Opinião

A última polêmica sobre inclusão racial

O tema da hora é a decisão da Magalu em adotar um programa de trainees restrito à população negra (ou parda), anunciado recentemente pelo seu CEO. Como normalmente ocorre quando assuntos ‘raciais’ são colocados sobre a mesa no Brasil, a temperatura sobe nas redes sociais e partidários de pólos opostos partem para as vias de fato virtuais, com acusações que vão de ‘racista’ à ‘vitimista’. O propósito desse artigo é avaliar essa ação da maneira mais isenta possível, buscando identificar os problemas que ela tenta resolver e os riscos inerentes à sua implantação.

Não entrarei aqui no ‘juridiquês’ da medida, há versões de que seria ilegal, não estou habilitado para opinar. Também não farei juízo de valor sobre o desejo de ‘lacração’, está evidente que a empresa ficará um bom tempo sob os holofotes das mídias tradicionais e sociais, não sei dizer se isso constava como um dos objetivos. Minha análise estará restrita ao problema, um fato inegável, à decisão de como resolvê-lo e possíveis implicações.

Este tema é particularmente caro a mim, pois fui mentor das ações de diversidade racial na minha última encarnação corporativa e sei que os desafios relatados pela Magalu no que diz respeito à participação dos negros em cargos de liderança são sérios e comuns em praticamente todos os lugares. A população preta ou parda quando muito representa 5% dos cargos de gestão, um nada se comparado à sua representatividade na sociedade (na Magalu esse índice aparentemente já é menos ruim, com 16%).

Isso obviamente não é uma novidade. Diretores de hoje se formaram há 20 anos e na virada do século a quantidade de pretos graduados era muito menor, afunilando-se em maior grau para os cursos e faculdades mais concorridas. Essas mudanças não acontecem do dia para noite, a escassez de líderes negros(as) no presente é consequência da quantidade de egressos(as) nas faculdades há duas ou três décadas. Dito isso, é muito difícil para uma empresa conseguir encontrar profissionais ‘seniores’ pretos ou pardos, e uma busca focada pode levar meses sem o resultado esperado, e sabemos que tempo é dinheiro, e o senso de urgência para reposição das vagas não permite essa espera. Para que a situação comece a mudar, será o esforço de uma geração, e no mundo corporativo isso começa com a contratação de profissionais talentosos com potencial para ocupar cargos de gerência no futuro. Nesse sentido, a decisão da Magalu em concentrar esforços em seu programa de trainee me parece lógica.

A dificuldade para atrair profissionais negros (as) para esses programas é imensa. Se não houver um esforço direcionado, faltarão candidatos (as). Isso ocorre porque boa parte dos pretos(as) trabalham com a ideia de que esse tipo de processo seletivo não é para eles(as), também tem o receio de serem eliminados na prova de inglês, uma barreira de entrada quando disposta como pré-requisito. Para superar esses obstáculos, a empresa deve fazer uma comunicação específica que converse bem com essa população e a deixe confortável para aplicar, além de conceder um ‘waiver de desempenho’ em idiomas, algo que na prática pode ser recuperado posteriormente. Feito tudo isso, se atingir um percentual entre 10-20% dos finalistas, seria um ótimo primeiro passo.

Não é um movimento fácil. Se estamos falando de 20 profissionais por ano, isso equivaleria a no máximo 4 pretos (as) ou pardos (as). Dentro de uma empresa com milhares de funcionários, é uma mudança gradual, importante, mas tímida.

Ao tomar uma medida tão assertiva quanto essa, a Magalu pretende acelerar em 5 anos o que seria um movimento natural de inclusão de pretos(as), caso siga à risca os protocolos para maximizar o número de candidatos(as) em seu programa de trainee. Não deixa de ser uma aposta, e os riscos existem:

– Ao distorcer a lei da oferta e da procura a empresa pode não conseguir o número suficiente de candidatos qualificados para manter o nível do grupo. Nessa situação, o programa perderia credibilidade, mesmo internamente;

– É possível criar uma imagem de preconceito reverso, que pode afetar a capacidade da empresa em recrutar talentos fora do programa de trainees;

– A Magalu provavelmente espera um aumento exponencial no número de candidatos. Seguramente, os aprovados também passarão em outros programas e podem optar por eles exatamente pela questão do mérito (concorrência em pé de igualdade com os demais). A imposição da cota 100% pode não agradar a todos, não é uma unanimidade;

