Eu me virei’, escreveu Thompson. ‘Winston Churchill estava completamente nu, com uma bebida em uma mão e um charuto na outra’.

O presidente se preparou para sair.

‘Entre, Franklin’, disse Churchill. ‘Estamos sozinhos’.

O presidente ‘deu de ombros de um jeito esquisito e depois entrou. ‘Está vendo, senhor presidente’, disse Churchill, ‘eu não tenho nada a esconder’.

Churchill atirou uma toalha sobre o ombro e, durante a hora seguinte, conversou com Roosevelt enquanto andava pela sala nu, tomando seu drinque e de vez em quando enchendo o copo do presidente” ….capítulo 101, Um fim de semana em Chequers.

Os infortúnios de uma guerra trazem perdas humanas e destruição. Mas como tudo na vida, algo de bom pode surgir do período de trevas. O sentimento patriótico, por exemplo, é construído na guerra, situação em que pessoas colocam a defesa de seu país à frente de interesses pessoais (a ponto de colocar suas vidas em risco) e o bem coletivo realmente passa a ser verdadeiramente prioritário, independentemente das cores ideológicas dos governos. Quando vivi em Londres, em 2007/2008 me chamava atenção um dia do ano em que todos (ou quase todos) usavam uma lapela em forma de rosa na roupa, em homenagem aos soldados que lutaram pelo Reino Unido, algo que já havia passado há muitas décadas, mas que permanece vivo na memória do país. Claramente é um sentimento mais forte do que o amor à pátria em Copas do Mundo. Não menos importante é o despertar de lideranças, que talvez não tivessem o mesmo impacto em tempos de paz, mas que durante as guerras são capazes de mudar o mundo, felizmente para melhor, como foi o caso de Winston Churchill.

Para todos que como eu, gostam do tema, leitura obrigatória. Recomendo!!!!

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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