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É só um simples jogo de bola. Ou não?

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É só um simples jogo de bola, para que tantas reações exageradas? Esse é um olhar simplista a respeito do assunto. Verdadeiro, mas deixa de considerar nuances importantes. O futebol, sob a batuta da FIFA, uma produtora de megaeventos, recuperou parte do DNA belicoso do ser humano. Torcemos para jogadores cavaleiros que representam a nação. O gramado é o campo de batalha e seus protagonistas não se matam mais com lanças ou canhões. Vale agora colocar a bola nas redes do adversário. Tal qual nas guerras, existe um código de conduta. As anti-éticas são punidas com advertências, cartões e até suspensões de batalhas futuras. Os oficiais de patente mais alta ficam no banco de reservas, passando instruções à infantaria, super atletas que não raramente correm mais de 10km por jogo, saltam, chutam, trombam. Não parece ser somente um simples jogo de bola.

imageAs eliminatórias para o grande show foram disputadas por mais de 200 países, número superior à quantidade de afiliados da ONU. No passado medieval, ainda antes do surgimento do estado-nação, guerras eram parte do cotidiano. Na era moderna, tratava-se evento corriqueiro. Hoje, infelizmente ainda presentes no planeta, são deflagradas principalmente por temas étnicos ou religiosos, com algumas exceções. E o futebol tornou-se um exemplo de como um esporte coletivo é capaz de ativar nossa memória genética. Evoluímos, não cultivamos mais a guerra como parte de nosso dia a dia. Talvez, por isso adoramos o futebol, exemplo de guerra contemporânea. Sob essa ótica, ele deixa de ser um simples jogo de bola.

Trinta e duas nações se qualificam para o grande evento, disputado ao longo de um mês em algum lugar do mundo. É uma honraria recebê-lo. Centenas de milhares de turistas, com o objetivo de participar da grande festa, comparecem às diferentes cidades-sede, confraternizam com cidadãos de outras bandas, misturam-se com os locais. Tudo isso sob o pretexto de assistir a luta de vinte e dois cavaleiros para colocar a bola dentro do gol. As imagens do megaevento são transmitidas em tempo real para todos os cantos da Terra e disseminadas à exaustão pelas redes sociais. Devem ser poucos os terráqueos alienados do que está acontecendo nas paragens brasileiras durante as últimas quatro semanas. Não se trata de um simples jogo de bola.

Qualquer esporte coletivo poderia ser visto da mesma maneira, mas nenhum tem o alcance planetário do futebol. Por ser democrático e permitir que pessoas de qualquer biotipo físico consigam se adaptar em alguma posição, pelo fato das condições econômicas dos países serem irrelevantes na concepção de grandes times e por ser surpreendente na essência e proporcionar em muitos casos a vitória do mais fraco sobre o mais forte, o esporte inventado pelos ingleses e elevado à condição de arte pelos brasileiros (que hoje renegam esse estilo) detém a supremacia incontestável da preferência mundial. Não se trata de um simples jogo de bola.

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Uma indústria orbita ao seu redor. Times-empresas, gigantes de material esportivo, das comunicações, profissionais do rádio, TV e mídia impressa, um verdadeiro segmento da economia é movimentado pelo nobre esporte bretão. Os vassalos da bola vão aos estádios enrolados na bandeira de seu país, tingidos por suas cores e vibram, riem, gritam e choram a cada lance merecedor de uma explosão de emoção. As arenas não seriam um coliseu moderno? Os cavaleiros, alinhados lado a lado às vésperas de suar no campo de batalha, cantam um hino que não entendem, às vezes rangendo os dentes. Ao final da peleja, muitos falam emocionados da alegria que querem passar ao seu povo tão sofrido. Seria uma espécie de circo contemporâneo? Não se trata de um simples jogo de bola.

Especialistas em estratégia surgem aos borbotões. Devemos surpreender os oponentes pelos flancos? Esperá-los para criar contra-ataques fulminantes? Congestionar o meio-campo com ‘tanques’ para permanecer mais tempo com a posse de bola? Temos também os entendidos nos códigos de conduta. Mesmo em uma guerra, determinados comportamentos não são tolerados. E os cavaleiros? Na Idade Média, desfrutavam de regalias junto à nobreza. Hoje, fazem parte dela. São personagens multimilionários, presentes nas publicações que cobrem a vida das celebridades. Transitam pelo ‘jet-set’ sempre acompanhados de uma casta de profissionais a lhes apoiar na comunicação com a mídia, no zelo de sua imagem junto ao público, e na negociação de contratos com os clubes de futebol, pequenos redutos especializados em manter acesa a chama do fanatismo pelo esporte ao redor do mundo. Não se trata de um simples jogo de bola.

Como explicar a reação dos pacatos cidadãos sul-coreanos, que receberam sua seleção com doces (naquela cultura, símbolo de insulto e desrespeito), após campanha vexatória no megaevento? E a aglomeração de dezenas de milhares de pessoas em praças de diferentes cidades do mundo, onde cada gol libera toneladas de adrenalina em comemorações, saltos, urros, buzinaços e abraços? A equipe vencedora seguramente será conduzida sobre um grande veículo do aeroporto ao local mais emblemático da capital de seu país, recepcionada pelo chefe de estado, ovacionada por milhares de pessoas, reconhecida pela mídia. São os guerreiros vitoriosos que retornam à sua terra natal em um período de intensa euforia. Isso não remonta às histórias de guerra, nas mais diferentes épocas? E tal qual nessas circunstâncias, prevalece a versão dos vencedores. Quem ganhar, verá o triunfo do seu esquema tático, será conduzido ao olimpo do futebol. Aos perdedores, restam as lamúrias, as desculpas e em alguns casos, o reconhecimento pela bravura, somente se as expectativas iniciais forem superadas. Não se trata de um simples jogo de bola.

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Os britânicos, sempre presentes nas guerras mais importantes da história recente da humanidade, consideram a batalha de Cingapura, travada em Novembro de 1942, como sua mais vergonhosa e humilhante derrota. Em uma semana, surpreendidos por um ataque terrestre japonês que supunham vir do mar, apoiados por uma eficiente força aérea, o Reino Unido, com 85.000 homens à disposição, rendeu-se ao Japão, com apenas 30.000. Na autópsia da derrota, constavam a baixa qualidade do comando, tropas de segunda linha, erros de concepção na defesa e subestimação do inimigo. Avaliação semelhante a que foi feita por especialistas após a vexatória eliminação do Brasil, aniquilado piedosamente pela Alemanha. A batalha do Mineirão permanecerá indelével na memória dos brasileiros, tal qual a de Cingapura para os ingleses. Não se trata de um simples jogo de bola.

Porém, ao contrário das guerras que ceifam vidas, no futebol ninguém morre. Tampouco as economias dos países belicosos são afetadas pelo desempenho de seus cavaleiros. A Argentina pode sagrar-se campeã do mundo no Domingo, e isso não proporcionará que o país saia do brejo em que se encontra, atolado em graves problemas econômicos e sociais. A catarse coletiva gerada por um eventual título não mudará o destino do país. Nesse caso, a analogia com as guerras perde vigor. Não é guerra. É só um simples jogo de bola.

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Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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