Ucrânia

“Quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022 – nunca esqueceremos este dia. O dia em que uma insana liderança russa decidiu lançar uma grande guerra contra a Ucrânia. O dia para o qual os ucranianos e seus amigos ao redor do mundo há muito se preparavam, embora tendo a esperança de que ele nunca fosse chegar. O dia em que o Kremlin simplesmente começou uma guerra na Europa. (…) A Ucrânia também subestimou o nível de loucura da liderança de Moscou e a atitude de grandes setores da população russa, que não percebem a Ucrânia como um Estado independente. E muitos ucranianos também se sentiam seguros: “Somos vizinhos, parentes – a Rússia não ousará iniciar uma guerra aberta”. (…) A Rússia usou as receitas de suas exportações de petróleo e gás para desenvolver novas armas e se preparar para uma guerra apocalíptica – não apenas contra a Ucrânia, mas contra o Ocidente como um todo. Houve muitos avisos, tudo aconteceu abertamente – o Kremlin e seus propagandistas nunca esconderam suas intenções. Mas o Ocidente optou por fechar os olhos. Na verdade, a cara dos políticos ocidentais deveria estar vermelha de vergonha. Agora é a hora de corrigir os erros e ajudar a Ucrânia da maneira que pudermos. Haverá luta, derramamento de sangue, talvez ocupação e uma longa guerra de guerrilha. A Ucrânia perderá muitos de seus melhores filhos e filhas. Mas ela sobreviverá – não há dúvida sobre isso. Os ucranianos nunca se conformarão em ser colocados na coleira por Moscou. Esse tempo acabou e não vai voltar. E a Rússia? A rota de agressão tomada por Moscou contra a Ucrânia e todo o mundo ocidental mais cedo ou mais tarde terminará em desastre. Depois disso, a Rússia pode ter a chance de começar de novo. Mas, neste momento, cada um que ama a liberdade é um ucraniano.”
Há três anos, quando compartilhei o trecho acima do artigo de Roman Goncharenko, publicado pelo DW, intitulado “Ucrânia sobrevive, mas Ocidente deveria se envergonhar”, jamais imaginei que a invasão russa na Ucrânia – fato de domínio público – seria objeto de declarações como as que têm sido dadas pelo atual Presidente dos Estados Unidos.
Ao declarar que foi a Ucrânia quem invadiu a Rússia e que Volodymyr Zelensky é um ditador, o presidente americano dissociou-se dos fatos, da verdade, e de alguns valores importantes que não têm lugar nessa espécie de realidade paralela. Paralelamente, sobre Vladmir Putin, nenhuma menção desabonadora, nenhuma responsabilização pela invasão, pela guerra, pelas mortes. Nada.
“Senhor Presidente [Donald Trump], a Ucrânia não “começou” esta guerra. A Rússia lançou uma invasão brutal e não provocada, ceifando centenas de milhares de vidas. O Caminho para a Paz deve ser construído sobre a Verdade. ” (Mike Pence, conservador, republicano, ex-vice presidente dos EUA)
https://x.com/mike_pence/status/1892271536394162229?s=46&t=_avN8F2bOjR6AsAt50B5nA
“Um país invade o território soberano de seu país. Você (com seu povo) se defende. Poucos anos depois, o presidente de outro país que o apoiou no início (com outro presidente) afirma que na verdade vocês iniciaram a guerra e que por isso têm que aceitar as condições daqueles que o invadiram, e também devolver a ajuda que lhe foi dada, e pressionar o mundo inteiro por isso. É isso que o presidente Trump está fazendo com a Ucrânia. E isso é inaceitável. Que as forças poderosas que nos movem não nos façam renunciar aos nossos princípios.” (Gabriel Boric, de esquerda, Presidente do Chile)
https://x.com/gabrielboric/status/1892355876201062790?s=46&t=_avN8F2bOjR6AsAt50B5nA
As duas declarações acima não questionam se os EUA, como qualquer país, deve zelar pelos seus interesses, mas ambas deixam expresso um limite para manipulação da verdade. Mike Pence e Gabriel Boric alertaram sobre a impropriedade da tentativa de reescrever a história. Não é uma questão de esquerda/direita. É respeitar a “red line”.
