Opinião

Uma reflexão sobre o atendimento ao paciente dependente químico

A problemática do abuso de substâncias psicoativas transcende qualquer explicação simplista que costumamos ver nas redes sociais. Quando eu ministrava palestras e cursos sobre Dependência Química , sempre iniciava minha fala com essa questão. Primeiro que aqui no Brasil, temos uma realidade um pouco diversa de outros países. O consumo de drogas possui um fator agravante pela questão social e econômica. Não é apenas uma questão de saúde pública. Mas também um problema associado à violência e crime organizado. Por isso, falar sobre Dependência Química é algo que poderíamos passar dias e nunca chegaríamos a uma verdade absoluta. Não é meu intuito aqui entrar nos aspectos sociais, econômicos e políticos do que envolve o abuso de substâncias psicoativas. No entanto, é importante destacar que temos uma epidemia no país, quando se fala em Dependência Química.

Só para se ter uma ideia, estima-se que a Dependência Química está entre as principais causas de afastamento do trabalho, por motivo de doença. De acordo com o Ministério da Saúde, 2 em cada 10 adultos fazem uso abusivo de drogas ilícitas e álcool, no Brasil.

Em 1969, a OMS propôs um conceito interessante sobre a Farmacodependência, descrevendo-a como um estado psíquico e, às vezes físico, resultante da interação entre um organismo vivo e um “medicamento “, provocando modificações comportamentais, a fim de alcançar um efeito psíquico e evitar a síndrome de abstinência. Obviamente, que hoje em dia, podemos entender essa problemática dentro de uma perspectiva não apenas medicamentosa, mas também num âmbito de dependência psíquica, pois se houvesse apenas a a questão física, estaríamos todos dentro do mesmo barco, suscetíveis a uma substância.

Mas então o que faz de mim um potencial dependente?

Bom, não é fácil apontar nas ruas quem pode se tornar ou não um dependente de substâncias psicoativas. Há algo no meio desse caminho que não é uma pedra, mas uma falta. O que lindamente escreveu Bernard Giraud, em seu livro Le Manque (1989), “ da dependência instalada em silêncio, um dia caberá um termo: a falta”. E é pegando carona nesse termo “manque “, que acho perfeito na Língua Francesa, que vou tentar explicar parte do problema da dependência se substâncias psicoativas na esfera psíquica. Acho que Chico Buarque disse tudo na música Copo Vazio.

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar.

É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio,
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar.

É sempre bom lembrar,
Guardar de cor que o ar vazio
De um rosto sombrio está cheio de dor.

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar.

Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho,
Que o vinho busca ocupar o lugar da dor.
Que a dor ocupa metade da verdade,
A verdadeira natureza interior.

Uma metade cheia, uma metade vazia.
Uma metade tristeza, uma metade alegria.
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor.
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor.

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar.

música: Copo Vazio
CHICO BUARQUE

Mas é um vazio que faz tropeçar e cair num buraco, muitas vezes, sem fundo. Eu tive um paciente que, sabiamente, dizia a todos que chegavam no grupo terapêutico, que a droga na vida dele parecia um buraco cavado por ele mesmo. Ia caindo e o fundo nunca chegava. Essas frases que escutava quase todos os dias, nos vários grupos em que atendi durante quase 10 anos na mesma instituição, eram como flechas de sabedoria. Sim, porque ninguém mais do que o paciente sabe sobre o seu problema. Nenhuma teoria se constrói sem a experiência e a fala daquele que se propõe a ser escutado. É preciso reconhecer nossa parcial “ignorância” quando se trabalha em clínica. O batente sempre nos ensina e nos lapida. Aliás, também nos leva à tombos necessários, quando saímos da arrogância universitária para a selva do trabalho. E foi assim que, quando cheguei nessa instituição, levei meu primeiro tombo.

Do tombo da arrogância à construção da experiência

E que tombo! Foi lindo! Eu não era recém formada. Contava 6 anos de psicóloga clínica, duas formações, duas pós graduações, sendo uma delas em Clínica Psicanalítica, por uma conceituada universidade federal, sobrevivente de um curso que começou com 7 alunos e terminou com 4. Tinha uma boa experiência clínico institucional, construída ao longo dos mais de 5 anos de faculdade. Eu não podia ser considerada o que se chama “bambambam” aqui no Rio. Mas achava que conseguiria me sair ok dessa.

