A Guerra na Ucrânia – Capítulo 7: A Expansão da OTAN

Este capítulo é uma atualização e ampliação de um post publicado em 06/03/2022, Você compraria um carro usado deste homem? O curioso é que, quando escrevi este artigo, 3 anos atrás, o apoio à posição russa vinha da esquerda, pois a Ucrânia estava identificada com o Ocidente e o seu líder, os Estados Unidos. Então, em seu antiamericanismo atávico, a esquerda apoiava qualquer um que se antepunha aos Estados Unidos, o que incluía Vladimir Putin.
Três anos depois, o quadro é diferente. Não que a esquerda tenha mudado significativamente de posição. Mas hoje, o maior barulho pró-Rússia vem, pasmem, dos seguidores do movimento MAGA (Make America Great Again) no mundo inteiro. Em reportagem deste ano, a revista Crusoé lista uma série de motivos para que isso tenha ocorrido, desde as supostas credenciais conservadoras do líder russo, passando pelo apoio dos “globalistas” à Ucrânia, até o dinheiro que Biden estava desperdiçando em uma guerra que não interessava aos EUA. Além, claro, do suposto envolvimento dos ucranianos em histórias mal contadas sobre o seu apoio aos democratas.
Portanto, o que vai a seguir é uma tentativa de estabelecer alguns pilares sobre os quais possamos discutir a questão da OTAN e sua real influência nas decisões de Vladimir Putin. Sempre haverá, claro, espaço para interpretações, a realidade sempre dependerá das convicções de quem a olha. Mas se estivermos de acordo a respeito dos fatos, o debate torna-se mais esclarecido. Esta é a minha esperança.
Uma narrativa muito comum sobre as motivações de Putin para invadir a Ucrânia incluem o avanço da OTAN para o Leste europeu. A narrativa é mais ou menos a seguinte: depois da dissolução da União Soviética, estavam os russos quietos no seu canto, lambendo as feridas do orgulho ferido por terem sido rebaixados de superpotência para mercado emergente, quando os Estados Unidos, do nada, levam a OTAN até o quintal dos russos. Estes, sentindo-se ameaçados, desenharam uma linha vermelha na Ucrânia e, quando esta ameaçou juntar-se também à Aliança ocidental, não restou outra alternativa a Putin a não ser ocupar o país vizinho.
Para reforçar a imagem, perguntam, no melhor estilo xeque-mate, como os EUA reagiriam se o México fosse aliado da Rússia e esta colocasse mísseis nucleares ao longo do Rio Grande, a poucos minutos das grandes cidades americanas. A conclusão, óbvia, é que os Estados Unidos não deixariam a coisa chegar neste ponto, e invadiriam o México para evitar que isso acontecesse.
O que dizer?
Bem, essa narrativa seria uma versão crível dos fatos se tivesse alguma lógica. Para entender por que não tem, é preciso voltar um pouco no tempo. Mais especificamente, para 1949, quando a OTAN é constituída.
Para que serve a OTAN
A Europa vinha de uma guerra terrível em várias dimensões. Havia uma unanimidade em torno da ideia de que era necessária uma estrutura militar permanente que prevenisse que algo semelhante ocorresse novamente. O diagnóstico era que o militarismo nacionalista, concretizado na ascensão nazista na Alemanha, precisaria ser evitado a todo custo. Para isso, duas coisas eram necessárias: 1) uma presença militar norte-americana permanente no continente europeu e 2) uma maior integração europeia em torno de ideais democráticos. A presença norte-americana foi uma quebra de paradigma, pois os EUA sempre resistiram muito a sair de seu casulo, tendo sua entrada na 2ª guerra sido feita a fórceps. E a ideia de uma integração europeia com suporte em uma aliança militar era nada mais do que uma rendição ao fato de que boas intenções somente se concretizam na base da, digamos, dissuasão militar.
O estabelecimento da OTAN se precipita em 1949, quando a União Soviética testa a primeira bomba nuclear. Os EUA não eram mais a única potência nuclear, e os europeus ficam alarmados. Este é um primeiro fato importantíssimo para entender o que vem a seguir. Os europeus (no caso, Bélgica, Dinamarca, França, Islândia, Itália, Luxemburgo, Holanda, Noruega, Portugal e Reino Unido) não buscam a União Soviética como aliada, mas os Estados Unidos. Parece uma escolha óbvia e natural, mas não é. A União Soviética foi aliada dos Estados Unidos e Reino Unido contra a Alemanha. Mas aquela aliança havia sido circunstancial; a União Soviética tinha um regime completamente alienígena ao espírito da aliança militar que se estava formando. É bom sempre ter isso em mente quando analisamos os acontecimentos que se seguiram desde então: não estamos falando de dois polos opostos e equivalentes. Não. De um lado tínhamos uma aliança eminentemente defensiva, que tinha como objetivo evitar o ressurgimento do militarismo nacionalista e suportar a integração do continente europeu em torno de ideais democráticos. Do outro, tínhamos uma ditadura sanguinária, que tinha como objetivo implementar o regime comunista a ferro e fogo, e que não tinha pudor em usar o peso da máquina estatal contra seus próprios cidadãos para atingir seus objetivos. Portanto, não se tratava de dois polos opostos simétricos, cada um buscando seus próprios interesses, como se tanto fizesse se o mundo, hoje, fosse dominado pelos Estados Unidos ou pela União Soviética.