Quando o Senador Mark Kelly perguntou de forma direta “A Rússia invadiu a Ucrânia?”, ao indicado para Secretário Adjunto de Defesa, foi constrangedor assistir o Sr. Feinberg hesitar.
https://x.com/senmarkkelly/status/1894502915101863972?s=48&t=_avN8F2bOjR6AsAt50B5nA
A resposta simples e factual “Sim, a Rússia invadiu a Ucrânia” é algo que o representante de um governo americano diria livremente, sem hesitação. Porque é a verdade. Não é, todavia, o que se vê nos Estados Unidos em 2025.
Desconheço a atuação da congressista americana Jasmine Crockett (D-TX), mas sua fala aos colegas em uma reunião do Comitê de Supervisão da Câmara foi absolutamente pertinente:
– Sr. Presidente, adivinhe? A Rússia invadiu a Ucrânia. Podemos pelo menos concordar com isso? Os fatos importam. Há alguém aqui que tenha coragem suficiente para dizer que a Rússia invadiu a Ucrânia? Este é o problema.
https://x.com/nexta_tv/status/1895048912337015123?s=46&t=_avN8F2bOjR6AsAt50B5nA
A quem interessar possa, o Institute for the Study of War divulgou uma ficha informativa com dados precisos sobre o conflito. Entre os fatos apresentados estão: a proibição, pela lei ucraniana, de realizar eleições durante a guerra; o expressivo apoio financeiro europeu à Ucrânia (que em alguns casos supera o dos EUA); as várias tentativas de Zelensky de negociar com Putin antes da invasão em 24 de fevereiro de 2022 e; a rigorosa supervisão dos fundos americanos destinados ao país.
Sobre o último ponto, é informado que a Ucrânia não fez uso indevido ou perdeu metade da ajuda fornecida pelos Estados Unidos. A maioria dos fundos que os Estados Unidos alocaram para a Ucrânia teria permanecido nos Estados Unidos para financiar a base industrial de defesa nacional e repor os estoques dos EUA. Acrescenta-se nas informações que as agências do governo dos EUA supervisionam de perto a ajuda restante dos EUA, que é emitida diretamente para a Ucrânia, e que o Gabinete do Inspetor Geral do Departamento de Defesa dos EUA (DoD) relatou em 11 de janeiro de 2024 que não havia encontrado nenhuma evidência de ajuda desviada.

Garantir esferas de influência é do jogo. Reabilitar um criminoso de guerra, faltando com a verdade sobre os corpos de milhares de vítimas ucranianas, incluindo crianças sequestradas, entre outras barbaridades, é inaceitável.
Lembro que o presidente do Tribunal Penal Internacional de Haia, Piotr Hofmanski, ao anunciar que foi emitido um mandado de prisão contra Vladimir Vladimirovich Putin e Maria Alekseyevna Lvova-Belova, por crimes de guerra praticados e por ter sequestrado milhares de crianças ucranianas, o que é vedado pela IV Convenção de Genebra de 1949, acrescentou mais um capítulo na guerra de invasão desencadeada Vladimir Putin. As provas sobre transferências forçadas de crianças da Ucrânia para o território russo foram apresentadas pela Procuradoria do @IntlCrimCourt. A execução da medida tinha/tem suas limitações. Na ocasião, li que o mais provável é que servisse na prática para isolar Putin como chefe de Estado fora das fronteiras russas – que ele tem como obsessão alargar. A prosperar a atual tentativa de sua reabilitação pela maior democracia do planeta, o efeito prático da condenação desaparece.
Há regras fundamentais no jogo: não tolerar guerras de invasão em um país livre e soberano, não atacar deliberadamente civis, não alvejar deliberadamente hospitais. Não sequestrar crianças. No ponto, me dói lembrar que o Brasil se absteve na votação na ONU que pedia o retorno das crianças ucranianas deportadas ilegalmente para a Rússia. Apesar dos votos contrários e abstenções, o texto favorável foi aprovado com 81 votos .
