Filosofia de boteco

Pai de três guris

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Confesso que torci descaradamente para que meu primeiro filho fosse um guri, sentimento que era visto com certo receio pela minha mulher. ´E se for menina? ´. ´Tudo bem, se for menina, mas prefiro um menino´, resposta que carregava o pragmatismo típico do universo masculino. Queria um companheiro para jogar bola e gastar energia, atividades impregnadas de cromossomos XY. Não saberia explicar o porquê dessa preferência além desses fatores. Talvez por que homens sejam mais fáceis de entender e sua previsibilidade me transmitia a sensação de que eu estaria mais capacitado para exercer a paternidade.

E as minhas expectativas se cumpriram. Jogar bola, brincar de carrinho, montar legos, subir em árvores, caçar insetos, acompanhar as diferentes tendências de super-heróis, desde os Power Rangers, passando pelo Ben-10 até os personagens da Disney e Marvel, além dos videogames, foram atividades presentes desde os primórdios no crescimento do meu primogênito. Nunca gostei de montar brinquedos, mas pais fazem concessões jamais imaginadas. A contragosto, me especializei na montagem de legos. Pelo menos fiquei restrito às opções para crianças de até 7 anos, e hoje já estou aposentado nessa atividade.

A segunda gravidez veio quase seis anos depois. Logo na oitava semana, o alarme falso: era menina. Mal tive tempo de manifestar alguma preferência. Só que nessa fase, é comum os médicos errarem se o palpite for pelo sexo feminino. Certeza mesmo, só lá pelo quarto mês, quando fomos surpreendidos pela afirmação contundente de uma médica em meio ao ultrassom: ´Já tem nome para esse meninão?´. ´Menino?´. ´100% de certeza´, mostrando a prova de sua conclusão na imagem congelada do monitor. Segundo minha mulher, foi evidente em meu rosto a satisfação pela mudança do ´roteiro´. Mais um guri. Naquele momento, refutei a conclusão de que eu tinha alguma preferência, mas parece que a minha reação me desmentiu. ´É melhor para aproveitarmos algumas roupas´, despistei.

A terceira nos pegou desprevenidos. Somente oito meses após o início da jornada do segundo, lá estávamos nós com nova encomenda. Foi um choque, pois o número três (ímpar) proporciona mudanças significativas na logística doméstica. Já não caberíamos onde estávamos com o mesmo conforto e os carros teriam que ser maiores. Por conta desse bem-vindo ´erro operacional´, faria a minha décima nona mudança de casa em 38 anos de vida. Pensei no aspecto econômico e concluí que se Deus tivesse alguma preocupação com as minhas finanças, me enviaria um terceiro bacuri. Assim, ele compartilharia quase tudo com o irmão imediatamente mais velho e isso faria uma enorme diferença no orçamento. Fosse uma menina, o quarto, sua decoração e as roupas seriam novidades. Além disso, ao entrar em uma loja de bebês é facilmente perceptível que 80% dos itens são direcionados a meninas, para quais as variedades de modelos e produtos são bem mais amplas. Desde antes de nascer, a mulher é estimulada a comprar mais…

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E veio mais um guri! Antes de ser surpreendido por outro aumento da prole, fechei a fábrica de meninos. Nessa vida, já atingi a minha cota e colaborei juntamente com a minha mulher para o aumento da população no planeta, que tende a se manter constante quando o índice de fertilidade feminina for igual a dois filhos. De repente, em um horizonte de vinte e quatro meses, passávamos de um para três guris, com as diferenças de idade em 6 anos e 10 meses, seguida de outra de 1 ano e 5 meses, totalizando 8 anos e três meses entre o primogênito e o caçula (em 2014 com 11, 4 e 2 anos de idade). Silêncio passou de commodity a raridade valiosa em casa.

A minha inexperiência com filhas não me permite fazer considerações sobre as diferenças entre ambos os gêneros, sou apenas um observador do que vejo com sobrinhas e amigos na condição de pais. Uma coisa é certa: meninas gastam mais com vestuário, beleza e acessórios. Desde que se descobrem gente preocupam-se com esses assuntos. Para meninos, qualquer pedaço de pano está bom, desde que eles possam correr, brincar, andar de bicicleta, jogar bola e videogame. Essa inquietação acentuada em relação ao visual deve ser um fenômeno mais tardio que no caso feminino e ainda assim nem tão intenso. É verdade que se gasta menos com esses assuntos, por outro lado, o custo com alimentação é bem maior. Guris comem loucamente. Em casa, são três ´draguinhas carnívoros´, parecem um saco sem fundo: frios, salames, frutas, iogurtes, sucos, cereais, pães, carnes e pizza. Um espeto corrido de coração de frango desaparece em questão de segundos.  A conta do supermercado fica mais salgada e tornar-me sócio de um açougue não seria uma atitude insana. Sinto calafrios só de imaginar o consumo doméstico de carne daqui a 10 anos…

