Esporte

Ascensão e queda de Renato Gaúcho – o último “paizão motivador”?

No dia 22/11/2017 os olhos do mundo futebolístico estavam voltados para a Arena do Grêmio, onde o time da casa e o Lanús, da Argentina, disputavam a primeira partida da final da Libertadores (o sistema de final em jogo único só foi adotado a partir de 2019).

No finalzinho do jogo, o Grêmio pressionava desesperadamente em busca do gol que lhe daria alguma vantagem para o jogo de volta. Num rebote, a bola sobrou para Edilson, quase no meio do campo. O lateral usou a incrível força e precisão do seu pé direito para mandar um cruzamento de três dedos que caiu no bico da área, exatamente na cabeça do grandalhão Jael, que escorou para o meia Cícero bater por baixo do goleiro argentino. Grêmio 1×0. Este resultado encaminhou o título, que veio com nova vitória no segundo jogo, desta vez por 2×1 (o lance do gol pode ser visto em https://www.youtube.com/watch?v=oYhYO48SOLM).

Este foi, provavelmente, o melhor momento da carreira do treinador Rento Gaúcho. Afinal os três jogadores envolvidos no lance do gol decisivo foram trazidos por ele para o Grêmio, com fama de acabados e/ou refugos, e/ou problemáticos. O faro de Renato juntou os três e mais alguns na mesma situação (Cortez, Fernandinho, Douglas e outros) para formar uma espécie de exército Brancaleone que, surpreendentemente, ganhou esta Libertadores e a Copa do Brasil do ano anterior.

Ao longo dos anos seguintes a relação de Renato com o Grêmio foi se desgastando, e mais de uma vez o treinador reclamou do orçamento curto para contratações, citando especificamente o Flamengo como uma espécie de “sonho de consumo”.

O divórcio com o Grêmio e o casamento com o Flamengo vieram no início de 2021. Hoje, poucos meses depois, a paixão virou desilusão, com resultados pífios e um final muito infeliz.

Como entender esta história? Prá começar, vale uma pequena digressão sobre o futebol e outros esportes.

Futebol – o reino da “zebra” e dos “heróis improváveis”

Uma característica que torna o futebol absolutamente irresistível é a sua capacidade de gerar resultados inesperados. E a razão é muito simples; por ser um jogo de poucos pontos, é comum que uma partida de futebol se decida em um lance, que pode ser fortuito. Um chute na trave, um erro do goleiro, um pênalti mal marcado ou ignorado – e lá se vai todo um planejamento. Por isto, mesmo com toda a disparidade técnica, o resultado de um Brasil x Bolívia em futebol é imprevisível; já em vôlei ou basquete, a margem de erro é muito menor.

E por que é menor? Porque para ganhar um jogo de vôlei ou basquete é preciso marcar dezenas de pontos. Assim, uma bola de sorte pode até acontecer, mas, na média, o time que tiver melhores jogadores e for melhor treinado vai vencer sempre. Também não acontece o “herói improvável”, já que as jogadas são estudadas e preparadas para que a bola decisiva sempre caia na mão do melhor pontuador do time. Não vai sair um “Adriano Gabiru” do banco de reservas e fazer a cesta de três pontos no último segundo. (Não sabe quem é Adriano Gabiru? Dá um Google. Depois eu conto a história).

Por isto técnicos de vôlei e basquete são, antes de tudo, estudiosos do jogo. No Brasil temos o exemplo de Bernardinho e Zé Roberto, dois dos melhores do mundo. Caras que sabem de cor as estatísticas de todos os grandes times do mundo, quem ataca diagonal, quem ataca corredor, quem saca melhor, etc…

Já o futebol… é outra história. Voltemos a Renato Gaúcho.