A OTAN, portanto, foi formada com os objetivos de evitar uma escalada militarista nacionalista e promover a integração europeia, aos quais foi acrescentado um terceiro objetivo: fazer frente à agressividade (agora nuclear) da União Soviética. Este terceiro objetivo acabou por ser o dominante nos anos seguintes, até 1991, quando a União Soviética desaparece. Mas é bom ter em mente os dois primeiros objetivos quando nos determos sobre os acontecimentos pós-1991.
A história segue e, em 1955, a Alemanha Ocidental adere à OTAN, o que leva a União Soviética a estabelecer, em seguida, o Pacto de Varsóvia, a união militar da URSS com seus satélites. Sim, aqui temos uma reação da União Soviética a uma ação dos Estados Unidos. Mas, para entender esse movimento da OTAN, é preciso voltar um pouco no tempo, para 1945, quando se encerra a 2ª Guerra. As potências aliadas dividem a Alemanha em 4 zonas administrativas, cada uma delas controladas, respectivamente, por Estados Unidos, Reino Unido, França e União Soviética. Com o passar do tempo, foi ficando claro que os países democráticos estavam de um lado e a União Soviética estava do outro. Em 1949, dois países surgiram no lugar da antiga Alemanha: a Alemanha Ocidental, correspondente à ocupação de Estados Unidos, Reino Unido e França, e a Alemanha Oriental, correspondente à ocupação da União Soviética. A Alemanha Ocidental, sob o comando de Konrad Adenauer, percebendo o risco de um enclave soviético em sua fronteira (a Alemanha Oriental), solicitou a admissão à OTAN. Portanto, a admissão à OTAN veio em resposta à presença ameaçadora de uma potência nuclear não confiável em suas fronteiras. Este mesmo tipo de raciocínio servirá como base para os pedidos de admissão à OTAN dos antigos membros do Pacto de Varsóvia e das antigas repúblicas soviéticas anos depois. Tudo se resume na palavra CONFIANÇA. Voltaremos a isso mais à frente.
Avançando no tempo, temos a queda do muro de Berlim em 1989 e a dissolução da União Soviética em 1991. A Federação Russa, ou simplesmente Rússia, passa a ser a herdeira da antiga União Soviética. Sob a liderança de Boris Yeltsin, a Rússia parece ter se tornado um país democrático e capitalista, o que fez com que Francis Fukuyama escrevesse, em 1992, o seu famoso ensaio “O Fim da História”, tomando como certa a vitória do regime democrático sobre o autoritário, e do capitalismo sobre o socialismo, para todos os efeitos práticos. Esta leitura, vista de hoje, parece um tanto ingênua, ainda que, de fato, até a China seja capitalista hoje em dia. Um mundo liderado por apenas uma superpotência benigna, em uma espécie de “pax americana”, parece uma visão cada vez mais distante da realidade.
Voltando. Todos sabemos em que direção as pessoas correram quando o muro de Berlim caiu. Da mesma forma, os antigos países do Pacto de Varsóvia procuraram correr para longe da esfera russa assim que puderam. Novamente: é interessante observar que países como Grécia ou Turquia, que faziam parte da OTAN desde 1952, não se interessaram em correr para o colo da Rússia. Mas Polônia, República Tcheca e Hungria correram para o colo dos Estados Unidos em 1999, sendo admitidas pela OTAN naquele ano.
Alguns podem se perguntar por que a OTAN não seguiu o mesmo caminho do Pacto de Varsóvia, e foi simplesmente desativada com o fim da União Soviética. Para entender por que isso aconteceu, é útil voltar lá no início do texto, e relembrar os objetivos fundantes da OTAN: evitar uma escalada nacionalista militar na Europa e suportar militarmente a integração europeia. Para entender por que estes dois objetivos ainda davam sentido à existência da OTAN, basta lembrar que a 2ª Guerra havia terminado há menos de 50 anos, e ainda estava viva na memória os seus horrores. Assim, a presença militar norte-americana no continente europeu e a adesão de mais países à Aliança ornava com os objetivos de manter a paz no continente. Como sabemos, o preço da paz é a eterna vigilância.
Nesse sentido, é digno de registro o estabelecimento, em 2002, de um Conselho OTAN-Rússia, em que a Rússia, já sob a direção de Putin, foi colocada em igualdade de condições com os outros membros da aliança para discutir questões de segurança. Este Conselho ainda existe formalmente, mas perdeu totalmente o seu sentido em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia. No site do Conselho, o último documento disponível é de 2013. De qualquer forma, fica claro que os objetivos da OTAN incluíam a cooperação com a Rússia, em busca da manutenção da paz no continente europeu. Falaremos sobre esta cooperação no próximo item.
