Opinião

A Síndrome da Informação Excessiva e a nova Torre de Babel

Em 2002 tive oportunidade de participar de um seminário sobre gestão do conhecimento, e passar uma manhã inteira na NASA. E numa das apresentações sobre o assunto, uma palestrante falou sobre o que ela apontava como “o maior problema do futuro” e batizou-o de TMIS – “Too Much Information Syndrome”, ou Síndrome da Informação Excessiva, numa tradução Tabajara feita por mim mesmo. Basicamente a ideia era a seguinte; com o avanço dos meios de comunicação e da internet, o ser humano estaria exposto a uma quantidade de informação absurdamente grande, sem que seu cérebro tivesse tempo para evoluir da mesma forma. O resultado é que seria muito difícil prever qual a reação das pessoas a esta nova realidade.

Os temores dela se justificaram, e hoje as redes antissociais nos bombardeiam com uma quantidade de informações nunca sonhada. E tenho reparado que a reação de muitas pessoas está sendo a de adotar uma realidade como sua e viver dentro dela.

Fazendo uma comparação quase escatológica, lembro uma conversa que tive com um médico amigo, há uns dez anos. Segundo ele, o processo que o cérebro usa para processar informações é análogo ao que o intestino faz com os alimentos; recebe, verifica o que deve ser absorvido, e expele o que não presta. Agora imagine o seu intestino sendo obrigado a processar um rodízio completo de churrascaria todos os dias. Obviamente não vai dar certo.

“Você é aquele que tem que escolher seus inimigos” (Maquiavel, em “O Principe”)

Comecei a pensar em tudo isto quando li a história de Kyrie Irving. Um dos melhores e mais bem pagos jogadores da milionária NBA, Irving está fora da competição porque resolveu não se vacinar contra o coronavírus – e o atestado de vacina é condição sine qua non para entrar nos ginásios. A justificativa apresentada por ele seria cômica, se não fosse trágica; ele acredita que existem sociedades secretas que planejam implantar, através das vacinas, um chip que vai conectar os jogadores negros a um computador mestre, que irá dominar suas mentes (ver https://exame.com/casual/kyrie-irwing-vacina/). Ele também acredita que “não há provas concretas” que a Terra é redonda. Sem comentários.

Ora, se Irving, que recebe um salário colossal e tem acesso a toda a informação que quiser pensa deste jeito, o que sobrou prá nós, pobres mortais?

A receita mais comum para dominar uma população é mantê-la desinformada e criar um inimigo ao qual se atribui todo o mal do mundo. Isto funcionou desde a Inquisição de Torquemada até o nazismo de Hitler e Goebbels. Quando a internet começou a dar seus primeiros passos, eu comemorei; afinal, o acesso à informação passava a ser universal, e isto iria atrapalhar a vida dos candidatos a ditadores de plantão. Sabe nada, inocente!

A impressão que tenho é que, em função do excesso de informação, as pessoas estão optando por consumir só aquilo que concorda com a sua teoria. É como o sujeito que vai no rodízio e só come salada (com todo o respeito aos meus amigos vegetarianos, of course). Chamo isto de “crise da falta de saco”, primeiro sintoma da síndrome de informação excessiva; eu não tenho saco de ler tudo isto, então vejo só o que me interessa, só falo com quem concorda comigo. Isto pode parecer inofensivo mas, levado ao limite, resulta na criação de uma espécie de Torre de Babel, onde ninguém consegue mais trocar ideias com ninguém. Daí para o retorno ao Neandertal o caminho é mais curto do que se pensa.

“Amigo meu não tem defeito. E inimigo, se não tiver, eu invento” (Carlos Imperial)

Os exemplos estão aí todo o dia. E os medíocres estão nadando de braçada num ambiente em que quem lacra tem mais “likes” e aplausos do que quem se propõe a raciocinar. No Brasil a polarização em torno da figura do Presidente Bolsonaro e do ex-Presidente Lula é um exemplo disto. Bolsonaro atirou-se quixotescamente contra o moinho de vento chamado “urna eletrônica” sem qualquer motivo real. Seu posicionamento contra a vacinação também beira o ridículo. E sempre com a mesma cantilena de que “existe um complô que quer dominar o mundo”, mais ou menos ao estilo do raciocínio de Kyrie Irving. Aquilo que Torquemada chamava genericamente de “coisa  do Demônio” e usava como justificativa para jogar as bruxas na fogueira.