“A mais sórdida pelada de rua é de uma complexidade Shakesperiana” (Nelson Rodrigues)

O fato do jogo de futebol ser decidido muitas vezes por obra do acaso, torna os treinadores de sucesso uma espécie de semideuses, pessoas que parecem capazes de interpretar os sinais divinos ao colocar no time o jogador que faz o gol da vitória no seu primeiro toque na bola. A paixão cega dos torcedores faz o resto; Fulano ganha títulos, então é bom, Beltrano parece entender muito de futebol mas não ganha títulos, então é ruim. No Brasil, especificamente, a nossa cultura macunaímica valoriza ainda mais o pessoal que não estuda (isto vale para todas as áreas, vide os candidatos que lideram as pesquisas eleitorais, Lula e Bolsonaro. Já escrevi sobre este assunto aqui mesmo no Boteco, ver https://papodeboteco.net/opiniao-princ/a-vocacao-da-irrelevancia-ou-angela-merkel-go-home/ ). Assim, o futebol brasileiro é o paraíso de técnicos “folclóricos”, tipo Lisca Doido, Renato Gaúcho e Joel Santana, por exemplo. Sobre este último, vale lembrar sua desastrosa experiencia internacional com a seleção da África do Sul, que rendeu memes fantásticos com seu inglês atrapalhado. Acabou substituído por Carlos Alberto Parreira, este sim um estudioso do futebol.

A verdade é que, em função da imprevisibilidade do jogo e do baixo nível cultural da maioria dos jogadores brasileiros, um líder tipo “paizão”, como Joel, Felipão ou Renato, muitas vezes funciona bem. Sabem transmitir confiança aos atletas e conseguem, de verdade, recuperar jogadores problemáticos, o que muitas vezes resulta em títulos até com equipes tecnicamente inferiores. Só que…

Quem não conhece futebol, estuda. Quem conhece não precisa estudar. E eu conheço futebol (Renato Gaúcho)

No caso específico de Renato, existe mais um componente interessante; a marra. Um sujeito que brilhou em grandes times do Brasil (Grêmio, Flamengo e Fluminense) tem que ser respeitado, mas daí a dizer que foi tão bom quanto Cristiano Ronaldo, a distância é enorme. E vale dizer que a temporada europeia de Renato foi um fiasco. É claro que ele jamais vai mencionar esta história.

A autoestima é uma qualidade importante para um líder, mas no caso de Renato temos uma espécie de auto-idolatria, se é que existe esta palavra. E tudo isto vira um problema quando os deuses da bola resolvem não colaborar. No Flamengo, a frente de um grupo não só tecnicamente forte, mas também com jogadores experientes e acostumados a lidar com os grandes treinadores europeus, as limitações de Renato ficaram muito claras. A partir daí, o ciclo vicioso fechou; o grupo perde a confiança no líder, os resultados ficam ruins, o líder se mostra cada vez mais incompetente, os resultados pioram, até que o elenco mais qualificado (e caro) do Brasil fecha o ano sem qualquer título relevante. A casa caiu.

Fechando e resumindo, a verdade é que no terceiro milênio até o velho futebol passou para uma espécie de “modelo 2.0”, em que a tática e os treinos passaram a ser quase tão decisivos quanto o talento individual. Os europeus, que sempre valorizaram isto (até por aspectos culturais) estão nadando de braçada nesta nova onda. E os resultados são claros; nas últimas quatro copas do mundo todos os campeões foram europeus. Pior ainda; em 2018 nenhum não europeu passou das quartas de final. Ou seja, não adianta ter o pé-de-obra mais qualificado do mundo, se as lideranças não acompanham a evolução do jogo. Simples assim.

O mais triste é que boa parte da torcida e até da mídia dita especializada ainda é fiel aos paradigmas ultrapassados. Motivar os atletas, fazer uma boa gestão de pessoas ainda é fundamental (e sempre será), mas só isto não basta mais. Ao contrário do que diz Renato Gaúcho, técnico agora tem que estudar futebol, sim. O velho “Paizão Motivador” que acha mais divertido jogar um “Rachão” com os atletas do que ficar meia hora treinando marcação de bola parada está com os dias contados.

Isto também serve para o mundo corporativo, mas esta história a gente contra outro dia…

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

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Um Comentário

  1. Texto espetacular Marcio!
    E o mais interessante fechar com a máxima… “Isto também serve para o mundo corporativo, mas esta história a gente contra outro dia…”
    Estarei ansioso pela continuidade, pois tudo que escreveu vale cada virgula para o mundo corporativo!
    Abraço!

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