A OTAN, em linha com seus objetivos, sempre deixou as portas abertas para o ingresso de novos membros. A pergunta, portanto, não é porque a OTAN (leia-se Estados Unidos) admitiu países do Pacto de Varsóvia em 1999 e antigas repúblicas socialistas em 2004. A pergunta correta é: porque esses países ESCOLHERAM fazer parte da OTAN.
Como mencionado acima, a palavra-chave é CONFIANÇA. No final do dia, tudo se resume a saber de quem você compraria um carro usado, de Putin ou do presidente americano, qualquer que ele seja. Não que qualquer presidente americano seja pessoalmente mais confiável do que Putin. A questão são os pesos e contrapesos que só regimes democráticos maduros são capazes de garantir. Os presidentes americanos não são ditadores, assim como não foram nenhum dos seus antecessores (o que às vezes exaspera quem espera soluções “rápidas” para os problemas), de modo que a estrutura é mais confiável do que a estrutura russa de poder. É por isso, e somente por isso, que Letônia, Estônia, Lituânia e uma longa lista de países procuraram proteção no guarda-chuva da OTAN. Os ucranianos devem estar se lamentando por não terem sido tão ágeis quanto seus antigos companheiros de União Soviética.
Da forma como está sendo contada a versão da “Rússia defendendo-se de uma ameaça ocidental” para justificar o ataque à Ucrânia, a coisa parece uma profecia autorrealizada: com medo da Rússia, os países da antiga União Soviética correram para a OTAN, o que fez com que a Rússia efetivamente atacasse, confirmando os receios que levaram os países do Leste europeu a fazerem o movimento que fizeram. Segundo essa versão, se esses países tivessem ficado no seu canto, Putin agora estaria se dedicando a fazer bolinhos de chuva e tricotando no Kremlin.
É esta parte da versão que não é crível. Putin nunca foi confiável. Em artigo na Economist, a primeira-ministra da Lituânia, Ingrida Simonyte, chama Putin de um “mentiroso patológico”. Segundo ela, ditadores só conhecem o idioma da brutalidade. Sim, a Lituânia pegou a boia salva-vidas da OTAN em 2004.
Alguém poderá dizer que é compreensível o temor das ex-repúblicas soviéticas, o que não é compreensível é que a OTAN tenha provocado o tigre com vara curta. Quem faz esse raciocínio não entende a lógica do nacionalismo militarista, justamente aquele que a OTAN tem como objetivo combater: a chance de surgimento de um regime doidivanas é tanto menor quantos mais países são agregados ao guarda-chuva militar. Não é à toa que, em seu site, a OTAN afirma que “está aberta a qualquer outra nação europeia em posição de implementar os princípios deste Tratado e de contribuir para a segurança da área do Atlântico Norte”.
A pergunta correta, portanto, é quem é a Rússia na fila do pão para impedir que a Ucrânia faça a sua adesão à OTAN. O raciocínio da guerra fria, de que o avanço da OTAN significa uma ameaça existencial à Rússia, faz sentido somente na cabeça paranoica de um ditador tirânico.
Os Estados Unidos e seus aliados não são anjos de bondade, todos têm os seus interesses e seus erros históricos. Isso é uma coisa. Outra coisa é colocar os regimes democráticos ocidentais no mesmo nível de confiabilidade da governança russa, como se se tratasse de uma simetria perfeita. Não é. A democracia tem muitos defeitos, mas, como dizia Churchill, é o pior regime com exceção de todos os outros. Isso inclui o autoritarismo russo, que não é confiável de maneira alguma.
As relações entre OTAN e Rússia
Após a dissolução da União Soviética, a Federação Russa, sob a liderança de Boris Yeltsin, estabeleceu uma relação de cooperação com a OTAN.
Em dezembro de 1991 foi criado o Conselho de Cooperação do Atlântico Norte, que tinha como objetivo ser um fórum de diálogo e cooperação entre a OTAN e os membros do finado Pacto de Varsóvia. Em 1997 o Conselho foi sucedido pelo Conselho de Parceria Euro-Atlântico, um fórum para discussões políticas entre os membros da OTAN e seus parceiros (incluindo a Rússia) sob o Programa de Parceria para a Paz, criado em 1994 com o objetivo de coordenar esforços militares em casos de intervenção em países em conflito.
Nesse contexto, em 1997 foi assinado o Ato Fundador OTAN-Rússia, que lançou as bases para o relacionamento entre a Aliança e a Federação Russa. O Ato inicia com a frase “OTAN e Rússia não consideram um ao outro como adversários”. Nesse sentido, trata-se de uma carta de cooperação em vários aspectos da segurança europeia. Como exemplo, temos tropas russas colaborando com as forças da OTAN na Bósnia e Herzegovina. Para implementar o Ato, foi estabelecido um Conselho Permanente Conjunto OTAN-Rússia, que servirá de fórum de consultas bilaterais. Neste Ato Fundador há um compromisso da OTAN de não estacionar armas nucleares nos territórios de eventuais novos membros da Aliança, o que foi cumprido até hoje, e o que deixa implícita a possibilidade da admissão de novos membros.
Apesar de todas as juras de amor, a Rússia congela as relações com a OTAN em 1999, com a intervenção da Aliança no Kosovo, que analisaremos no próximo item. No entanto, com o fim da guerra nos Balcãs, os russos retomam as atividades no Conselho Permanente e, inclusive, enviam tropas em parceria com a OTAN para manter a paz no Kosovo.
