Brasil

31 de março ou 1º de abril?

Golpe ou contragolpe?

Se nem sobre a data de um fato histórico conseguimos chegar a um acordo, quanto mais a respeito de sua natureza.

Na minha infância não era golpe nem tampouco contragolpe. Era “Revolução”. A Revolução de 31 de março. Para não brigar, usarei neste artigo o termo “evento”, para não ferir suscetibilidades. Ou para ferir todas.

Tenho algumas lembranças esparsas desse tempo. Lembro, por exemplo, de uma multidão aglomerada em frente à minha escola, na avenida Tiradentes, em São Paulo, acenando para um comboio de carros pretos passando. Eu estava com minha mãe, que também acenava, entre alegre e excitada. Ela me explicou: era o presidente da República passando. Hoje penso que ele certamente estava indo para o aeroporto, pois a avenida Tiradentes faz parte do eixo que liga a zona Norte à zona Sul, onde fica Congonhas. Aquela multidão alegre saudava Emílio Garrastazu Médici, o terceiro general presidente. O regime era popular.

Outra lembrança também está relacionada com a escola. Fazíamos semanalmente a cerimônia de hasteamento da bandeira no pátio da escola. Todas as turmas enfileiradas cantavam, então, o hino nacional. Era obrigação de todos saber a letra de cor, mas havia sempre alguém que destoava, cantando “no teu seio” ao invés do correto “em teu seio”. A diretoria resolveu fazer uma espécie de auditoria, e foi de sala em sala para verificar como cada turma cantava o hino. Lembro que estava na 4a série, pois a minha professora chamava-se Norma, nome que depois achei bem adequado para o momento. A minha turma cantou tão bem que depois fomos em turnê por várias salas demonstrando como se cantava o hino. O regime era patriota.

Mais uma lembrança, mais uma vez relacionada com a escola, como não podia deixar de ser. Estava fazendo um trabalho sobre os presidentes do Brasil. Na época, não havia computador nem muito menos Google. Os trabalhos eram feitos em folha almaço, com base nos livros e enciclopédias. Eu tinha a Delta Larrousse em casa, e copiei as informações sobre os presidentes. Mas faltavam as ilustrações. Na época, as papelarias vendiam figuras históricas autocolantes, justamente para esses trabalhos escolares. Fui até a papelaria perto de casa, e o atendente foi me entregando as figuras dos presidentes: Médici, Costa e Silva, Castelo Branco, Jânio, Juscelino, … Daí eu notei que estava faltando a figura do João Goulart. Fiz notar essa falta ao atendente, e do gesto dele não me esqueço: com o dedo indicador nos lábios, ele me diz para falar baixo, achando graça da minha ingenuidade. Meu trabalho ficou sem a imagem do Jango. O regime era censor.

Mas essas são apenas sensações infantis. O que dizem os que eram adultos na época? Assim como as crianças, os adultos tendem a se lembrar de coisas que marcaram as suas vidas. E pintam essas coisas com as cores de suas preferências políticas e ideológicas. Para tentar fugir dessa armadilha, pesquisei os jornais da época em busca daquilo que os políticos e os formadores de opinião diziam a respeito do evento. Usei, para tanto, o acervo do Estadão, jornal acima de qualquer suspeita em relação às suas convicções democráticas. Topei com coisas bastante interessantes.

Em primeiro lugar, a deposição de Goulart era quase uma unanimidade na classe política da época. A ilustrar este ponto, é interessante ler o manifesto assinado pelo então ex-presidente Juscelino Kubitscheck, em 30/03/1964, cujas credenciais democráticas estão acima de qualquer suspeita. Kubitscheck não era da então raivosa UDN de Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, mas sim do PSD, o que atualmente poderíamos classificar como centro-esquerda, tipo PSDB.

Destaco as seguintes frases: “… o nosso apelo de paz é um apelo para que se restabeleçam em sua pureza total a disciplina e a hierarquia”. “Neste momento, tenho a responsabilidade histórica de apontar onde está a legalidade, que cumpre defender com coragem e sem ódios. […] A legalidade está onde estão a disciplina e a hierarquia”. “A casa brasileira estaria irremediavelmente dividida se as Forças Armadas se dividissem em lealdades distintas e antagônicas”. “Salvemos a paz do Brasil, salvando a única legalidade possível”.

Juscelino estava se referindo ao apoio que João Goulart havia dado a uma sublevação de marinheiros, ocorrida 3 dias antes, por maiores soldos e melhores condições de trabalho. Reinvindicações sindicalistas, portanto. E o então presidente, fiel à sua base de apoio, decidiu apoiar o movimento.

Esta foi a gota d’água de uma série de acontecimentos que levaram grande parte do establishment político e empresarial a temer que o Brasil pudesse estar sendo levado, aos poucos, para a órbita soviética. Estávamos em plena Guerra Fria, e era este o contexto. Mas quero chamar a atenção é para o caráter democrático que este mesmo establishment deu ao evento de 31 de março (ou 1º de abril, já chegaremos lá).

Em todo o país, grupos políticos e empresariais se manifestaram em favor de algum tipo de intervenção, como podemos ver nessas manchetes dos dias 31/03 e 01/04/1964:

A intervenção militar se deu após o discurso de Goulart no Automóvel Clube do RJ para sargentos do exército, no dia 30/03/1964. Nesse discurso, Jango reitera sua posição no affair da Marinha de Guerra, afirmando que a disciplina militar deve ser uma “disciplina consciente, fundada no respeito recíproco entre comandantes e comandados”. Palavras bonitas, mas facilmente interpretadas como um convite à sublevação. Além disso, o discurso é forte não somente contra as elites empresariais, como também contra os “donos de apartamentos em Copacabana, que estão cobrando aluguéis em dólares” e os “comerciantes desonestos”. Enfim, um repto contra a iniciativa privada.

