Opinião

A maior dor do COVID.

Você já deve ter lido uma biografia e ao final da leitura ficar com a sensação de que ela foi escrita precocemente, que há muito mais por vir naquela vida que foi descrita.

Esse texto talvez padeça desse mal.

Talvez ele esteja sendo escrito antes do tempo certo, antes do fim da história. Contudo, existem sentimentos que precisam ser registrados quando ainda fervilham em nossos corações.

Num estalar de dedos.

Foi tudo muito rápido.

Horas antes eu acabara de participar de uma “live” que tinha gerado boa repercussão. Eu estava feliz. Contudo, em um estalar de dedos fui tomado por calafrios e por uma dor intensa por todo o corpo.

Foi uma noite difícil a que se seguiu, acordei literalmente ensopado.

Pela manhã fui para o hospital e me deparei com o diagnóstico que em minutos colocaria minha vida de pernas para o ar: COVID.

Voltar para o escritório para encerrar as atividades do dia nem pensar, para casa onde passo os dias da semana com minha mãe muito menos. Era hora de arrumar as trouxas e rapidamente bater em retirada rumo ao meu exílio involuntário.

De volta para casa.

Depois de meses de quarentena lá estava eu de volta pra casa. Instalado na sala de jantar com todas as minhas bugigangas espalhadas pela mesa. Minha bagunça parece que fica ainda maior contrastada com organização impecável do resto do ambiente ao redor.

Estamos o tempo todo conectados a tudo e a todos, rodeados por pessoas no trabalho, no trânsito, na padaria, no shopping, seja onde for, mas de uma hora para a outra vem o “positivo” e aí vem o isolamento. Hora de tirar o time de campo.

De tudo que vi e li até agora tenho que agradecer por meus sintomas se restringirem as dores no corpo, o que não é nada desprezível, mas pouco quando comparado com a gravidade de tantos outros relatos.

Eu, eu mesmo e a COVID.

Deixar a televisão ligada ao mesmo tempo que roda um vídeo no PC ajudam a distrair, mas não preenchem o vazio de estar só. Áudios, vídeos, mensagens das mais diversas. Ainda que conectado com o mundo e recebendo tantas manifestações de carinho, uma hora cai a ficha e você se dá conta da sua solidão.

Moro bem, numa casa confortável em um condomínio fechado em meio a uma reserva de mata atlântica. Esse é o meu endereço por quase trinta anos. Foi nessa casa que meus filhos cresceram.

Eu nunca havia me dado conta do quão grande é essa casa. Descobri sons que encontram grande eco na solidão, o barulho do relógio da cozinha se soma com o resmungo da geladeira quase tão antiga quanto a casa.

Enquanto o mundo dorme a dor no corpo não te deixa dormir.

Dá para ouvir a água enfrentando a gravidade para chegar até o reservatório onde descansará para depois matar minha sede, banhar meu corpo e manter a pureza de meu trono, que aliás tem sido mais utilizado que a média.

Pela casa vazia consigo ouvir o barulho de duas crianças que décadas atrás corriam para cima e para baixo com medo do Ursão que vivia lhes perseguindo, o mesmo que escreve essas linhas.

Pela janela observo o jardim que também parece se sentir mais só, sem ter caminhando por suas folhagens a princesa e sua amiga de quatro patas.

Sentindo o aperto que vai no meu coração, meu gatinho não desgruda de mim. Como prêmio acaba recebendo feliz todos os beijos e abraços que represo em mim.

A lição.

Nesse retiro que a vida me impôs não tenho como não pensar nas tantas pessoas que passaram por isso de forma muito mais dura.

Difícil imaginar as pessoas que foram hospitalizadas, com restrições ainda maiores de contato com familiares e amigos. Pior ainda aqueles que viram entes queridos partirem sem poderem estar ao seu lado. A todos esses meu profundo carinho e solidariedade.

Essa história ainda não acabou, mas ao menos para mim já deixou sua grande lição: a maior dor do COVID é a dor da solidão.

Marcelo Porto

Gênio do truco, amante de poker, paraíba tagarela metido à besta, tudólogo confesso que insiste em opinar sobre o mundo ao meu redor. Atuando no mercado financeiro desde 1986, Marcelo Porto, 54, também é Administrador de Empresas e MBA em Mercado de Capitais.

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4 Comentários

  1. Que sejam dias de muita paz e reflexão. Tudo passa… um dia por vez, com muito aprendizado e a certeza de que você vai sair dessa! Melhoras!!!

  2. Sempre difícil passar por uma situação nova, por mais que tenha sido menos sofrida comparada com tantas outras jornadas de outras pessoas,, com certeza, foi uma caminhada reflexiva e na busca de paz!!! Que bom que já esta bem!!

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