Opinião

Que Deus nos acuda

Silvana Destro

Quando eu era criança, não tinha esse luxo de réveillon na praia. O máximo era assistir à retrospectiva do ano na televisão e esperar os fogos que meu pai comprava e soltava na varanda de casa à meia noite.

As coisas foram mudando e a festa de fim de ano foi ganhando outros contornos: na praia, no sítio e até fora do Brasil. Mas esse ano é como se eu – e todo mundo – retrocedesse 100 anos. A única expectativa é que passe logo e a esperança persista.

Persistir com a esperança será o ato mais hercúleo de 2021. Sem vacina, para muitos sem o auxílio emergencial, sem perspectiva de futuro e com um homem atormentado e desnorteado à frente das principais decisões que o Brasil tem que tomar.

Com ele, uma horda de fanáticos pautada pela ignorância, pelas fake news, e por uma equipe de governo que não tem a menor ideia do que fazer. Primeiro, porque o rombo nas contas públicas beira a casa de R$ 1 trilhão. Segundo porque são pessoas que não têm preparo técnico, emocional e até caráter para tocar as emergências.

No começo da pandemia já se antevia que alguns ministérios teriam que funcionar mais do que outros, como da Economia e Saúde. E ambos pecaram pela falta de um detalhe fundamental: planejamento.

Na Economia, a impressão é de que Paulo Guedes jogou a toalha, agora ao fim do ano. Perdeu seus técnicos de carreira por WO; como ele, não tiveram estômago para enfrentar a máquina pública, tampouco jogo de cintura político para enfrentar um Congresso viciado e hostil, no mais genuíno estilo “macaco-velho”. A equipe chegou imaginando que a explosiva propaganda do Posto Ipiranga – o garoto de Chicago – meteria medo nas Excelências. Não deu certo.

Pagaram auxílio emergencial para militares, gente com foto em Paris no Instagram, candidatos nas eleições municipais, a maioria com patrimônio considerável. Até hoje o Tribunal Superior Eleitoral não teve a decência de denunciá-los. P l a n e j a m e n t o…

O ministério da Saúde foi o mais penalizado. Mandetta pegou um rojão muito maior, pois ninguém sabia absolutamente nada sobre o vírus, e até hoje é criticado pelo “fique em casa”. Apesar dos pesares, tenho convicção de que isso salvou muitas vidas. Houve perdas? Muitas, empregos principalmente. Mas como não havia plano de governo, ficaram elas por elas, e o auxílio emergencial será eternamente exaltado como um grande trunfo de Bolsonaro.

Agora, sem dinheiro e sem plano, quase 50 milhões de brasileiros voltarão à forma original. Não tem planos para eles, para as empresas, para os cidadãos. Talvez um impostozinho a mais aqui, outro acolá e assim se arrasta até 2022, com promessas mil, de que agora tudo vai ser diferente.

Plano de enfrentamento à pandemia para as empresas? Plano pós pandemia? Zero.

Enquanto Mandetta tinha algum traquejo político, e conseguiu produzir alguma coisa apesar da pressão desumana a que foi submetido, Teich era um técnico essencialmente. Um excelente técnico sem nenhum traquejo político, e muitos brios para suportar seguir as ordens de um presidente que nada entende de saúde e de seres humanos, mas com pretensões políticas homéricas. Era preciso, então, achar um capacho, finalmente encontrado nas Forças Armadas.

Eduardo Pazuello sabia que o cargo estava muito além de suas habilidades, mas a vaidade e a ambição falaram muito mais alto. Tão alto a ponto de se permitir ser humilhado publicamente pelo seu “capitão”.

Quando tentou fazer a reserva técnica das vacinas, entre setembro e outubro, foi humilhantemente desautorizado. Ainda assim permaneceu, sob alcunha de um “especialista em logística”.

 Hoje se sabe que até isso era uma estrondosa fake news: Não temos vacina – tampouco perspectiva de – não temos um plano, não temos um cronograma e não temos insumos – entre eles, agulhas e seringas.

O edital lançado dia 16 de dezembro, às pressas, fez água. Hoje, quase 15 dias depois, o ministério da Saúde só conseguiu comprar 3% das 300 milhões de unidades que pretendia. A definição de incompetência foi atualizada com sucesso.

Desta forma, tanto faz termos ou não a vacina e, para o ministro, melhor até que não haja, pois o mercado, esta figura tão abstrata, está cobrando seu preço: um tempo precioso para produzir, preços aviltantes, falta de matéria-prima e compradores que chegaram na frente. Detalhes tão básicos que até um estagiário em logística teria levantado o dedinho.

Sem a vacina, portanto, ninguém vai dar muita importância ao “deslize” logístico do general, especialista em logística.

Imagino a vergonha que sentem personagens como Villas Boas Correia ou Santos Cruz, olhando esse desempenho pífio, errático e inadequado.

No meio desse furdunço, um presidente sem rumo: sem plano de governo, sem dinheiro, com filhos enroscados na justiça, mas mantendo seu eleitorado mais fanático alimentado por atitudes grotescas, inimagináveis para um homem nessa posição, em meio à pior pandemia de todos os tempos.

Como estratégia para desviar o foco dos problemas homéricos que tem que enfrentar mas não sabe como, Bolsonaro solta uma blasfêmia por dia. Aprendeu a lidar com a imprensa a seu modo: enquanto ela se ocupa das blasfêmias, o essencial vai sendo jogado para debaixo do tapete, como por exemplo, as gravíssimas acusações a que seu filho primogênito, Flávio Bolsonaro, vem enfrentando nas cercanias da justiça. Para além disso, colocar a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN a serviço dos processos do filho e estar imune até agora, é preciso, sim, muita blasfêmia diária, e jogar o jogo de biruta de aeroporto.

Bolsonaro tinha tudo para fazer um bom governo: entrou com capital político para tanto. Mesmo com a pandemia poderia ter se mostrado um estadista, mas optou pelo papel de animador de auditório de quinta.

Pelo menos assim vai alimentando a imprensa e o gado mansos, jogando o que importa para depois.

Infelizmente, a falta de um plano de imunização — real e factível– ainda vai provocar milhares de mortes. Mortes, repito, que poderiam ser evitadas. O gado, ainda que bem azeitado pelas políticas populistas, só vai perceber o estrago quando as vítimas forem seus pais, seus companheiros ou companheiras, filhos e amigos queridos. Ou não, podem jogar essa conta ao infortúnio imponderável, o que é muito provável. Afinal, tudo o que ele fala ou faz sempre tem uma atenuante. Ele não tem culpa por nada, é apenas um injustiçado para essa parcela de brasileiros. Mas, como nos lembrou a doutora Natália Pasternak, exaltada, TEM GENTE MORRENDO!

Assim seguiremos em 2021, entre mentiras e imediatos desmentidos, ratificando Jean-Paul Sartre: o inferno são os outros.

E, por gente morrendo, entende-se que pode ser eu, você, nossos pais ou nossos filhos. Que Deus nos proteja.

Silvana Destro

Silvana Destro é jornalista, voltada à comunicação corporativa há quase três décadas, atualmente com forte atuação em gerenciamento de crises de imagem e reputação. Mãe do Pedro, do João e avó de Maria Clara.

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