Em 2002, com a Rússia já sob o comando de Putin, o Conselho Permanente é substituído pelo Conselho OTAN-Rússia (NRC). A diferença aqui é que, no Conselho anterior, a OTAN agia em conjunto, em um formato OTAN+1. Já no NRC, a Rússia entra em condição de igualdade com cada Estado membro da OTAN, tornando-se um parceiro da Aliança. A Economist assim analisa o acordo:
“Após 70 anos do beco sem saída do comunismo e mais dez anos à deriva, Putin está determinado a levar a Rússia a acabar com seu autoisolamento e a se juntar ao conjunto de países desenvolvidos e democráticos, ao lado dos Estados Unidos e da Europa.”
Como se verá nos anos seguintes, a revista não poderia estar mais errada.
Em 2008, a OTAN condena a intervenção russa na Georgia e o reconhecimento da independência da Abkhazia e da Ossetia do Sul. Assim como fez a Rússia em 1999 após a intervenção no Kosovo, agora é a vez da OTAN congelar as relações com a Rússia, que são retomadas somente no ano seguinte.
A participação da Rússia no NRC será totalmente congelada em março de 2014, com a invasão e anexação da Crimeia. Em outubro de 2021, 4 meses antes da invasão da Ucrânia, a Rússia fecha a sua representação diplomática junto à OTAN, e solicita que a Aliança feche o seu escritório de representação em Moscou. Era o fim (ou a pausa, quem sabe) de uma relação que, um dia, encheu de esperança quem acreditava que a paz fosse possível.
O conflito do Kosovo: um precedente?
Em seu longo discurso em que anunciou a invasão da Ucrânia, em 24/02/2022, Putin justificou a ação de várias maneiras. Uma delas foi apontar as vezes em que o Ocidente, e em especial os EUA, supostamente agiram de maneira contrária à Carta das Nações Unidas e aos direitos humanos. Não que ele, Putin, estivesse agindo da mesma forma, mas essas acusações serviriam para demonstrar que o Ocidente não tinha moral para acusá-lo de nada.
Uma das acusações, a que mais nos interessa aqui por causa de sua aparente similaridade com os casos da Crimeia e do Donbas, foi a ação das forças da NATO no Kosovo, em 1999. A este respeito, Putin afirma o seguinte:
“Primeiro, uma sangrenta operação militar foi travada contra Belgrado, sem a sanção do Conselho de Segurança da ONU, mas com aeronaves de combate e mísseis usados no coração da Europa. O bombardeio de cidades pacíficas e infraestruturas vitais continuou por várias semanas.”
Putin refere-se à ação humanitária da OTAN contra o governo da então Iugoslávia, posteriormente Sérvia, que estava praticando um verdadeiro genocídio contra a população albanesa do Kosovo. Para entender melhor o conflito, o mapa a seguir nos dá uma noção da geografia da então Iugoslávia.

Depois da dissolução da União Soviética, que era o grande fiador da ditadura que mantinha as diversas repúblicas que formavam a Iugoslávia unidas à força, o país se desmembrou nas várias repúblicas dos balcãs: Eslovênia e Croácia em junho de 1991, Macedônia e Bósnia e Herzegovina em abril de 1992 e Montenegro em junho de 2006 declararam independência, deixando a Sérvia como herdeira da antiga Iugoslávia.
Em maio de 1989, seis meses antes da queda do Muro de Berlim, Slobodan Milosevic assume o governo da Sérvia, e dá início a uma intensa campanha de repressão à comunidade albanesa do Kosovo, que já vinha de protesto em protesto desde o início dos anos 80, após a morte do Marechal Tito. Como reação, em novembro de 1994 é formado o Exército de Libertação do Kosovo (KLA, na sigla em inglês), um grupo classificado como terrorista por Belgrado.
As escaramuças crescem nos anos seguintes, até que, em fevereiro de 1998, se inicia a luta aberta entre o KLA e o exército sérvio. A Economist não poupa adjetivos para a ação das forças de Milosevic:
“No fim de semana, a polícia sérvia, mais próxima de mafiosos do que de guardiões da lei e da ordem, matou pelo menos 25 “terroristas” albaneses (pelo menos uma delas grávida) depois que dois deles foram supostamente mortos por guerrilheiros separatistas. A polícia então reprimiu um protesto pacífico com gás lacrimogêneo e espancamentos.”
A intervenção da OTAN para encerrar o conflito já era discutida em junho, mas a Economist traz um artigo premonitório:
“Então, um dia, isso poderia ser citado como um precedente terrível: como a OTAN reagiria se a China, digamos, realizasse ataques aéreos contra um governo indiano que estivesse lutando para impedir que sua província de maioria muçulmana de Jammu e Caxemira se separasse?”