O pior é que o lado anti-Bolsonaro às vezes consegue ser até pior. Lembro que na época do segundo turno da eleição, em 2018, um amigo meu colocou em um grupo uma notícia assim; “Bolsonaristas acabam de espancar um homossexual até a morte na Ilha do Fundão”. Por coincidência eu estava na Ilha do Fundão exatamente neste momento (era época do mestrado). Respondi; “Olha, checa esta informação. Eu estou no Fundão e não sei de nada”. Em resposta o cara me bloqueou e nunca mais falou comigo. Recentemente o comentarista Walter Casagrande culpou Bolsonaro pelas agressões cometidas por torcedores do Grêmio. Como se nunca tivesse existido violência entre torcidas antes dele.

Em paralelo os grupos que se dizem “a favor da inclusão das minorias” conseguem ser mais radicais ainda. No recente caso do jogador Maurício de Souza, ouvi gente justificando a crucificação que ele sofreu na mídia com o argumento que “o Brasil é o país onde mais se mata homossexuais e trans no mundo”. Perguntei a uma amiga de onde tinha saído esta informação. Ela me confessou que não temos estatísticas oficiais sobre o assunto (provavelmente por culpa de algum satânico Dr. No, que quer dominar o mundo), mas citou dados de uma destas ONGs de defesa dos LGBT e mais o alfabeto todo que provavam que a cada “x” minutos um homossexual é morto no Brasil, etc e tal. Ora, a credibilidade desta informação é tão grande quanto a de Bolsonaro dizendo que os filhos são inocentes, ou Lula dizendo que “nunca soube” do mensalão e do petrolão. Não lembro de ter visto reportagens sobre homossexuais mortos a pauladas no meio da rua – e tenho certeza que o pessoal da mídia adoraria ter um prato destes, seria manchete no “Jornal Nacional” e assunto único durante semanas. Ou seja, é um dado totalmente sem fundamento, também. Já batizei isto de “terraplanismo de gênero”, em um artigo anterior (ver https://papodeboteco.net/opiniao-princ/transexuais-no-esporte-e-o-terraplanismo-de-genero/ ). O que só serve para demonstrar que esta galera toda disposta a matar os “inimigos da humanidade” não passa de farinha do mesmo saco. Só isto.

Resumindo, eu poderia ficar aqui citando dezenas de exemplos, mas o que fica, no final do dia, é que a “Síndrome da Informação Excessiva” está nos levando a um tribalismo que, ao contrário do da Marisa Monte, é medíocre e perigoso. E o único jeito de combatê-lo é sendo racional, buscando a confirmação das informações, abrindo-se para o diálogo e tentando ouvir as razões de cada um. Lembrando que um tal de Jesus Cristo falou, há dois mil anos, que devíamos “amar o próximo como a nós mesmos” e “perdoar os nossos inimigos”. Eu prefiro concordar com ele, mas parece que Torquemada e Hitler hoje em dia são mais populares. Espero que seja só uma fase. Talvez a humanidade toda pague caro por isto.

Quem viver, verá.

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

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4 Comentários

  1. Caro Márcio, muito bom o teu artigo.
    Tenho a impressão que tu tratastes o assunto com “luvas de pelica” e não te censuro por isso, pois as “voadoras” virão do mesmo jeito, seja com luvas de pelica ou não.
    A desinformação é uma arma poderosa…
    Abraços,
    Candiota.

  2. Prezado Márcio, excelente reflexão. Usei a expressão “Tabajara” um dia desses e fui questionado sobre minha intenção em associar este povo indígena histórico ao contexto da conversa. É meu amigo, dias de lacração…

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