Opinião

Tragédia Anunciada

A democracia, por óbvio, não se limita ao voto. Ela inclui direitos a minorias e, especialmente, um sistema de freios e contrapesos entre os poderes, entre outras características.

Pois bem, suponha que o sistema de freios e contrapesos, por um acaso, se desvirtue. O que fazer? Ora, a ideia majoritária é que o sistema democrático se autocorrigirá. No geral, essa é uma boa perspectiva, pois o tempo se encarrega de corrigir a falha. O problema é que essa dinâmica não é garantida.

Uma das características da democracia é a alternância de poder. Mas, suponha que haja uma conjuntura que suprima/evite temporariamente a alternância de Poder, por exemplo um “boom de commodities”, a ponto de o sistema gerar uma captura/um aparelhamento de um dos poderes por meio de nomeações a ministros do STF (vitalícios). Agora imagine que as indicações não foram devidamente escrutinizadas pelo Senado, ignorando-se, por exemplo, os quesitos de notável saber jurídico e reputação ilibada.

De novo, imagina-se que o sistema de freios e contrapesos vá funcionar. A hipótese é válida, mas heróica, pois não funcionou para evitar o aparelhamento inicial. Daí, por meio de uma fé que emociona o mais cético, espera-se que o problema se resolva posteriormente.

A realidade, contudo, insiste em ser outra. Na casa de quem monitora o Poder em questão, viola-se descaradamente a Constituição e evita-se a suspensão dos direitos políticos da presidente impedida. Uma vergonha, certamente oriunda de um acordo prévio.

E se não bastasse isso, entre tantas outras ilegalidades, priva-se um parlamentar da liberdade, covardemente abandonado por seus pares, mas, pior, indicando a submissão do monitor ao monitorado.

De fato, imagine que o Poder aparelhado tenha a prerrogativa de julgar quem o monitora e tenha, de fato, provas (às vezes obtidas de forma ilegal) de seus crimes, especialmente de líderes influentes entre aqueles eleitos pelo voto. Ora, é claro que isso poderá ser usado como barganha para acomodar interesses.

Enfim a dinâmica de “troca de gentilezas” está estabelecida. E, quando quem indica um novo ministro também está comprometido com essa dinâmica, ao não enfrentar o aparelhamento preso em sua covardia, a dinâmica perversa se consolida.

Isso será corrigido com o tempo? Ou isso será aprofundado com o tempo? A evidência mostra um aprofundamento sistemático, gradual, contínuo sem recuos neste país, como aconteceu na Venezuela. Lá o processo foi similar, mas foi mais rápido porque as Forças Armadas foram rapidamente aparelhadas, via expurgo dos comandantes oposicionistas ao governo “democraticamente” eleito pelo povo. Aqui só falta isso e talvez seja bem tarde para uma reação democrática.

Pausa para reflexão: as evidências de que o sistema não funciona estão aí, mas acredita-se que vão funcionar. As evidência desfavoráveis são consistentes e repetitivas, mas há um viés cognitivo pelo qual a vítima precisa acreditar que vai funcionar para não se desesperar em sua impotência diante de uma tragédia que se avizinha.

Os homens de bem se acovardaram quando deveriam reagir. E, por isso, estamos à mercê das boas intenções de quem nos conduz. A correção não será pela morte de quem vilipendia, pois ratos se reproduzem rapidamente. Logo, resta acreditar no tempo para corrigir essa dinâmica, achando que ela virá democraticamente pelo voto.

Essa crença do voto precisa ser combinada com a impossibilidade de fraude (exemplo: não usar propina para eleger-se) e com uma maioria absoluta de eleitos comprometidos com uma democracia platônica de livro-texto; seria como eleger um exército de soldados bem intencionados dispostos a desaparelhar o Poder que dá a última palavra em tudo, embora encastelados num sistema jurídico que o protege.

A probabilidade de se eleger esses 594 parlamentares bem intencionados, considerando os currais eleitorais envolvidos, tende a zero. Ora, ora, hoje os eleitores votam em candidatos atolados de processos e até em condenados pela justiça. Por que isso mudaria?

Segue-se que a dinâmica estabelecida não tem volta. Alguns soldados serão eleitos, mas jamais vencerão as muralhas da iniquidade estabelecidas firmemente entre 2003 e 2015. A democracia falhou nesse período e ninguém percebeu, pois foram nomeados 7 dos 11 ministros atuais do STF, com a cumplicidade da casa que os sabatinou.

O que resta?

1. Juntar-se ao stablishment;

2. Emigrar;

3. Revoltar-se.

A terceira possibilidade requer líderes. O brasil não tem líderes. A matéria-prima de que é feito o brasileiro, afinal, produziu o resultado que está aí.

Mesmo que se eleja um presidente comprometido com a renovação do STF, haverá como renová-lo em número suficiente de ministros durante sua presidência? Se estiver comprometido, é preciso notar que os efeitos não se deverão notar em seu mandato, desencorajando uma conduta de confronto. Se estiver, é preciso imaginar que seus interesses pessoais não serão atingidos. Se estiver, é preciso combinar com o Senado. Se você acredita que essa miríade de circunstâncias vai acontecer… você também deve achar que vivemos em regime democrático de normalidade, mesmo ante inquéritos ilegais, conduzidos por quem se diz vítima, é acusador e é julgador.

Certo, e se o presidente eleito não estiver comprometido? Como fica?

Rodrigo De Losso

Rodrigo De Losso tem Ph.D em Economia pela Universidade de Chicago e é professor do Departamento de Economia da USP. A ideia aqui é mostrar como teoria econômica pode ser aplicada a temas do cotidanos, às vezes polêmicos, sem deixar de falar dos outros assuntos que o interessam com música, vinhos, literatura, cinema e política.

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