Este tipo de dilema, além da intervenção de Boris Yeltsin junto a seu colega Milosevic para que este aceitasse iniciar conversações de paz, adiou a ação da Aliança ocidental. Em outubro de 1998, com a pressão das potências ocidentais e a ameaça de intervenção da OTAN, Milosevic parece disposto a negociar uma trégua e retirar suas tropas do Kosovo. A Economist celebra nos seguintes termos:
“Aqui reside a maior lição deste episódio. Ao demonstrar sua prontidão para usar a força na Iugoslávia devido ao tratamento dado pelo governo ao seu próprio povo, a OTAN, pela primeira vez, ignorou um princípio estabelecido de soberania nacional — o de que o que um país faz dentro de suas próprias fronteiras é problema seu, a menos que ameace a paz ou a segurança internacionais. O direito de agredir seu próprio povo (especialmente minorias separatistas) é um princípio profundamente acalentado pela maioria dos membros da ONU, incluindo Rússia e China, dois membros com poder de veto no Conselho de Segurança. A aliança militar mais forte do mundo deixou claro que esse princípio não é mais sagrado. Alguns déspotas deveriam dormir menos tranquilos.”
Substitua o governo de Belgrado pelo de Kiev, o Kosovo pelo Donbas e a OTAN pela Rússia, e temos aí a desculpa pronta para a intervenção de Putin na Ucrânia. Claro, o paralelo é mais do que falho. Kiev não estava fazendo nem de longe a limpeza étnica que Milosevic estava realizando contra os albaneses, e a OTAN não estava apoiando os separatistas em sua luta pela independência. Mas essas nuances se perdem em raciocínios desonestamente simplistas. Quem não conhece a história compra esse discurso a valor de face.
Em janeiro de 1999, apesar do cessar-fogo negociado em outubro, o exército de Milosevic continua o seu massacre. Assim tem início uma reportagem da Economist:
“OUTRO massacre, mais negações e dissimulações, as habituais histórias lamentáveis de sobreviventes. Desta vez, foram 45 albaneses étnicos, incluindo idosos e crianças, que foram mortos a tiros, provavelmente à queima-roupa. A única novidade foi o comportamento das autoridades sérvias após os assassinatos — a expulsão de um observador internacional de alto escalão e o desaparecimento dos corpos. Isso foi ultrajante até mesmo para os padrões da região, e o mundo tem justificativa para responsabilizar o presidente da Iugoslávia, Slobodan Milosevic. Então, chegou a hora dos ataques aéreos da OTAN contra os sérvios, há muito ameaçados?”
E finalmente, depois de muitas idas e vindas diplomáticas, a OTAN decide atacar a Sérvia em março. A Economist chama a atenção para o ineditismo da iniciativa:
“[…] é o primeiro ataque inequívoco da OTAN a um Estado soberano acusado de ser vil não para seus vizinhos, mas apenas para seu próprio povo. Tal comportamento, por mais ofensivo que seja, há muito tempo é considerado prerrogativa de governos devidamente constituídos. É amplamente praticado e, muitas vezes, sem muito mais do que um “tsc-tsc” do Ocidente. Onde estava a OTAN, por exemplo, quando a Rússia tentou esmagar os chechenos, a um custo de 50.000 a 100.000 vidas? O ataque desta semana à Sérvia pode ser o início de uma nova tendência admirável para conter bandidos e déspotas, embora isso não pareça muito provável. O que é inegável é que o ataque é algo novo e pode abrir um precedente constrangedor.”
São muitas as questões colocadas. Inegavelmente, havia um problema de violência étnica no Kosovo, e não fazer nada parecia compactuar com crimes conhecidos, quando se tinha os meios para detê-los. Por outro lado, tratava-se de uma questão interna do país, em que insurgentes procuravam a independência, e também não pensavam duas vezes antes de matar sérvios, mesmo inocentes. É difícil separar o objetivo de evitar o massacre étnico (objetivo declarado) de um eventual apoio às aspirações políticas dos separatistas (objetivo negado pela Aliança), ou mesmo a deposição de Milosevic (objetivo que nunca esteve no radar ocidental). Discutia-se se a OTAN deveria atacar, e se deveria atacar por terra, além dos bombardeios já iniciados. O ataque por terra envolveria muitas baixas nos exércitos da OTAN, baixas estas de difícil apoio político nos países da Aliança.
Todas essas perplexidades, próprias de regimes democráticos diante de escolhas morais e políticas difíceis, passam longe do Kremlin. A decisão de apoiar os separatistas do Donbas, no início de maneira sub-reptícia, e depois através da invasão franca, não passou por nenhuma “crise de consciência” por parte de Putin. Antes, pelo contrário, seguiu um longo e meticuloso planejamento desde o Euromaidan, e todas as desculpas usadas depois para justificar suas ações não passam disso, desculpas. Seus objetivos passam por arrancar um naco do país vizinho e instabilizar o seu governo, de modo a poder substituí-lo por um seu fantoche. Todos esses são objetivos declarados, não se trata de ilações. Não há nada remotamente semelhante no caso da intervenção da OTAN em Kosovo, que reagiu a uma carnificina étnica.
