Economia

O moto-perpétuo da economia

Luis Eduardo Assis, ex-diretor do BC, nos brindou com um artigo no Estadão de 26/10/2020, em que defende que não há problema em um governo se endividar na própria moeda, pois não haveria risco de calote. Em outras palavras, comprar títulos de um governo na moeda local não teria risco.

A lógica é a seguinte: “um aumento de gastos públicos equivale à criação de depósitos bancários, que elevarão as reservas dos bancos, que serão utilizadas para a compra de títulos da dívida pública, que financiarão o gasto inicial”. O trecho segue abaixo.

Se perdeu? Eu explico: os gastos públicos vão, de uma maneira ou de outra, parar no sistema bancário (as empresas ou pessoas destinatárias dos gastos públicos acabam depositando esse dinheiro nos bancos). Os bancos não tem outra alternativa a não ser comprar títulos públicos com esse dinheiro, o que financiará os gastos do públicos. Fecha-se o círculo. Qual o problema com esse raciocínio?

O problema é que, se fosse assim, estaria inventado o moto-perpétuo. Como sabemos, o moto-perpétuo é aquele aparelho imaginário que funciona com a própria energia que gera. Por exemplo, um motor que gera energia elétrica e usa essa energia para o seu próprio funcionamento, não necessitando de fonte externa. Já imaginou? Seria o fim de qualquer crise de energia. Mas não, infelizmente o moto-perpétuo não existe.

Se os governos pudessem emitir dívida em sua própria moeda sem que houvesse o risco de calote, não haveria país pobre no mundo. Seria o “moto-perpétuo econômico”: o governo emite dívida, faz os gastos públicos, e esse mesmo dinheiro volta para os cofres do governo, que inicia novamente o processo. Onde está o furo?

O furo está em que os gastos do governo normalmente destroem valor. E é a criação de valor que gera crescimento econômico, não o dinheiro criado do nada pelo governo através da emissão de dívida pública. O lucro, no final, é que é a medida do valor criado.

Se os negócios obtêm menos dinheiro do que investiram para produzir o que quer que seja, se inviabilizam e morrem. O único ente que “não morre” é o governo. Os países não morrem porque podem emitir dinheiro e dívida e podem forçar o recolhimento de impostos. De modo que o prejuízo do governo é coberto pelo aumento do dinheiro em circulação (inflação), pelo aumento da dívida e pelo aumento dos impostos. Mas, toda vez que faz isso, na verdade o governo está distribuindo o seu prejuízo pela sociedade que o financia.

Poderíamos pensar no exemplo mais extremo de contratar operários para cavar buracos e depois tapá-los, mas vamos usar um exemplo mais real e indiscutível de gasto do governo: investimentos em educação. É óbvio que o investimento em educação é essencial. Mas é preciso que seja bem feito, de modo que o valor criado pela mão de obra formada seja maior do que o investimento realizado. Caso contrário, o governo terá prejuízo, da mesma forma que teria se tivesse remunerado pessoas para cavar buracos e depois tapá-los. E esse prejuízo será distribuído pela sociedade que financia o governo. Afinal, como sabemos, governos “não morrem”.

Voltando ao artigo, o autor se pergunta o que podem fazer os financiadores da dívida pública a não ser continuar financiando a dívida pública. Ao lembrar que os donos do capital podem simplesmente ir embora com o dinheiro, Assis considera que o câmbio flutuante seria um antídoto mais do que suficiente para evitar esta fuga. O câmbio desvalorizado funcionaria como um pedágio absurdamente caro para quem quisesse transitar por essa estrada que leva o dinheiro para o exterior. Afinal, quem iria retirar o seu dinheiro do país se tivesse que comprar dólar, por exemplo, a R$ 10,98? (Veja o trecho abaixo – aliás, este número está incorreto, pois não considerou a inflação nos EUA. O correto é corrigir pelo diferencial da inflação entre Brasil e EUA, o que daria algo próximo a R$ 7,60. Mas, segue o jogo.)

Esta é outra falácia. Se esta mesma pergunta fosse feita há um ano, usando R$5,00 como valor do dólar, certamente a resposta seria “haveria menos interesse” em enviar dinheiro para fora. No entanto, o capital continua saindo não com o dólar a R$ 5,00, mas a R$ 5,80. Ocorre que os investidores não querem saber o nível atual do dólar, mas se este nível vai ficar por aí ou vai subir ainda mais.

Estive na Argentina há quase 7 anos, quando o dólar estava sendo negociado a 10 pesos. Era o dólar Maradona. Hoje, o câmbio oficial está em 75 pesos e o paralelo está o dobro disso. Se os investidores avaliarem que R$ 10 é um nível daí para cima, vão continuar saindo do mesmo jeito. E, convenhamos, contar com o dólar a R$ 10 para evitar a saída de capitais é o mesmo que quebrar as pernas de um menino para que ele pare de correr. Se chegar nesse nível, é que muita coisa deu errado antes. E se continuar errado, não há motivo para achar que o dólar pare em R$ 10. Assim como não há motivo para achar que o dólar vai parar em R$ 5,80 se não fizermos a lição de casa.

Economistas como Luis Eduardo Assis põem a ênfase no crescimento econômico, e chamam de “fundamentalistas” os que estressam a questão fiscal. De fato, somos “fundamentalistas”, no sentido de que colocamos a ênfase nos fundamentos. Quando vamos construir uma casa, colocamos primeiro os alicerces. O equilíbrio fiscal é o alicerce da casa. A casa é o crescimento econômico. Assim como não há casa sem alicerce, não existe crescimento sem equilíbrio fiscal. Ninguém é maluco de achar que colocar os alicerces é o suficiente para ter uma casa. Nem ninguém são tentará construir uma casa sem alicerces. Uma coisa depende da outra. Essa dicotomia entre equilíbrio fiscal e crescimento econômico é simplesmente falsa.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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