Brasil

Daniel Silveira e o (não muito) estranho silêncio dos eleitores

“O Brasil não tem povo, tem público” (Lima Barreto, há mais de um século)

Daniel Silveira; do anonimato para os “trending topics”

Se alguém fizesse a pergunta “Quem é Daniel Silveira” há uns quinze dias atrás, receberia um monte de “não tenho a menor ideia” como resposta. Provavelmente alguns chutariam que era um cantor de sertanejo universitário (se bem que estes normalmente vêm em dose dupla – talvez fosse, na verdade, Daniel e Silveira). Daniel Silveira também poderia ser nome de um meio campista da seleção sub-20, agora que a época dos apelidos curtos e fáceis (Pelé, Didi, Garrincha, Zico) já foi devidamente sepultada e os jogadores são conhecidos pelo nome e sobrenome. Tenho uma teoria que isto só foi possível graças à televisão que, por já mostrar a imagem, não obriga o narrador a criar toda a descrição da jogada em frações de segundo, como na era do rádio. Imagino o inesquecível Valdir Amaral tentando descrever uma jogada rápida em que Lucas Veríssimo lança para Yuri Alberto, que passa entre Matheus Henrique e Igor Benvenuto e finaliza para defesa de Phelipe Meggiolaro. Ia terminar o jogo com lesão ligamentar nas cordas vocais e estiramento de língua. Enfim, isto tudo é só digressão da minha parte.

O fato é que Daniel Silveira não é cantor, nem jogador, muito menos blogueiro ou “digital influencer”; é um Deputado Federal, eleito pelo estado do Rio de Janeiro, colocado no olho do furacão depois de sua estranha e, na minha visão, arbitrária prisão decretada pelo Ministro Alexandre Moraes, do STF (decisão depois ratificada por todo mundo).

Afinal, prá que servem os Deputados?

O assunto motivou textos intermináveis de jornalistas, políticos, juristas e palpiteiros de toda a ordem, foi debatido no alto e no baixo clero, mas até agora não vi um comentário das pessoas que, teoricamente, seriam as mais atingidas; os eleitores de Daniel Silveira. Afinal, um Deputado é o representante de seus eleitores, e ninguém deveria estar mais ferozmente irritado do que eles. Quantas vezes, em filmes americanos, você ouviu alguém, indignado com alguma situação, dizendo; “vou escrever para o meu congressista”? Muitas, certamente.

Conferi os dados no site da Justiça Eleitoral e vi que Daniel Silveira foi eleito em 2018 com exatos 31.789 votos. Não é muita coisa, mas acho que não é razoável acreditar que nenhum destes mais de trinta mil eleitores tenha tido a menor vontade de se manifestar sobre o assunto. E aí vem a pergunta inevitável; será que estes eleitores existem? Será esta a fraude a que se referem Bolsonaro e seus apoiadores? Como naquelas famosas chamadas feitas pelo competente Sérgio Chapelin, cabem as perguntas; “Quem são os eleitores de Daniel Silveira? Onde vivem? Do que se alimentam, como se reproduzem? Não perca hoje, no Globo Repórter”. Ou algo parecido.

Vale lembrar que esta não é a primeira vez que um Deputado Federal passa de ilustre desconhecido a bola da vez. Um caso bem notório ocorreu em 1998, quando a tragédia do Palace II catapultou para a primeira página dos jornais o nome de Sérgio Naya, um deputado do interior de Minas que era o dono da construtora. A internet ainda era embrionária, mas rapidamente foi descoberto que ele estava no quarto mandato e tinha uma fortuna estimada em 300 milhões de dólares – e isto vindo de uma origem humilde. Lembro que eu e alguns colegas engenheiros fizemos uma conta rápida e chegamos à conclusão que ele conseguia acumular mais de 20 milhões de dólares por ano. Na época o atleta mais bem pago do mundo era Michael Jordan, cujo contrato era de 35 milhões de dólares anuais. Só que o mito do basquete tinha que pagar imposto de renda, colégio dos filhos, despesas gerais, enfim, dificilmente conseguiria acumular em um ano o mesmo que um deputado do baixo clero de Brasília. A conclusão é que o Brasil era um país muito mais rico do que a gente imaginava.

Ah, para não perder a linha de raciocínio, lembro que, na época, nenhum eleitor de Sérgio Naya foi encontrado para dar depoimentos.

Brasil e sua estranha Democracia Absolutista

A triste conclusão é que o eleitor médio brasileiro não entende como funcionam os três poderes em uma República Democrática. Ainda não passamos do estágio da Monarquia Absolutista, com a diferença que temos o direito de trocar a família real a cada quatro anos. O que Bolsonaro acabou de fazer com o Presidente da Petrobras é a prova disto. No Brasil o Presidente da República não comanda; ele manda. Vale dizer, em defesa de Bolsonaro, que ele apenas repetiu o que todos os seus antecessores sempre fizeram em casos semelhantes; manda quem pode, obedece quem tem juízo.

O povo desconhece a função do Legislativo, e mais ainda a do Judiciário, por isto uma briga entre estes dois poderes é acompanhada com menos interesse do que a novela ou o Big Brother. Isto também ajuda a explicar porque escândalos de corrupção envolvendo Senadores e Deputados não dão muito IBOPE. O pessoal só fala em “corrupção do Lula” ou “corrupção do Bolsonaro”. Um efeito colateral desta apatia é a reeleição sistemática do pessoal do Centrão que, espertamente, comanda este país há décadas sem dar a cara a tapa, como dizia meu avô lá de Santa Maria. E também a enorme votação que é alcançada por gente folclórica como Tiririca, Clodovil, Juruna e outros tantos. O eleitor vê o legislativo como um circo. E os eleitos comportam-se como tal. Tiririca pelo menos é um palhaço profissional, e está no lugar certo.  

Enfim, é um fator cultural. Entendo que a adoção do voto distrital seria uma boa medida para melhorar esta situação. E a mudança para um regime parlamentarista seria a cereja do bolo. Só que já desisti de perder tempo com este sonho, estou chegando aos setenta anos e acredito que só vou ver estas mudanças discutidas com seriedade no Brasil numa próxima reencarnação, se é que isto existe (eu acredito, mas…).

Por enquanto, não saímos do pão e circo. O respeitável público não se respeita, nem parece preocupado com isto. E sobrou para o Daniel… Daniel de que, mesmo?

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

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