“Nos primeiros meses da guerra, 314 crianças ucranianas foram levadas para a Rússia, segundo um relatório da Escola de Saúde Pública de Yale apoiada pelo Departamento de Estado dos EUA. O documento apontou que o Kremlin usou aviões presidenciais para sequestrar os menores de territórios ucranianos e colocá-las em famílias russas”.
(Crusoé, em 17.12.2024)
Em 26 de fevereiro de 2025, o ex-embaixador americano, Michael McFaul, recordou em sua conta no X, que “George Shultz [seu mentor], costumava dizer que você pode negociar com bandidos sem deixar seus valores na porta. E você certamente não precisa mentir sobre fatos. A equipe Trump deveria estudar essa lição básica de diplomacia da era Reagan”.
https://x.com/mcfaul/status/1893744998899708206?s=46&t=_avN8F2bOjR6AsAt50B5nA
Em um discurso histórico em Munique, JD Vance expôs a desconexão entre os valores outrora compartilhados entre os EUA e a Europa. Mas é de se perguntar, nesse contexto, quais valores JD Vance, na prática, possui, chancelando uma negociação sobre a guerra na Ucrânia/Europa que exclui a Ucrânia e os demais países europeus envolvidos, ou a imposição de eleições na Ucrânia em tempo de guerra, além do questionamento infundado sobre a popularidade de Zelensky. Tudo isso enquanto o 47º presidente americano posiciona a Rússia como “invadida”. A Rússia, liderada por Putin, um ditador há anos no poder, com eleições de fachada!
O jornalista inglês, Piers Morgan, autor de “Woke is dead”, escreveu em sua página no X: “O Reino Unido não teve eleições gerais de 1935-45 por causa da Segunda Guerra Mundial. Como diabos a Ucrânia pode ter uma agora, já que 6 milhões de pessoas ficaram como refugiadas quando a guerra começou, outros 3,5 milhões estão vivendo sob ocupação russa ilegal e o país está em estado de lei marcial? Ridículo.”.
https://x.com/piersmorgan/status/1892593948914246085?s=46&t=_avN8F2bOjR6AsAt50B5nA
Piers Morgan não é exceção. As críticas ao posicionamento atual da Casa Branca entre apoiadores de Trump são o “novo normal”. Quando a capa de um veículo como o New York Post expõe em letras garrafais “This is a dictator”, na foto de Putin, o recado está dado.

A reportagem de capa, escrita por Douglas Murray, editor associado do The Spectator e autor de The War on the West: How to Prevail in the Age of Unreason, tem como título: “Mr. President: Putin is THE dictator and 10 Ukraine-Russia war truths we ignore at our peril”. 10 verdades simples, os fatos, ignorados por conta e risco.
Douglas Mourray, que retornou à Ucrânia essa semana, também tratou, em mais uma reportagem publicada no NYP, sobre o abuso da Rússia em relação à população ucraniana, em particular, das 20.000 crianças ucranianas levadas para Rússia. Leitura difícil, contudo necessária.
“Cerca de 20.000 crianças foram levadas para a Rússia. Algumas eram órfãs, outras foram separadas de suas famílias. Elas serão criadas doutrinadas na visão de Putin, falando russo, não ucraniano. Muitas serão recrutadas para seu exército. (…) Dizer que todos esses são crimes de guerra é declarar o óbvio. Dizer que esses são crimes contra a humanidade é usar uma frase totalmente inadequada para a tarefa. O que eles são é uma pequena amostra da vasta população de crianças para quem Vladimir Putin trouxe terror e guerra desde 2022. Em uma guerra de sua escolha. Uma guerra que ele poderia ter terminado em um dia de sua escolha. Se ele quisesse.”
Quem sabe seja o tipo recado que faça alguma diferença. Há três anos, tinha a percepção de que a pressão interna (no caso, dos oligarcas russos) faria maior diferença para Putin do que a externa. Talvez seja, agora, o caso de Trump. Talvez.
