Brasil

Um ´basta!´ para o país do futuro!

paisdofuturo4

Há um sentimento de intensa insatisfação no ar, e já não é de hoje. O Brasil justo e maravilhoso, potência ascendente do planeta, era parte de um conto de fadas que não resistiu por muito tempo, e gradativamente a realidade assume ares tão desagradáveis quanto aos que estávamos habituados por séculos. A sensação de que mais uma vez fomos ludibriados pela ilusão do voo de galinha é incômoda. Manifestações abrangendo milhares de jovens por todo o país ganham as ruas sob o pretexto de protestar contra o aumento das tarifas de ônibus. É o caso onde a motivação é muito maior que o objetivo em si. O tal movimento do Passe Livre, gerador da catarse popular, existe e é irrelevante há algum tempo. Seu grau de importância foi amplificado pela incompetência dos ´governos´ em dar respostas à altura das inquietações da população e da brutalidade da polícia, que ao longo das seguidas passeatas perdeu a medida de sua função e apelou para a truculência.

paisdofuturo3Em termos práticos, a questão dos 20 centavos é uma causa ´modesta´. A inflação crescente está lentamente minando os pilares de sustentação da economia, e o aumento das tarifas era inevitável. Somente não ocorreu no início do ano por um pedido do governo Federal para desinflar os índices de preços, já extremamente pressionados no primeiro semestre. Caso os prefeitos revoguem o aumento, terão que encontrar a mesma verba em outras linhas. Tão simples quanto isso, do contrário a conta não fecha. Talvez os jovens do Movimento Passe Livre ainda não tenham experiência em gerenciar um orçamento de verdade, mas dinheiro não se planta em árvore e infelizmente os recursos são limitados. Ou você incrementa as receitas, e as da prefeitura são oriundas de impostos (já abusivos) e da fábrica de multas, ou você reduz despesas, cortando pessoal (e demissões de funcionários públicos não são fáceis) ou ´desidratando´ orçamento em outras áreas, e nesse caso o efeito colateral poderia atingir serviços essenciais como saúde, educação ou saneamento. É verdade também que um regime de contenção de gastos draconiano nas prefeituras certamente encontraria oportunidades que compensariam a redução dos 20 centavos, mas nesse caso precisaríamos de uma gestão pública tão eficiente quanto as mais produtivas empresas privadas. Estamos bem distante dessa realidade. Quem sabe a partir de agora não tenhamos um movimento nesse sentido. O tempo dirá.

paisdofuturo2

Muito mais importante que o desfecho da revindicação dos 20 centavos é a manutenção da chama da insatisfação. Razões para protestar não faltam e elas podem ser tão subjetivas quanto concretas. A questão da violência, uma praga cada vez mais próxima das nossas portas, simplesmente ignorada pelas autoridades, poderia ser tratada objetivamente através da exigência da ´punibilidade´, do endurecimento de nossa frouxa legislação penal para assassinos cruéis, da redução da maioridade penal para crimes hediondos, e por aí vai. Isso sem contar nas melhores condições de trabalho para a Polícia Militar, uma das profissões mais ingratas do nosso tempo. Na educação, poderíamos exigir um plano de ação concreto para que deixássemos as vergonhosas posições que ocupamos nos rankings mundiais, sempre próximas da lanterna. Houvesse um campeonato mundial de pontos corridos em educação, teríamos lugar cativo na segunda divisão, sem perspectiva de promoção. É humilhante que na era do conhecimento, uma melhoria tímida em nossa posição seja celebrada pelas autoridades do ramo. A nossa falta de ambição e conformismo nessa área são imperdoáveis. Com quase 30% de analfabetos funcionais, gente que não consegue compreender um texto simples de 15 linhas, não chegaremos a lugar nenhum, muito menos no nirvana prometido pelo governo. Isso é concreto e a causa valeria uma passeata de 10 milhões nas ruas. E o que dizer da saúde? A melhoria dos indicadores de mortalidade nas últimas duas décadas ocorreu em todo planeta, mesmo nos rincões mais miseráveis do mundo. Temos hoje mais saneamento básico que há vinte anos, mas poderia ser diferente? Apesar disso, impressionantes 40% das residências no Brasil não tem esgoto encanado. É aceitável? Mais uma causa concreta. Vale uns 5 milhões nas ruas, pelo menos. E a nossa burocracia insana, que cria dificuldades para vender facilidades e aniquila com a nossa competitividade, em um mundo cada vez mais conectado? Não vale uma passeata? Vale. E nela poderiam ser enumeradas deficiências concretas que precisam ser corrigidas ´para ontem´, se não quisermos perder o trem da história. Pelo menos com uns 2 milhões nas ruas. O que dizer da corrupção e sua usual impunidade? Aqui, para cada ´causo´ sem punição, uma manifestação. O país não voltaria a funcionar enquanto alguns gatunos não fossem parar permanentemente atrás das grades.

paisdofuturo1

São tantas as mazelas que somente um livro com centenas de páginas daria conta dos detalhes. Todas valem passeatas indignadas com milhões de pessoas. O aspecto positivo do momento atual é que a população, acostumada a aceitar bovinamente tudo que lhe era ´vendido´, reagiu. É normal que a ´rebeldia´ seja capitaneada pelos jovens, que tem mais tempo para exercer a insatisfação. Foi assim na última manifestação popular relevante que ocorreu há 21 anos e ajudou a derrubar um presidente corrupto. Nesse ínterim, nos calamos. Desfrutamos a sensação de que o país melhorou. E isso de fato aconteceu. Não podemos ignorar que houve progressos em vários setores. Mas hoje temos a sensação de que outros avançam mais rapidamente e de que estamos mais uma vez aquém do nosso potencial. O Brasil está cansado de ser o país do futuro. Que o ´basta!!´ das ruas não seja silenciado por meros 20 centavos. Há muito mais para se indignar.

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

Artigos relacionados

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo
Send this to a friend