Logo no meu primeiro dia de trabalho nessa instituição que atendia dependentes químicos, minha chefe perguntou “em que você acha que a Psicanalise vai te ajudar?” Ela era uma cética em relação à Psicanálise e, com certeza, foi uma pergunta meio que provocativa, que agradeço imensamente, pois me fez tombar e admitir minha “manque”. Eu era a única que se achava a psicanalista de lá. A maioria da equipe era de terapeutas comportamentais, e a única coisa que me ocorreu foi que estava ali para aprender e que, pelo menos, tentaria usar a minha “escuta”
e respeitar a verdade do Sujeito. A arma que eu tinha era a de me emprestar ao paciente como um instrumento capaz de ajudá-lo a sair desse buraco sem fundo, mesmo que momentaneamente, para que ele pudesse refletir sobre seus fantasmas, seus medos, sua falta. Mas eu achava que não seria tão difícil assim. Só que não…E a questão que pairava sobre minha cabeça era:

Como é que eu posso te livrar das garras desse amor gostoso?

É isso mesmo! Escutava direto dos meus pacientes que eles tinham prazer ao usar uma droga, ao beber, ao jogar na máquina, ao realizar compras compulsivas. Alguns diziam “doutora, quando eu tô triste, eu bebo. Quando eu tô feliz, eu bebo. Quando eu tô ansioso, eu bebo”. A droga é como se fosse uma amante, uma paixão avassaladora e perigosa.

Pensei:” Uau, e agora? Como é que vou competir com algo tão prazeroso?” Não é fácil, embora não seja impossível. O tratamento para dependentes demanda um trabalho hercúleo de motivação e dedicação, além de resiliência e renúncia, não só do paciente, como do terapeuta. Atender à dependentes de substâncias psicoativas é algo que ou se ama ou se odeia. Não há meio termo! Nós, terapeutas, entramos numa barca quase furada e vamos tirando água o tempo todo para que o paciente não afunde. Muitas vezes, ele só tem a nós quando a questão é acreditar em si, já que, em muitos casos, nem a família acredita mais. Emprestamos nosso lugar e somos tantas coisas , até o garçom cantado por Reginaldo Rossi, que sabiamente afirma “no bar, todo mundo é igual” . Sim, no grupo todo mundo também é igual. Mas o caso de cada um nunca é banal. É único, é importante, é rico em detalhes e, cada frase pode ser um flash. Aí, talvez ele tenha uma sensação de pertencimento, diferente daquela do bar, da boca, do beco. O intuito do tratamento é mostrar justamente, que pra matar a tristeza, ele não precisa necessariamente da mesa do bar. Ele pode construir junto com o terapeuta e com seus colegas de grupo, uma relação de confiança, respeito, cumplicidade e autoconhecimento.

Nesses 10 anos de instituição e mais 3, atendendo fora à pacientes dependentes de substâncias psicoativas, ri, chorei, ganhei e perdi pacientes. Presenciei acontecimentos tristes e até surpreendentes. Vi pacientes morrerem, outros retornarem das cinzas, alguns tornarem-se padrinhos e até psicólogos. Há alguns anos, quando morava em Santa Catarina, atendi um que, durante o processo de tratamento, se descobriu fotógrafo. A terapia é um instrumento de descoberta, autoconhecimento, enfrentamento e muito trabalho. Enfrentar seu eu não é só entrar no drama hamletiano do “ser ou não ser”. É também des-ser(deixar de ser para voltar a ser) e descer do alto de sua ilusão psicoativa, para ser quem realmente é, com seus medos, limitações, dificuldades. E quando se atende em Dependência Química, é necessário mostrar ao sujeito que a falta faz parte da vida e que ele não precisa ir para o lugar do prazer momentâneo, a fim de não sentir essa falta. O efeito da droga é ilusório e ineficaz. Lidar com a ausência de preenchimento e com a “manque” é aquilo que vai fazê-lo mais satisfeito por muito mais tempo. Vai perceber também que não existe felicidade eterna, que as pedras vão e vem. Mas os momentos de alegria e prazer podem ser construídos nas coisas mais simples da vida. Não é fugindo do problema que ele vai resolver suas questões. Mas se conectando é encarando seus fantasmas e limitações, poderá se sentir mais fortalecido. E, como disse uma vez um querido paciente sobre sua relação de busca por esse objetivo sempre inalcançável “ eu aprendi a aproveitar o percurso da viagem pela janela do carro”.

Georgia Lago

Piauiense, 47 anos, mora longe da terrinha há 20 anos. Vida quase cigana, morou em 4 estados e se mudou 7 vezes. Quis ser tanta coisa, de astronauta à desenhista, de cientista à escritora, que precisou cursar Psicologia para não dar um nó na cabeça. Foi meio Amèlie Poulain quando criança e acabou se encontrando na Psicanalise. Formada em Psicologia há 22 anos, trabalhou em todas as áreas afins. Mas sua paixão foi o atendimento à Dependentes Químicos. Recentemente graduada em Design de Moda, se afastou dos atendimentos para pesquisar novas formas de incluir Pessoas com deficiência através do vestuário. Sua maior paixão é ser mãe de duas e, atualmente se dedica as suas filhas e a defesa dos direitos de Pessoas com Deficiência.

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