Opinião

A gênese de uma Fake News

Todos acompanharam o drama do jogador dinamarquês Christian Eriksen, que caiu desacordado em um jogo da Eurocopa. Pois bem, ontem, dia 13/06, fomos surpreendidos pelo seguinte tuíte de Allan dos Santos, responsável pelo canal bolsonarista Terça Livre:

Este tuíte foi apagado, não sem antes ser retuitado como se não houvesse amanhã. O boato, que ganhou o mundo antes de chegar em terras tupiniquins, foi desmentido pelo diretor da Inter de Milão, Beppe Marotta, nesta matéria da Reuters.

Antes de continuar, se você fuçar por aí, vai encontrar muitos questionamentos do tipo: mas como os jogadores da Eurocopa estão jogando sem tomar vacina? É um questionamento que tem como objetivo colocar em dúvida a afirmação de que Eriksen realmente não tomou a vacina. Como se uma grande conspiração estivesse em curso para esconder a verdade, envolvendo dirigentes, jogadores e imprensa. O fato simples é que efetivamente grande parte dos jogadores não se vacinou, simplesmente por serem jovens. Lembrando que a vacinação na Europa não está tão adiantada como nos EUA ou no Reino Unido. Segundo esta reportagem da ESPN, a seleção da Espanha “furou a fila” em seu país para se vacinar. Mas, ao que parece, foi exceção. Sigamos.

Fiquei curioso por saber de onde veio o boato. Não foi fácil, pois vários dos tuítes foram posteriormente apagados. Nem posso dizer que tenha sido realmente essa a fonte, mas tudo indica que sim. Aparentemente, o início de tudo foi este tuíte aqui:

Parece um tuíte inocente, de alguém genuinamente preocupado com a saúde do atleta. Mas percebam o texto: alguém absolutamente saudável, com a melhor assistência média que alguém no mundo pode sonhar em ter, colapsa no gramado. Como pode? A frase final explica: ele tomou a vacina da Pfizer alguns dias atrás.

Antes de continuar, vamos ver um pouco mais sobre este perfil:

Um perfil criado há dois meses, com 109 seguidores. Não há descrição, não há local, não há nada. Só um nome engraçado. Visitando o seu perfil, podemos ver tuítes principalmente relacionados à política canadense, sempre contra medidas de isolamento e vacinas. Ok, até aqui, mais um perfil irrelevante.

O que me chamou a atenção é porque um perfil que comenta política canadense tem como seguidor um físico da Rep. Tcheca, Lubos Motl, que interagiu com o tuíte acima fazendo a seguinte pergunta:

Lubos Motl já tem um perfil mais estabelecido, com 2.661 seguidores e que existe desde 2009. Mantém um blog de curiosidades físicas e, adivinhe… de críticas a todas as políticas de combate à Covid-19.

A resposta à questão levantada por Lubos Motl (se havia uma fonte oficial para a informação de que o jogador havia tomado a vacina da Pfizer) foi excluída pelo autor. Mas eu achei de outra forma (tuítes são eternos…).

O perfil GeraYaYo2 respondeu que a informação foi dada pelo chefe da equipe médica do Inter de Milão (onde Eriksen joga) à Radio Sportiva, da Itália. Esta resposta foi imediatamente retuitada por Lubos Motl.

Seguindo Lubos Motl, temos Alex Berenson. Mr. Berenson já é alguém bem mais conhecido. Autor do livro “Tell Your Children: The Truth About Marijuana, Mental Illness, and Violence”, e ex-reporter do New York Times, Berenson tem cerca de 270 mil seguidores no Twitter. Ele retuítou o tuíte de Lubos Motl como figura, o que manteve o tuíte íntegro mesmo depois de retirado. O retuite começa com um “Aí está”, como que provando o ponto que ele tem feito, de que as vacinas são perigosas.

Como bom jornalista, ele toma o cuidado de dizer que não tem a fonte original da notícia. Como mau jornalista, ele retuita antes de se certificar que a fonte original existe.

A farsa foi desmontada em algumas horas pela própria Radio Sportiva, que tuitou o seguinte:

Não precisa saber italiano para entender o que está sendo dito: “As informações reportadas no tuíte são falsas”.

Claro que, antes desse desmentido, o tuíte já havia rodado o mundo e chegado por aqui.