De qualquer modo, esta ação da OTAN provocou um esfriamento das relações entre o Ocidente e a Rússia. O clima é descrito desta maneira pela Economist:
“Desta vez, o clima frio parece mais profundo e perigoso. O presidente Yeltsin não apenas manifestou sua hostilidade aos ataques aéreos e com mísseis da OTAN, como também está enviando navios russos de coleta de informações para o Adriático. Insinuou que seus mísseis nucleares poderiam ser redirecionados para cidades da OTAN e afirmou que o uso de tropas da OTAN no Kosovo para pôr fim aos ataques sérvios contra a população majoritariamente muçulmana poderia até mesmo tornar uma potencial Guerra Fria mais quente, atraindo a Rússia para a luta ao lado da Sérvia, possivelmente provocando um conflito mais amplo na Europa ou até mesmo uma ‘terceira guerra mundial’. Uma perspectiva alarmante.”
Note que não se trata de Putin, mas de Yeltsin, supostamente um aliado do Ocidente. A Iugoslávia e, principalmente, a Sérvia, sempre esteve alinhada a Moscou, até por laços étnicos. Durante os bombardeios a Belgrado, Polônia, Rep. Tcheca e Hungria seriam os primeiros países do finado Pacto de Varsóvia a ingressarem na OTAN. Tudo isso era demais para o orgulho russo, que assistia, impotente, o avanço da Aliança ocidental em seu antigo quintal.
Poderia ter sido diferente? Sim, de duas formas. A primeira seria a não intervenção da OTAN e a passividade diante de uma limpeza étnica. Não seria a primeira nem a última vez que isso aconteceria. Mas a não intervenção não garantiria, de forma alguma, que os russos não invadiriam a Ucrânia, só por não haver um “precedente”. Putin não precisa disso.
A segunda forma seria Yeltsin apoiar a ação da OTAN. Seja por falta de condições políticas internas, seja por um raso orgulho ferido, a Rússia afastou-se do Ocidente em um episódio em que poderia mostrar as suas credenciais humanitárias. Yeltsin fez esforços diplomáticos junto a Milosevic, mas suas iniciativas se mostraram infrutíferas. Mesmo porque, a Rússia havia feito mais ou menos o mesmo na Chechênia alguns anos antes. Imagine Yeltsin tendo que convencer o chefão sérvio a pegar leve com os separatistas. De qualquer forma, decisões importantes são sempre difíceis de serem tomadas, e Yeltsin talvez tenha perdido a chance de deixar definitivamente para trás o legado soviético e juntar-se ao espírito da Aliança ocidental. Putin poderia reverter este movimento no futuro, claro, mas custaria mais caro para o autocrata russo.
“A OTAN não se moverá uma polegada a mais para o Leste”
Uma lenda urbana espalhada por Putin e reverberada pela propaganda russa é de que a Aliança Atlântica teria se comprometido a não avançar para além da Alemanha quando houve a dissolução da União Soviética e do Pacto de Varsóvia. Esse suposto compromisso teria sido feito pelo então secretário de Estado americano, James Baker, com a frase “a OTAN não se moverá uma polegada a mais para o Leste”. Houve de fato esse compromisso?
Vladimir Putin, em discurso na 43ª Conferência de Segurança de Munique, em 12/02/2007, relembra esse suposto compromisso com as seguintes palavras:
“Penso ser óbvio que a expansão da OTAN não tem qualquer relação com a modernização da própria Aliança ou com a garantia da segurança na Europa. Pelo contrário, representa uma grave provocação que reduz o nível de confiança mútua. E temos o direito de perguntar: contra quem se destina esta expansão? E o que aconteceu às garantias que os nossos parceiros ocidentais fizeram após a dissolução do Pacto de Varsóvia? Onde estão essas declarações hoje? Ninguém sequer se lembra delas. Mas permitir-me-ei relembrar a esta plateia o que foi dito. Gostaria de citar o discurso do Secretário-Geral da OTAN, Sr. Woerner, em Bruxelas, em 17 de maio de 1990. Ele afirmou na altura que: “o fato de estarmos dispostos a não colocar um exército da OTAN fora do território alemão dá à União Soviética uma sólida garantia de segurança“. Onde estão essas garantias?”
Quando vamos consultar o discurso do então Secretário-Geral da OTAN, lemos textualmente o seguinte:
“Já estamos em processo de revisão da nossa estratégia e das nossas missões da Aliança, e de adaptação a novas circunstâncias. No entanto, ninguém pode esperar que privemos a OTAN da sua função essencial de segurança e da sua capacidade de prevenir a guerra. A nossa estratégia e a nossa Aliança são exclusivamente defensivas. Não ameaçam ninguém, nem hoje nem amanhã. Nunca seremos os primeiros a usar as nossas armas. Estamos preparados para um desarmamento radical, até ao nível mínimo que devemos manter para garantir a nossa segurança.
Isso também se aplicará a uma Alemanha unida na OTAN. O próprio fato de estarmos dispostos a não enviar tropas da OTAN para além do território da República Federal da Alemanha (RFA – Alemanha Ocidental) dá à União Soviética sólidas garantias de segurança. Além disso, poderíamos conceber um período de transição durante o qual um número reduzido de forças soviéticas permaneceria estacionado na atual RDA (Alemanha Oriental). Isso atenderia às preocupações soviéticas de não alterar o equilíbrio estratégico geral entre Leste e Oeste. Os políticos soviéticos estão errados ao afirmar que a adesão da Alemanha à OTAN levará à instabilidade. O oposto é verdadeiro. A Europa, incluindo a União Soviética, ganharia estabilidade. Também ganharia um parceiro genuíno no Ocidente, pronto para cooperar.”