– Se o programa for exitoso, profissionais negros(as) contratados pela Magalu podem ser alvo de ‘head hunters’ e em um segundo momento sair da empresa (o ‘turn over’ desses programas geralmente é alto) e dada a escassez desse perfil, é bem possível que a Magalu se torne ‘fonte’ desses recursos para o mercado, brilhando no papel social de inclusão, mas fracassando na solução do seu problema de diversidade racial em cargos de liderança;

– Tão importante quanto à atração desses profissionais será seu acolhimento. Eu costumava brincar quando nos referíamos à aparente ausência de preconceito racial nas relações de trabalho nas empresas em que trabalhava. Óbvio, com tão poucos negros e uma quantidade mínima em posições de liderança, as ocasiões para demonstração do ´racismo´ são mínimas e vive-se na ilusão de que está tudo bem, quando na verdade um veredicto sobre a existência dele só pode ser feito quando temos uma população preta representativa, aí seria a ´prova de fogo´. Por causa disso, se a empresa não se preocupar com as questões culturais decorrentes de um processo de inclusão mais acelerado, pode experimentar reveses;

Por outro lado, se esses riscos forem evitados, a Magalu conseguirá ‘colorir’ seu quadro gerencial muito mais rápido do que o esperado. Eu particularmente acredito que essa é decisão de ‘cota 100%’ é temporária, até porque a exclusão de todos os demais grupos demográficos é uma afronta ao próprio princípio da diversidade.

Antes de entrar na onda do que é certo ou errado, eu coloco a seguinte questão a você, que lê esse texto: Imagine-se gerindo uma empresa gigantesca onde a participação de pretos(as) nos quadros de liderança fosse irrisória. Você tem a missão, por princípios, de melhorar esse cenário de diversidade racial e aumentar sua inclusão em funções de gestão. O que você faria? Lembre-se que as receitas tradicionais já foram todas adotadas, sem muito êxito.

Sob essa perspectiva, a estratégia da Magalu torna-se compreensível. Estão usando ‘força bruta’ para resolver um problema para o qual nenhuma solução anterior foi efetiva. Pode não ser a mais simpática das estratégias à primeira vista, mas não resta dúvida de que é corajosa. Não se pode negar o mérito da empresa em encarar o problema de frente. No ritmo normal, a inclusão plena dos negros(as) para cargos de liderança nas empresas pode levar muito tempo, possivelmente décadas. A Magalu não quis esperar e radicalizou.

Já imaginou se todas as empresas adotassem a mesma postura? Impossível. Trata-se de ação muito arrojada e aplicável somente aos maiores tomadores de risco. Para completar, não haveria oferta de profissionais no mercado para esse tipo de situação, que acabaria se ‘auto regulando’. Finalmente, a quantidade de excelentes profissionais deixados à margem do processo despertaria o interesse de várias companhias e a unanimidade se romperia. Não podemos esquecer de que as empresas buscam sempre melhorar seu desempenho e o princípio da diversidade está vinculado a essa premissa. Ninguém mantém decisões convertidas em um fardo para a performance do negócio. É provável que vejamos esforços similares em outras instituições: programas customizados para essa população, sem quebrar a recorrência dos outros tradicionais.

Finalizando, entendo que o fato da Magalu ter levantado essa questão é positivo, por mais que os extremos sempre estiquem a corda defendendo suas posições, polarizando a conversa. O problema da falta de ‘negritude’ em funções de liderança é inegável e posso garantir que incomoda no mínimo 9 em cada 10 membros de comitês executivos país afora. Infelizmente, não há solução fácil à vista. Esperar pela melhoria da educação básica para prover a tão falada igualdade de oportunidades, que solucionaria a questão na raiz, pode demorar uma eternidade, então cada empresa delibera o que é a sua solução possível para atenuar a ´dor´. Não acredito no propósito escondido da ‘lacração’, quem menciona isso desconhece o incômodo que a situação causa nos ambientes corporativos. O tempo dirá se a Magalu acertou, mas como diz o ditado, você não pode esperar resultados diferentes executando as mesmas ações, dia após dia. 

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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2 Comentários

  1. Victor, adorei você citar minha frase favorita do Einstein pra fechar o texto.
    Mas , porque o uso de (as) para explicitar que trata-se de um programa para homens e mulheres?

  2. O maior problema que eu vejo é criar esta segregação dentro do ambiente de trabalho. Líderes com capacidades diversas mas com obrigações iguais? Como foi dito no texto os diretores de hoje são os formandos de 20 anos. E se os pretos(as) não se formaram lá atrás este é o trababalho que tem que ser feito JÀ. Investir pesado nesta formação! Nem que seja dentro da própria empresa!

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