Até lá, são chocantes alguns posicionamentos, não só do presidente americano, também de alguns dos seus principais apoiadores – muito mais que isso, a bem da verdade, de um dos integrantes do atual governo -, o empresário Elon Musk. Um deles, assisti em um vídeo, no qual Musk, usando óculos escuros, pergunta: “Pelo que os ucranianos estão morrendo? Pelo que exatamente eles estão morrendo?”
Shaun Pinner, autor de Fight for Survive, ex-soldado do Exército Britânico que ingressou nas Forças Armadas Ucranianas como combatente em 2018 e lutou durante a invasão russa da Ucrânia, respondeu em sua página:
“Você está brincando?
A Rússia tem campos de concentração, está cometendo genocídio na Ucrânia. Dividindo nossas famílias e matando nossos amigos. Usando violência sexual como uma ferramenta enquanto a taxa de execução de prisioneiros de guerra ucranianos aumentou, não caiu. A Rússia massacrou mais de 25.000 ucranianos predominantemente falantes de russo apenas em Mariupol, incluindo mulheres e crianças. Enquanto você nem tem o respeito de tirar seus óculos escuros?”
Não tardou para que Elon Musk recebesse Notas da Comunidade do X/Twitter, corrigindo suas falas, como a de que Zelensky é um ditador e que deve realizar eleições.
https://x.com/hoje_no/status/1892691533293617406?s=46&t=_avN8F2bOjR6AsAt50B5nA
Concordo inteiramente com a ex-primeira-ministra da Finlândia, Sanna Marin, quando ela diz, na The Economist, que “é inteiramente razoável que os contribuintes americanos questionem por que eles deveriam arcar com mais custos da segurança europeia do que a própria Europa” e, mais ainda, quando ela diz que “é irrealista não fortalecer as capacidades de defesa da Europa.”
Mas não é disso que se trata.
Regimes autoritários, como o da Rússia e o Regime Islâmico do Irã, asseguram suas esferas de influência por meio do terrorismo de Estado e da invasão. Vamos normalizar isso? Não me chamem. Eu não preciso ter vivido “na época da ditadura” para saber que não devo apoiar uma. Eu votei pela primeira vez, aos 17 anos, nos anos 90, auge da democracia liberal e é nesse quadrante que permaneço. Não divido o mundo em mocinhos e bandidos, mas reconheço quando estes últimos se apresentam: Putin é um ditador, reabilitá-lo não é realpolitik ou pragmatismo, é um ato de cinismo. E é imoral. A moralidade transita, sim, por tudo isso.
Pela sua relevância, transcrevo adiante a íntegra do artigo publicado no Persuasion, por Francis Fukuyama, cientista político norte-americano, em 20/02/2025:
“A Traição Definitiva
Os Estados Unidos acabaram de mudar de lado na guerra da Ucrânia
Mesmo que qualquer pessoa com olhos pudesse ver isso chegando, os movimentos recentes de Donald Trump em relação à Ucrânia e à Rússia representam um golpe devastador. Estamos no meio de uma luta global entre a democracia liberal ocidental e governos autoritários, e, nessa batalha, os Estados Unidos acabam de mudar de lado e se aliar ao campo autoritário.
O que Trump disse nos últimos dias sobre a Ucrânia e a Rússia desafia a crença. Ele acusou a Ucrânia de ter iniciado a guerra por não ter se rendido preventivamente às exigências territoriais russas; afirmou que a Ucrânia não é uma democracia; e disse que os ucranianos estavam errados em resistir à agressão russa. Essas ideias provavelmente não foram concebidas por ele, mas vêm diretamente da boca de Vladimir Putin, um homem por quem Trump já demonstrou grande admiração. Reunidos na Arábia Saudita na terça-feira, os Estados Unidos iniciaram uma negociação direta com Moscou, excluindo tanto a Ucrânia quanto os europeus, e cederam antecipadamente dois trunfos cruciais: a aceitação das conquistas territoriais russas até o momento e um compromisso de não permitir que a Ucrânia entre na OTAN. Em troca, Putin não fez uma única concessão.