No contexto do discurso, o secretário-geral da OTAN estava se referindo exclusivamente ao território da Alemanha, não ao restante da Europa. Era sobre o destino da Alemanha unificada o discurso do secretário, não sobre “garantias genéricas de segurança”. A OTAN estava se comprometendo a não enviar tropas para a Alemanha Oriental, concedendo, inclusive, que a Rússia mantivesse tropas na Alemanha Oriental enquanto a unificação não ocorresse. Putin manipula o sentido do discurso para o seu objetivo, o que não é, de maneira alguma, surpreendente.
Mas é Mikhail Gorbashev, o último secretário-geral do Partido Comunista Soviético, para quem supostamente a promessa teria sido feita, que a desmente categoricamente em entrevista para o site Russia Beyond the Headlines , em 16/10/2014:
“RBTH: Uma das principais questões que surgiram em relação aos eventos na Ucrânia é a expansão da OTAN para o Leste. O senhor tem a sensação de que seus parceiros ocidentais mentiram para o senhor quando estavam desenvolvendo seus planos futuros para o Leste Europeu? Por que o senhor não insistiu que as promessas que lhe foram feitas – particularmente a promessa do Secretário de Estado dos EUA, James Baker, de que a OTAN não se expandiria para o Leste Europeu – fossem legalmente codificadas? Citarei Baker: “A OTAN não se moverá uma polegada mais para o leste”.
M.G.: O tema da “expansão da OTAN” não foi discutido de forma alguma, e não foi levantado naqueles anos. Digo isso com total responsabilidade. Nenhum país do Leste Europeu levantou a questão, nem mesmo depois que o Pacto de Varsóvia deixou de existir em 1991. Líderes ocidentais também não a levantaram. Outra questão que levantamos foi discutida: garantir que as estruturas militares da OTAN não avançassem e que forças armadas adicionais da aliança não fossem mobilizadas para o território da então Alemanha Oriental após a reunificação alemã. A declaração de Baker, mencionada na sua pergunta, foi feita nesse contexto. Kohl e [o vice-chanceler alemão Hans-Dietrich] Genscher conversaram sobre isso.
Tudo o que poderia e precisava ser feito para consolidar essa obrigação política foi feito. E cumprido. O acordo final com a Alemanha previa que nenhuma nova estrutura militar seria criada na parte oriental do país; nenhuma tropa adicional seria mobilizada; nenhuma arma de destruição em massa seria instalada lá. Isso tem sido observado todos esses anos. Portanto, não retrate Gorbachev e as autoridades soviéticas da época como pessoas ingênuas que estavam nas mãos do Ocidente. Se houve ingenuidade, foi mais tarde, quando a questão surgiu. A Rússia, a princípio, não se opôs.
A decisão dos EUA e seus aliados de expandir a OTAN para o leste foi tomada decisivamente em 1993. Chamei isso de um grande erro desde o início. Foi definitivamente uma violação do espírito das declarações e garantias que nos foram feitas em 1990. No que diz respeito à Alemanha, elas foram legalmente consagradas e estão sendo observadas.” (grifos meus)
Temos aí o cerne da questão. Legalmente não há tratado ou acordo algum a respeito da expansão da OTAN para o Leste, somente em relação ao antigo território da Alemanha Oriental. A declaração de Baker referia-se a este ponto específico, segundo Gorbashev.
Outro ponto é o “espírito das promessas”, uma interpretação de Gorbashev que não obriga a Aliança Atlântica. É preciso estressar este ponto: a diplomacia internacional se dá com base em documentos, não em “promessas”. E não há nenhum documento a respeito da não expansão da OTAN para o Leste, ainda que possa ter sido um erro estratégico da Aliança, conforme afirma Gorbashev. Por outro lado, há uma série de documentos assinados pelos russos que determinam a inviolabilidade das fronteiras da Ucrânia, e Putin não teve escrúpulos em rasgar todos eles. Ou seja, o ditador russo exige o cumprimento de promessas vagas, enquanto ele próprio descumpre compromissos firmados em cartório. Não busque coerência em ações de dirigentes autoritários.
Sobre o racional que inspirou a expansão da OTAN, vamos buscá-lo no discurso de maio de 1990 do secretário-geral da OTAN, citado acima:
“A principal tarefa da próxima década será construir uma nova estrutura de segurança europeia, que inclua a União Soviética e os países do Pacto de Varsóvia. A União Soviética terá um papel importante a desempenhar na construção desse sistema. Se considerarmos a situação atual da União Soviética, que praticamente não tem aliados, compreenderemos seu desejo justificado de não ser forçada a sair da Europa.