A dinâmica das Fake News

O que faz as pessoas espalharem notícias de procedência duvidosa? Simples: elas confirmam uma teoria. Note que o autor e todos os que retuitaram a “notícia” tomam o cuidado de não fazer a correlação entre o mal súbito do jogador e a vacina. O primeiro gajo descreve uma pessoa absolutamente saudável que tem um mal súbito e deixa cair que havia tomado a Pfizer. O físico tcheco pede a fonte, e GeraYaYo2 inventa que ouviu na Radio Sportiva. Lembrando que GeraYaYo2 aparentemente é canadense.

Já o físico tcheco passa a informação adiante comprando a história da rádio italiana, e por sua vez é retuitado pelo jornalista americano. Este também toma o cuidado de dizer que não teve acesso primário à fonte, mas retuita do mesmo jeito. Por fim, o nosso jornalista brasileiro da Terça Livre repete a história, tomando o cuidado de dizer que não há nada que ligue a vacina ao mau súbito. “Mas o questionamento é grande”, joga no final do tuíte.

É essa a dinâmica. Não há informações, apenas uma grande sombra de suspeição. A rigor, a fake news refere-se apenas à informação de que um dirigente da Inter teria dito à rádio italiana que o jogador dinamarquês teria se vacinado com a Pfizer. Afinal, era preciso ter uma fonte, qualquer uma. Alguém fisgou a isca e passou adiante. E é neste ponto que se apegam os que espalharam a notícia: a fonte pode ter sido falsa, mas a notícia é mais do que real.

Quem foca na fake news perde o foco no que é realmente relevante

Depois de remover o tuíte falso, o físico tcheco tuitou o seguinte:

Notem como Lubos Motl não desiste da grande tese: as vacinas fazem mal e podem causar mortes. O fato de a notícia específica da rádio italiana ser falsa é um mero detalhe, irrelevante até. O mesmo podemos ver no perfil do jornalista americano, que fixou uma thread em seu perfil contando a história de uma garota que faleceu de miocardia após ter tomado a segunda dose da vacina da Moderna:

Parece-me que a grande questão aqui não é saber se as vacinas podem causar reações e, em casos extremos, até a morte. Todo e qualquer remédio pode causar reações adversas, basta ler na bula. A questão é: qual a chance de isso acontecer?

Em remédios aplicados a pequenas populações, as reações adversas não chamam a atenção. Afinal, são eventos raros. Em grandes populações, no entanto, os eventos adversos podem ser mais notados, pois são em maior número. Estatisticamente falando, no entanto, continuam sendo improváveis.

Aquele “ALERT” retuitado pelo físico tcheco e reproduzido acima, por exemplo. Trata-se de uma reportagem de um site, digamos, especializado nesse tipo de teoria (thebeltwayreport.com). A reportagem cita um report do próprio CDC, que estaria admitindo o aumento brutal de mortes devidas à vacinação. Então, você vai na fonte, e verifica que se trata das estatísticas VAERS – Vaccine Adverse Event Reporting System. Trata-se de um sistema que aceita relatos de reações adversas, mas que ainda não foram verificadas. Ou seja, não se sabe se essas reações foram realmente causadas pelas vacinas.

Esta matéria da Reuters traz as conclusões de um estudo israelense sobre reações adversas causadas pela vacina da Pfizer. Como sabemos, Israel está à frente de qualquer outra nação em termos de vacinação, e 100% das vacinas foram da Pfizer. Um perfeito campo de testes, portanto. As conclusões: de dezembro de 2020 a maio de 2021, foram reportados 275 casos de miocardia entre mais de 5 milhões de pessoas vacinadas. 95% dessas pessoas não passaram mais do que quatro dias no hospital.

O fato é que a chance não é zero de ter miocardia, mas é extremamente baixa. 5% de 275 casos em 5 milhões significa uma probabilidade de 1 em 360 mil. A chance de morrer de Covid em uma política de imunidade de rebanho (também conhecida como “vamos voltar a viver e esquecer essa doença”), considerando um índice de fatalidade de 0,1% e 70% da população pegando a doença, é de 1 em 1.400. Ou seja, uma chance 250 vezes maior do que morrer de miocardia.

Enfim, a radio italiana fake é o que tem de menos importante nessa história. O mais estarrecedor é a campanha contra as vacinas, que permitem diminuir em 250 vezes a chance de morrer. Essa é a verdadeira insanidade.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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