Levo isso particularmente para o lado pessoal, pois meus colegas da Universidade de Stanford e eu temos trabalhado arduamente desde 2013 para apoiar a democracia na Ucrânia. Realizamos diversos programas para treinar profissionais ucranianos de meia carreira em habilidades de liderança e valores democráticos. Visitei o país muitas vezes e desenvolvi muitas amizades com um grande grupo de ucranianos inspiradores.
Só para deixar claro, há aqui uma enorme questão moral em jogo. A Ucrânia é uma jovem, frágil e imperfeita democracia liberal, mas ainda assim é uma democracia liberal. A Rússia, por outro lado, é a mais recente encarnação da antiga União Soviética, uma entidade cuja dissolução em 1991 Putin lamenta e vem tentando reverter desde então. Trata-se de uma ditadura na qual uma única palavra errada nas redes sociais pode levar alguém à prisão por anos. Lembro-me de caminhar pela Praça Maidan, em Kyiv, alguns anos atrás, maravilhado com o fato de que a Ucrânia era uma sociedade genuinamente livre, onde se podia criticar o governo, circular livremente e votar em um candidato da oposição (como os ucranianos fizeram ao eleger Zelensky e seu partido, Servo do Povo, em 2019). Nada disso acontece na Rússia, que regrediu a uma ditadura totalitária.
Qualquer acordo de paz “negociado” agora pelo governo Trump e pela Rússia não trará paz. Pode haver um cessar-fogo temporário, mas os russos irão se rearmar e reabrir a guerra assim que se reabastecerem. Eles não têm razão para respeitar as atuais linhas de cessar-fogo e buscarão reabsorver toda a Ucrânia no momento oportuno.
Menos notado em meio à atual comoção está o anúncio do Secretário de Defesa, Pete Hegseth, de reduzir o orçamento de defesa dos EUA em 8% ao ano pelos próximos cinco anos. Isso é exatamente o oposto do que os Estados Unidos deveriam estar fazendo. No futuro, haverá novas ameaças russas a todos os países de sua periferia—Geórgia, Moldávia, os Estados Bálticos e Polônia. Os EUA não precisam se retirar formalmente da aliança da OTAN; Trump já sinalizou claramente que não cumprirá o compromisso do Artigo 5 de defesa mútua. A América será enfraquecida tanto em sua intenção quanto em sua capacidade de enfrentar futuras ameaças de grandes potências.
E não deixe que ninguém diga que isso está sendo feito para focar nas ameaças de segurança no Extremo Oriente. Neste momento, é inconcebível que Donald Trump use o exército dos EUA para defender Taiwan contra a China. Se a China impor um bloqueio ou se preparar para uma invasão, Trump iniciará uma negociação com Xi Jinping, assim como está fazendo com Putin, que na prática entregará o controle da ilha. Ele então se vangloriará de ter evitado uma guerra.
Os Estados Unidos, desde 1945, têm apoiado uma ordem mundial liberal baseada em normas como a proibição do uso da força militar para mudar fronteiras e em acordos formais de defesa mútua, como a OTAN e os tratados de segurança com Japão e Coreia do Sul. Esse sistema foi espetacularmente bem-sucedido em promover paz, prosperidade e democracia. Os EUA usaram seu soft power por meio de instrumentos como a National Endowment for Democracy para apoiar defensores da democracia contra o poder autoritário de países como China, Rússia, Irã e Coreia do Norte.Os Estados Unidos sob Donald Trump não estão recuando para o isolacionismo. Eles estão ativamente aderindo ao campo autoritário, apoiando autocratas de direita em todo o mundo, de Vladimir Putin a Viktor Orbán, Nayib Bukele e Narendra Modi. A National Endowment for Democracy pode muito bem renascer como a National Endowment for Dictatorship (Fundação Nacional para a Ditadura). Como podemos dizer à Rússia e à China para não continuarem suas conquistas quando nós mesmos estamos ocupados tentando absorver o Panamá e a Groenlândia? Esses movimentos de política externa são completamente coerentes com o ataque do governo Trump ao Estado de Direito no plano interno, seu fortalecimento do poder executivo e o enfraquecimento dos freios e contrapesos em todos os níveis. Não me digam que o povo americano votou por um mundo ou um país como este no último novembro. Eles não estavam prestando atenção—e deveriam se preparar para ver seu próprio país e o mundo transformados além do reconhecimento.”