Essa estrutura de segurança europeia terá a função de organizar uma parceria de segurança entre os Estados europeus para superar a hostilidade rígida dos anos da Guerra Fria e progredir do confronto para a cooperação. Duas alternativas estão sendo discutidas atualmente: uma estrutura de segurança coletiva na qual as duas alianças seriam dissolvidas em favor de uma organização de segurança cooperativa; ou uma estrutura construída em torno das estruturas existentes – a Aliança Atlântica e a Comunidade Europeia – e que funcione como uma estrutura abrangente, unindo-as e ampliando-as.
Somente esta segunda alternativa é uma opção séria para nós, porque, a julgar pela história, um sistema de segurança coletiva só funcionaria se todos os Estados participantes tivessem interesses perfeitamente concordantes. […] Um sistema de segurança coletiva depende da boa vontade permanente de todas as partes. Em essência, ele só funciona até ser submetido ao seu primeiro teste sério – e então se fragmenta em alianças e blocos de poder mutuamente antagônicos. A Liga das Nações do pré-guerra é o nosso melhor exemplo disso. Portanto, temos que construir a futura arquitetura de segurança europeia com base nas estruturas existentes e desenvolver ainda mais as formas de cooperação que já estão disponíveis para nós.”
Em outras palavras, o que o secretário-geral da OTAN quis dizer é que qualquer arquitetura de segurança deveria seguir as normas e princípios da Aliança vencedora da Guerra Fria, pois qualquer tentativa de começar do zero uma estrutura cooperativa estaria fadada ao fracasso quando submetida a qualquer “teste sério”. A OTAN representava a arquitetura de segurança que reunia os critérios para um relacionamento estável de longo prazo entre os seus membros, o que envolvia uma alta dose de boa governança doméstica. Um novo órgão construído do zero levaria a discussões infindáveis e, provavelmente, infrutíferas, sobre esses critérios entre países em estágios completamente diferentes de governança. O lógico, como afirmou o secretário-geral, eram os países da aliança derrotada adaptarem-se aos critérios da aliança vencedora, dado que se mostraram melhores no teste do longo prazo. Foi exatamente isso que entenderam os países do antigo Pacto de Varsóvia, que, um após o outro, pediram admissão à OTAN após adaptarem os seus sistemas domésticos aos critérios da Aliança ocidental.
A Rússia começou a fazer este movimento, inclusive associando-se à OTAN, como vimos anteriormente, mas em determinado momento suas elites escolheram o pacto que tinham com seu próprio atraso. O fato de a Rússia ter feito essa escolha não deveria obrigar seus antigos satélites do Pacto de Varsóvia. Putin afirma que a expansão da OTAN representa uma ameaça à Rússia. De alguma forma isso é verdade, mas não da maneira que Putin apresenta ao mundo, dado que a OTAN não é uma Aliança agressora em sua natureza. A verdadeira ameaça, aquela mais temida por autocratas como Putin, é o que a OTAN representa em termos de governança democrática, e que poderia significar a perda do poder por parte das elites que hoje governam a Rússia. Este é o verdadeiro perigo, não para a Rússia, mas para Vladimir Putin.
O fim da OTAN?
Termino este capítulo com um trecho de uma matéria da Economist de maio de 2012, antes, portanto, da anexação da Crimeia. Putin havia ordenado exercícios ostensivos de tropas russas na fronteira com os países bálticos, e o discurso de oficiais russos vinha sendo, de maneira geral, mais agressivo.
“POR 20 anos, a OTAN cortejou o Kremlin, com resultados decepcionantes. A aliança afirmou repetidamente que não considera a Rússia uma ameaça e renunciou a colocar armas nucleares (ou qualquer outra coisa significativa) em estados-membros que já fizeram parte do império soviético. De fato, a OTAN estava tão interessada em não ofender a Rússia que, nos primeiros anos após a entrada dos recém-chegados em 2004, não fez planos para defendê-los.
[…]Uma postura mais branda também poderia incluir o rebaixamento dos exercícios planejados pela OTAN para o próximo ano na Europa. Chamados de “Steadfast Jazz”, esses serão potencialmente as maiores manobras desde o fim da Guerra Fria. Eles são em grande parte uma resposta aos preocupantes exercícios russos em 2009, que simularam a invasão dos estados bálticos (seguidos por um ataque nuclear fictício em Varsóvia).
Cortejar a Rússia dessa forma seria um erro. Os planos de defesa antimísseis dos Estados Unidos são direcionados ao Irã, não à Rússia. Mas eles também são um símbolo da seriedade transatlântica sobre a Europa. Qualquer sugestão de torná-los uma moeda de troca preocupa aqueles na Polônia e em outros lugares que duvidam da durabilidade do relacionamento de segurança dos Estados Unidos com a Europa.” (grifo meu)
Escrito 13 anos atrás, essa reportagem é premonitória, e antecipa um problema atual: a falta de compromisso dos Estados Unidos com relação à OTAN. Os mais otimistas dirão que o governo Trump somente quer uma maior participação dos europeus em sua própria defesa, mas que não faltarão se o continente for agredido. No entanto, a julgar pela postura de Trump em relação ao conflito na Ucrânia, estão certos “aqueles na Polônia e em outros lugares que duvidam da durabilidade do relacionamento de segurança dos Estados Unidos com a Europa”.