Todas as manchetes saúdam o evento como uma “vitória da democracia” com amplo apoio popular.

A legalidade do movimento está estampada na capa do Estadão de 3 de abril, com a foto da posse de Ranieri Mazzilli, então presidente da Câmara, como presidente da República interino, até a eleição, pelo Congresso, de um nome que pudesse completar o mandato de Goulart, que terminaria no final do ano seguinte. Note que temos a presença do presidente do STF e do presidente do Congresso a dar o ar de legalidade necessário ao ato.

Obviamente, tratou-se do arranjo político possível. A solução do impeachment não pareceu, à época, razoável, dado o precipitar dos acontecimentos. Declarou-se a “vacância” do cargo de presidente, pois João Goulart havia fugido para o Rio Grande do Sul e, daí, para o Uruguai. Com a sede do poder vacante, tudo o que se seguiu foi absolutamente constitucional. O fato de a sede ter se tornado vacante porque o aparelho militar obrigou o presidente a fugir, senão seria preso, é apenas um detalhe que não preocupou, de maneira alguma, os democratas da época.

O editorial do Estadão do dia 02/04/1964 não deixa margem a dúvidas: “a democracia brasileira venceu a ditadura”.

Aliás, a dúvida se esclarece: o movimento teve a sua resolução no dia 01/04/1964. Como ficaria muito feio identificar uma revolução tão bonita com o Dia da Mentira, mentiram sobre a data, colocando-a no dia 31/03/1964. E assim ficou.

Interessante também observar como a imprensa estrangeira repercutiu o evento. Nesse sentido, vale a pena ler o resumo que faz o Estadão em artigo de capa no dia 03/04/1964 (sem assinatura, do que se deduz que se trata de uma espécie de editorial):

Salta aos olhos a dicotomia entre “mundo livre” e “mundo comunista”, que era a regra de então. No “mundo livre”, o evento teria sido recebido como um “movimento destinado a impedir que o comunismo internacional […] conquistasse um ponto-chave da América Latina”. Já nos países comunistas, a cobertura não passa de “uma reedição dos velhos chavões da intervenção norte-americana no País”. Enfim, fica claríssimo o pano de fundo em que se desenrolou o evento.

Mas não foi em todo o “mundo livre” que o evento foi recebido com festa. Gilles Lapouge, correspondente do Estadão em Paris, escreve, em 02/04/1964, um artigo intitulado “Mal informados os europeus sobre a situação no Brasil”.

Vale a pena destacar a seguinte frase: “Ora, os europeus pensam, naturalmente, que o Exército brasileiro é semelhante a todos os exércitos do mundo, ao da França, por exemplo, ávido por golpes de força e de ditadura, enquanto, na verdade, tanto no passado quanto no presente, o Exército brasileiro deu provas de seu senso cívico e de uma escrupulosa adesão à democracia”. Isso é Gilles Lapouge, um verdadeiro porta-voz dos ideais democráticos. Lapouge recomenda, no artigo, que o governo brasileiro realize um trabalho de esclarecimento junto à opinião pública europeia, para convencê-los de que o que se deu não foi mais uma “quartelada latino-americana”. Qualquer semelhança com a imagem do Brasil após o impeachment de Dilma Rousseff não é mera coincidência.

Termino essa viagem no tempo com um editorial do Estadão do dia 04/04/1964, para dirimir de vez a questão da nomenclatura do evento de 01/04/1964:

“Espírito revolucionário”. Portanto, é de revolução que se trata, não golpe ou contragolpe. Não foi uma palavra inventada pelos militares, mas pelo establishment e seus porta-vozes na imprensa. O golpe veio depois, quando os militares resolveram, em consonância com o “espírito revolucionário”, não largarem o osso em 1965.

De quebra, o Estadão defende que o presidente ideal para o mandato tampão seja o marechal Castelo Branco. Outra evidência de que a eleição de um militar (Castelo foi eleito pelo Congresso) estava em consonância com os tempos, não foi uma imposição dos militares.

É sempre recomendável procurar analisar os fatos históricos com os olhos de quem os viveu. É o que procurei fazer nesse artigo. Com base nas evidências aqui apresentadas, parece ser claro que o establishment político e econômico da época, com todo o apoio da classe média, removeu do poder um presidente constitucionalmente legítimo, vendo nisso o suprassumo da democracia. Os militares foram parte ativa do evento, mas estavam longe de ser a única força envolvida. O golpe foi a resposta a uma situação política insustentável: um presidente confuso, que não dava mais as cartas do jogo, que ameaçava jogar o país em um caos institucional ao insuflar o baixo oficialato, com o objetivo de agregá-lo à sua agenda, flertando com uma virada de mesa.

Hmmmm… Um presidente confuso, que não dá mais as cartas do jogo, que ameaça o país com um caos institucional ao insuflar o baixo oficialato, com o objetivo de agregá-lo à sua agenda, flertando com uma virada de mesa. O establishment político e econômico, inquieto. Jango, é você?

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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5 Comentários

  1. No livro “O Poder Militar”, de Hélio Silva, há uma descrição detalhada do “evento”, que começou na manhã do dia 31/03, com a sublevação e marcha da tropa do General Mourão rumo ao Rio de Janeiro (onde estava o Presidente Goulart). O resto foi conseqüência. Diante do ato imprevisto do Mourão, o Estadão corre atrás do “preju”, destacando a adesão do General Kruel (o comandante do II Exército, em SP), em 01/04, como o fator decisivo para a vitória do movimento.

    No mais, um ótimo levantamento.

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