As desventuras em série não pararam por aí.
No dia 24 de fevereiro de 2025, dia em que se marcava o trágico aniversário de três anos de guerra na Ucrânia, os EUA votaram contra a resolução pró-Ucrânia, ao lado – até um dia desses impensável – da Rússia, entre outras ditaduras.
O Brasil se absteve (assim como China, Cuba, Irã, Iraque, Catar, Índia, Colômbia, El Salvador, Argentina…).
A resolução, além de colocar a Rússia, devidamente, como agressora, continha uma demanda pela retirada das tropas russas da Ucrânia.
Quem foi contra, além dos EUA? Bielorrússia, Burkina Faso, Burundi, Coreia do Norte, Eritreia, Guiné Equatorial, Haiti, Hungria, Ilhas Marshall, Israel, Mali, Nicarágua, Níger, Palau, República Centro-Africana, Rússia e Sudão.

Definitivamente, estamos navegando por águas desconhecidas.
Camus, em O Homem Revoltado, alerta sobre o niilismo moral que está no fascismo e no comunismo. Continua atual, independente do rótulo ideológico que se dê aos revolucionários e/ou ditadores da vez.
“Não é justo identificar os fins do fascismo com os do comunismo russo. O primeiro representa a exaltação do carrasco pelo próprio carrasco. O segundo, mais dramático, a exaltação do carrasco pelas vítimas. O primeiro nunca sonhou em libertar todos os homens, mas apenas em libertar alguns e subjugar os outros. O segundo, em seu princípio mais profundo, visa libertar todos os homens escravizando todos, provisoriamente. É preciso reconhecer-lhe a grandeza da intenção. Mas é legítimo, pelo contrário, identificar seus meios com o cinismo político que ambos buscaram na mesma fonte, o niilismo moral. Tudo se passou como se os descendentes de Stirner e de Netchaiev utilizassem os descendentes de Kaliayev e de Proudhon. Atualmente, os niilistas estão no trono. Os pensamentos que pretendem conduzir nosso mundo em nome da revolução tornaram-se na realidade ideologias de consentimento, não de revolta. Eis por que nosso tempo é a era das técnicas privadas e públicas de aniquilação.”
Os EUA ainda são uma democracia, mas, a continuar assim, o Sr. Donald não se mostra digno de carregar a bandeira de valores como a liberdade. “América First”, posicionando-se politicamente ao lado de ditaduras, chancelando quem subjuga outros povos, com uma bota em seus pescoços?
Por mais que mantenha em mente que nenhuma conquista civilizatória é garantida, uma desconfortável sensação foi inevitável. Estava pensando sobre isso quando vi a recomendação de uma entrevista com o ex-chefe do MI6, Sir Alex Younger , que já começa assim:
“O mundo está entrando em uma nova era de diplomacia e relações exteriores. Estamos em uma nova era onde as relações internacionais não serão determinadas por regras e instituições multilaterais, elas serão determinadas por homens fortes e acordos”.
A referência dada por Sir Alex Younger na entrevista foi o tratado de Yelta no final de 1945 “onde três homens fortes, em nome dos grandes países, os países fortes, decidiram o destino dos pequenos países”. Para ele, “essa é a mentalidade de Donald Trump, é certamente a mentalidade de Putin e é a mentalidade de Xin Jin Ping”. “Não é a mentalidade da Europa”. E acrescenta: “esse é o mundo em que estamos entrando por um conjunto de razões e eu não acho que vamos voltar para o que tínhamos antes.”
