Opinião

Sobre humor, amor, prazer e preconceitos – o legado de Paulo Gustavo

Nos anos 60, o grande cronista e botafoguense Paulo Mendes Campos fez uma interessante comparação entre dois dos cracaços que jogavam no seu time na época; Didi e Garrincha. Segundo ele, Didi, o líder do meio-campo, era um intelectual do futebol; organizava o time, articulava as jogadas. E seu jogo sofria as agonias próprias da intelectualidade; nem sempre tudo fluía bem, e ele sofria com seus erros e os do time, com a consciência de sua responsabilidade, fardo que todo o intelectual carrega. Já Garrincha era um passarinho; jogava do mesmo jeito uma final de Copa do Mundo ou uma pelada de fim de semana. Sua alegria era jogar bola, e esta bendita irresponsabilidade contagiava os companheiros, que jogavam mais soltos. A conclusão final era que os dois eram importantes para o time, cada um à sua maneira.

“Ridendo castigat mores” (proverbio romano)

A força do riso como agente de transformação dos costumes já era reconhecida na Roma Antiga. E, assim como no futebol daquele maravilhoso Botafogo da minha infância, existem dois tipos de humor que podem ajudar na mudança cultural. Há humoristas que são, claramente, escravos de sua intelectualidade, conscientes de seu papel como críticos sociais, como Chyco Anísio e Jô Soares, por exemplo. Por trás da graça de seus inesquecíveis personagens, havia a angústia de expor e combater a injustiça, de usar o seu humor como arma. Já Paulo Gustavo, que se alinhava neste ponto com o inesquecível Mussum, era um cara que não precisava se esforçar para ser engraçado, ao estilo de Garrincha. Sua graça fluida, a tranquilidade com que usava a problemática expressão “Viado”, me lembrava em muito um dos bordões de Mussum, quando alguém o chamava de “Negão”; “Negão é teu passadis!”. Tenho certeza que ele fez mais pela integração racial que muitos “militantes” neuróticos e lacradores. Da mesma forma, Paulo Gustavo, sem jamais vestir a capa de “militante”, colocou sua homossexualidade de forma tão simples e bem humorada que abriu os olhos de muita gente contra o preconceito. Genial e decisivo como um drible de Garrincha.

Fazendo humor e amor

Sim, eu sou do tempo em que as pessoas, pudicamente, se referiam ao ato sexual como “fazer amor”. Tudo isto foi atropelado pela mudança de costumes, mas peço a licença poética para reviver o tema. Sempre entendi que fazer humor e fazer amor envolvem processos de sedução muito semelhantes. Em ambos os casos é preciso sensibilidade e preocupação com o outro. Millôr Fernandes me ajuda com a frase “Humorismo é fazer cócegas na inteligência dos outros”. Além da relação óbvia entre cócegas e sexo, o tema da inteligência volta à tona; muitas mulheres falam que a inteligência é afrodisíaca. E só gente inteligente faz rir – excluído no caso, o pastelão, desde Três Patetas (que era muito bom) até Debi & Lóide (que é muito ruim). Terminando ao melhor estilo de um bom papo de boteco, vale lembrar que a explosão da gargalhada tem muita semelhança com o orgasmo… enfim, isto a gente discute no próximo chope. Acho que o raciocínio já está bem esclarecido e fundamentado. Ou não.

Voltando ao tema principal, Paulo Gustavo, ao colocar sua mãe como musa inspiradora de toda a sua graça, abria a porta de sua vida privada para todos nós. E foi assim, sem qualquer sentido de revolta ou revanche, que nos colocou com simplicidade a sua paixão homossexual pelo marido, o desejo de constituir uma família, enfim, tudo disponível para todos, conforme é normal nestes tempos de “Big Brother” global. Em outras palavras, ele era o amigo gay de todo mundo, pairando, graças à cumplicidade que só o bom humor e a inteligência proporcionam, acima de qualquer rejeição preconceituosa. E tenho certeza que foi muito mais importante para a luta pela mudança de costumes do que muitos que se dizem “militantes” mas que, com sua fala raivosa e cheia de mágoas, acabam por gerar reações no mesmo nível.

O riso como fator de transformação, conforme profetizaram  os romanos.

A luta continua, companheiros!

Tomo emprestado o insuportável bordão dos sindicalistas para alertar que a perda de um grande craque do nosso time nos obriga a um esforço maior ainda a partir de agora. Na mesma linha, sugiro o grito de guerra; o riso, unido, jamais será vencido!

O amor, o humor e o prazer juntos contra o preconceito. Ajudando nesta luta que, conforme cantava o grande Simonal, é “a luta negra demais, é lutar pela paz, para sermos iguais”. Porque somos todos iguais.

Conforme Deus nos concebeu.

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

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3 Comentários

  1. Excelente , Claro , lúcido , certeza que se ele lesse essa msg , alias ele vai saber desse belíssimo texto , iria as lagrimas juntamente com sua gargalhada inesquecível. Obrigada

  2. O texto mais lindo e verdadeiro sobre o amado Paulo Gustavo. Muito triste ver as amigas que ele tanto amava usando o nome dele pra fazer política, militância e brigando em redes sociais.

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