Esporte

Batalha dos Aflitos, 15 anos – o dia em que os deuses do futebol enlouqueceram

Sim, eu sei que hoje é o dia dos fãs de futebol reverenciarem a memória do gênio Maradona, eu sei que o segundo turno das eleições é importante, mas em meu coração gremista só existe espaço para lembrar o aniversário do jogo mais incrível da história do futebol – e, de quebra, recordar um dos momentos mais divertidos que tive com meu pai, que faleceu há menos de um mês, aos 96 anos.

O jogo, a guerra, o pênalti e eu

Em 26/11/2005 o Grêmio lutava pela sobrevivência em um jogo contra o Náutico em Recife. Vivendo uma situação semelhante à do Cruzeiro hoje em dia, o Grêmio estava praticamente falido e precisava desesperadamente voltar à Série A. Dependia de um empate, e, a dez minutos do fim do jogo, sustentava heroicamente o 0x0 com um jogador a menos.

Foi então que o árbitro Djalma Beltrami apitou um pênalti que só ele viu. A reação dos jogadores do Grêmio foi instintiva e selvagem, resultando em mais três expulsões. Resumindo, depois de uma enorme confusão, o jogo recomeçou com o Náutico com onze contra sete, e um pênalti para bater.

Era um sábado, eu tinha dado aula o dia todo e só comecei a ver o jogo no final do primeiro tempo. O pênalti me nocauteou, e assisti toda a confusão como um Zumbi, prostrado no sofá. Meu filho Diego, carioca e vascaíno, veio me prestar solidariedade (sem imaginar que o time dele iria passar por coisas muito piores nos anos seguintes). Ficamos os dois, em silêncio fúnebre, de olho na TV.

Os deuses devem estar loucos

Foi então que os deuses do futebol resolveram intervir. O que aconteceu nos 71 segundos seguintes foi quase sobrenatural.

Primeiro, o goleiro Galatto defendeu o pênalti, desviando a bola com a coxa por cima da trave. Atarantados, os jogadores do Náutico bateram o escanteio da pior forma possível, jogando a bola a esmo na área para seus atacantes baixinhos disputarem com os gigantes da zaga gremista (ou do que sobrou dela). Qualquer peladeiro sabe que, nas circunstâncias, o escanteio teria que ser batido curto, com dois jogadores trazendo a bola para a área e obrigando os poucos defensores restantes a sair para marcar.

Galatto pega o pênalti; o começo do milagre

Bola com Anderson

O Grêmio só tinha um jogador habilidoso; o então garoto Anderson. Os deuses fizeram com que a bola rebatida pela defesa, que poderia ter caído em qualquer lugar do estádio, chegasse limpa aos pés dele, incrivelmente livre de marcação. Anderson avançou alguns metros até encontrar um marcador, e fez uma tabela rápida com Marcelo Costa, também desmarcado. Recebeu na frente e, quase em cima da linha lateral, foi atropelado pelo zagueiro Batata, que levou o segundo amarelo e foi expulso. Agora eram “apenas” 10 x 7.

A desobediência que funcionou e quase me matou do coração

Todo o banco do Grêmio pediu para que Anderson ficasse no chão o maior tempo possível, e que a falta demorasse a ser batida – qualquer segundo era importante. Só que o garoto, nascido e criado nas vilas mais pobres de Porto Alegre, sabia reconhecer uma oportunidade melhor que ninguém. Percebendo o atordoamento dos adversários, partiu em velocidade e pediu para Marcelo Costa lançá-lo. Os defensores do Náutico olhavam para a arquibancada, temendo a reação dos torcedores após tanta lambança. O passe saiu perfeito e Anderson invadiu a área, procurando um choque e um pênalti. Só que a marcação demorou tanto a chegar que, quando viu, estava na cara do goleiro. Iluminado pelos deuses da bola, teve frieza e classe para deslocar o goleiro e sair pro abraço.

Anderson parte para marcar o gol impossível.
Onde está o time do Náutico?

No meu sofá, eu já tinha vibrado com a defesa do pênalti. Mas o gol foi tão inacreditável que não consegui comemorar; ao contrário, fiquei olhando para o nada, sem entender o que se passava. Só voltei para o planeta quando meu filho, preocupado, me sacudiu; gol do Grêmio, pai! Gol do Grêmio!

Epílogo e a piada ufanista do meu pai

O jogo ainda durou alguns minutos totalmente inúteis. Mesmo com três a mais e tempo suficiente para fazer os dois gols que passou a precisar, a apatia que tomou conta dos jogadores do Náutico foi tão grande que impediu que eles criassem uma mísera finalização para o gol. E a ultima jogada da partida foi um chutão da defesa do Grêmio que quase colocou Anderson na cara do goleiro novamente, mas o lance foi anulado por impedimento.

Findo o jogo, peguei o telefone e liguei para meu pai em Porto Alegre. Perguntei se o coração gremista dele tinha aguentado a tensão (o velho já estava com 81 anos). A resposta, ao melhor estilo gaúcho fanfarrão, me faz rir até hoje; “Sofrer? Com um timinho destes? Tchê, mandamos tirar quatro jogadores prá ver se ficava parelho, mas nem assim! Muito fácil!”.

Enfim, peço desculpas, mas diante da Batalha dos Aflitos cessa tudo o que a antiga musa canta…

Vídeos

Nem coloquei links, há diversos vídeos na internet mostrando todos os detalhes do jogo. O melhor para mim é o que mostra as imagens da TV com a narração emocionada de Pedro Denardim, da Rádio Gaúcha (ver https://www.youtube.com/watch?v=xsBXlD2odCQ).

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

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