Em muitos momentos da entrevista o silêncio era palpável. Houve um reconhecimento de um “aproveitamento” europeu em relação aos EUA. Donald Trump não estaria inteiramente errado quando instou anteriormente os europeus a cuidarem de sua defesa, o que ainda seria possível, segundo Sir Alex Younger, diante das suas capacidades. O senso de urgência, todavia, era perceptível. Se eu bem entendi o final, ainda que os europeus fizessem a partir de agora o “trabalho de casa“, sem os EUA como um aliado, há um grande problema.
Estaríamos testemunhando o fim da aliança transatlântica? É o que pensa o alemão Wolfgang Münchau (@EuroBriefing), diretor da EuroIntelligence, em artigo.
Na Conferência de Yelta, com Churchill, Roosevelt, e Stalin estabeleceu-se, entre outras, a rendição incondicional da Alemanha, sua divisão entre os aliados, e o domínio da União Soviética no Leste Europeu. Era o pós-guerra de um conflito mundial.
O que se delineia é que os EUA, decisivos na Segunda Guerra Mundial em apoio ao mundo livre, estão abandonando o “soft power”, a capacidade de influenciar por meio da atração, com a formação de alianças em cooperação global, baseada na confiança entre os países.
Também li um artigo do WSJ que relembrou como, durante seu primeiro mandato, Trump pressionou Zelensky em troca de favores políticos – exigindo que o presidente ucraniano investigasse Joe Biden e seu filho Hunter. O episódio culminou, para Trump, em um processo de impeachment por abuso de poder, do qual ele foi absolvido pelo Senado. Mr. Biden, lembre-se, que já havia concedido perdão pleno e incondicional para o filho em dezembro/24, também concedeu durante “a passagem do bastão” para Mr. Trump, perdão pleno e incondicional para toda a família. Tudo isso sugere, também, a possibilidade de uma questão pessoal envolvida entre Donald Trump e Volodymyr Zelensky.
Nada disso, frise-se, justifica a manipulação de verdades simples como se tem visto. A fatura pode incluir um preço alto: como consequência do declínio da influência da chamada maior democracia do planeta, pela perda de credibilidade, o declínio de valores como liberdade e democracia.
Quando foram anunciadas as primeiras “soluções” americanas para esta guerra de invasão da Rússia contra a Ucrânia, repita-se, com todas as concessões para Vladimir Putin “em troca de paz”, foi difícil não lembrar, imediatamente, da paz que Neville Chamberlain projetou e a que o mundo recebeu, após o acordo que Chamberlain fez em Munique com Hitler em 1938. Depois, pensando melhor, me pareceu injusta a comparação. Chamberlain fez um péssimo julgamento, mas ainda estava sob o forte impacto da Primeira Guerra Mundial e, bem ou mal, o tempo foi aproveitado para, entre outras, o governo da Grã-Bretanha aumentar sua produção militar. E o principal: quando Chamberlain avaliou mal a situação me pareceu estar de boa fé e ser honrado. Isso conta. Seguem as sempre oportunas as palavras de Sir Winston Leonard Spencer Churchill sobre a tal promessa de paz e apaziguamento:
“E não suponham que isto é o fim. Isto é apenas o início do acerto de contas. Este é apenas o primeiro gole, a primeira amostra de uma taça amarga que nos será oferecida ano após ano, a menos que por uma suprema recuperação da saúde moral e do vigor marcial, nos ergamos novamente e tomemos nossa posição pela liberdade como nos velhos tempos.”

E tomar a posição pela liberdade, quando se trata da luta descomunal de vida e morte que os ucranianos estão enfrentando, é muito diferente das bravatas em rede social. Em minha mente, reverberam as últimas palavras do artigo do DW, há três anos, compartilhadas no início desse texto: neste momento, cada um que ama a liberdade é um ucraniano.
Sir Keir Starmer, o atual primeiro-ministro britânico, anunciou, anteontem, no Parlamento, “o maior aumento sustentado nos gastos com defesa desde o fim da Guerra Fria”. Afirmou, ainda, que a Rússia é uma ameaça nas águas, no espaço aéreo e nas ruas. Defendeu as medidas em artigo publicado ontem no Dailymail.
Completei mentalmente com as palavras de outro primeiro-ministro britânico, sim, Sir Winston Leonard Spencer Churchill, em um de seus discursos históricos: “defenderemos nossa ilha, qualquer que seja o custo”.
Então fui reler a sequência do discurso e o final dele, confesso, eu não lembrava, e me pegou desprevenida:
“… Lutaremos nas praias, lutaremos nos terrenos de desembarque, lutaremos nos campos e nas ruas, lutaremos nas colinas; nunca nos renderemos, e se, o que eu não acredito nem por um momento, esta ilha, ou uma grande porção dela fosse subjugada e passasse fome, então nosso Império de além-mar, armado e guardado pela Frota Britânica, prosseguiria com a luta, até que, na boa hora de Deus, o Novo Mundo, com toda a sua força e poder, daria um passo em frente para o resgate e libertação do Velho.”
O Novo Mundo, os EUA, que deram o passo em frente, na Segunda Guerra Mundial, e foram decisivos não só para a Grã-Bretanha, com quem possui laços tão expressivos, mas como todo o chamado mundo livre, onde os valores comuns importavam.
Os contribuintes americanos e o presidente que elegeram têm todo o direito de ter a opinião de que, atualmente, não compensa despender bilhões de dólares na Europa para evitar que ela fique vulnerável à Rússia (semelhante ao que ocorreu com o Plano Marshall). Nada disso dá a ninguém o direito aos fatos. A manipulação de verdades simples pode cobrar um preço ainda maior. Liberdade e Democracia. A marca americana que faz com que mentes brilhantes, fugindo de ditaduras, optem pela estrutura que os EUA lhes proporcionam para desenvolver seus talentos.
Tudo isto dito, temos a análise de um “trem em movimento”. Enquanto o cenário internacional se reconfigura em meio a reviravoltas e desafios sem precedentes, torna-se imperativo reafirmar que a verdade não pode ser negociada. A resistência da Ucrânia frente à invasão não é apenas a luta de um país por sua soberania, mas o símbolo de uma batalha maior contra a tirania e a manipulação. Em um momento em que os caminhos parecem cada vez mais traçados pela força bruta, em franco retrocesso, a esperança reside na capacidade dos povos e de suas lideranças de se manterem fiéis aos princípios que sustentam a liberdade. Que a memória daquele fatídico 24 de fevereiro nos inspire a reafirmar tais valores. Deram aos ucranianos três semanas. Lá se vão três anos.
Com quem o Brasil se alinhará, entre ditadores, autocratas, e democratas, nesse tabuleiro? Decidiremos ano que vem, o que também nos afetará, e repercutirá em muito mais do que quatro anos. Liberdade e Democracia.
Na lição de André Comte-Sponville, o contrário do niilismo não é o otimismo, não é o entusiasmo, não é o fanatismo. É o amor e a coragem. Não se pode esperar que lideranças políticas demonstrem amor; sem coragem e princípios, o desfecho é previsível.
P.S. Para Benjamin Ferencz (In memoriam), promotor nos Julgamentos de Nuremberg, Vladimir Putin deveria estar ‘atrás das grades’. Em artigo publicado no The Mirror, há três anos, disse que se sentiu devastado quando soube que as forças de Putin explodiram uma vala comum com 33.771 vítimas, em grande parte judias. “Com a voz elevada, às vezes gritando, ele disse: “Os crimes que estão sendo cometidos contra a Ucrânia pela Rússia são uma vergonha para a sociedade humana, os responsáveis devem ser responsabilizados por agressão, crimes contra a humanidade e assassinato simples. Assim que eles começarem a arrastar os criminosos perante um tribunal, mais felizes seremos”.” Ao meu palpite de que a providência divina poupou Benjamim do massacre de 7 de outubro de 2023, em Israel, somo o atual sentimento de impotência dos organismos internacionais criados no pós-guerra, diante dos fatos que compartilhamos. Dias melhores para quem saúda a liberdade.