O dispêndio de energia no caso masculino, pelo menos até a adolescência, também deve ser maior. Haja brincadeiras de pular, lutar, jogar bola, onde o pai sempre é protagonista e por vezes se machuca. Vou me considerar sócio da terceira idade o dia em que perder uma corrida para um deles. E essa hora sempre chega. Até hoje eu lembro quando ganhei pela primeira vez do meu pai, nas areias da praia de Piçarras/SC. Também o momento da bronca é mais simples. Você vai direto ao ponto e pode falar com energia, sem riscos de ferir ´sensibilidades´. Outro fato, com guris há menos ´miados´, termo pelo qual eu costumo definir os sons dengosos emitidos por meninas quando desejam conseguir alguma coisa ou iniciar uma reclamação. Sua inexistência não significa que não haja choro, talvez até mais frequente, por causa das inúmeras quedas decorrentes das brincadeiras fisicamente arriscadas. O lado positivo é que ele desaparece rapidamente após algumas mensagens de incentivo do tipo ´acontece com todo mundo que faz isso´, ´você é forte e aguenta´, ´cai e levanta, Power Ranger Vermelho!´, e outras similares.

Nos parques, há sempre a preocupação com o excesso de atrevimento. É uma escalada que não devia ser feita, um muro alto demais para caminhada e por aí vai. Um piscar de olhos e temos um pequeno acidente. Mas o maior desafio é conter a suposta independência de mobilidade em lugares públicos. Exceto alguma enfermidade, nada causa maior medo em um pai de guris. Com a experiência de já ter passado por alguns sustos indescritíveis por causa dessa ´autonomia´ danosa que esses serzinhos julgam ter, mas não tem, sou absolutamente estressado com o assunto. Não faz muito tempo, protagonizei uma cena que seria qualificada como demência precoce para quem não fosse compreensivo com a situação: primeira saída do cachorro (um golden filhote macho, de 6 meses, outro menino…), com os três guris a todo vapor, em uma grande praça perto de casa. Eu com o mais novo no colo, apoiado no meu braço esquerdo, situação que de tão comum passa despercebida, dava alguma instrução a um dos outros três, quando me dou conta de que não estava avistando o caçula. ´Onde está o Enzo, não estou vendo o Enzo!´. ´Cadê o Enzo!!!!´. ´Erik!!!! Você viu o Enzo, onde está ele??!!!´. Exclamações que foram retribuídas com um olhar de pena por parte do meu mais velho, algo do tipo: ´Pobre pai, está despirocando de vez…´, já que o Enzo, foco de minha busca, na antevéspera do desespero, estava no meu colo.

Uma situação tragicômica, mas que não me causa preocupações desnecessárias quanto ao meu estado de lucidez, ainda pleno. Ela talvez seja a tradução do que representa ser pai de três guris nesse estágio da vida deles. Como o tempo voa, as circunstâncias mudarão. As conversas sobre futebol serão mais frequentes e profundas. Conversas sobre futebol profundas? Claro, isso faz parte do universo masculino, um assunto incompreensível para a maioria das mulheres. As idas às churrascarias também, geralmente um desperdício de dinheiro na companhia feminina. ´Desce a picanha, a fraldinha e a costela, vamos mandar brasa!´

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Muito se diz sobre a maior afetividade das filhas com os pais. Não sei até que ponto isso é verdade. Palavras e gestuais carinhosos não são as únicas maneiras de expressá-la e cada pessoa a manifesta de acordo com a sua individualidade. O que posso dizer é que me sinto plenamente acolhido quando sou recepcionado com abraços fortes antecedidos por piques de curta distância, que eventualmente até me desequilibram. É mais do que suficiente para recompor meu ânimo em dias ruins a melhorar substancialmente os dias bons. Como diz a propaganda, isso não tem preço. Adoro ser pai de três guris e não tenho dúvidas em afirmar que é a maior realização e responsabilidade que tenho nessa vida.

Quatro anos se passaram desde que escrevi esse texto e meu filho mais velho, agora com 15, se aproxima de 1,90m. Os dois menores, com 8 e 6, mantém a casa energizada durante todo período em que estão acordados. O futebol virou religião. Assunto debatido exaustivamente e jogado com a mesma frequência! A conta do supermercado subiu substancialmente, as idas às churrascarias são eventos memoráveis, assim como qualquer atividade ao ar livre. O YouTube substituiu a televisão, usada para poucos desenhos animados e partidas de futebol. O gasto com vestuário, antes baixo de comparado às meninas, aumentou por causa das camisas de times, meiões, chuteiras e caneleiras.

Permanecem inalterados os sentimentos de realização e alegrias. A paternidade é uma dádiva!

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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8 Comentários

  1. Sou mãe de dois “guris”. Concordo: bem mais fácil guris do que gurias….acho que se igualam na preocupação quando tiram a CNH….pior do que perdidos na praça! Mas sobrevivemos. É só pensar que num passado não tão distante, também passamos por isso e aqui estamos!!!

  2. Caro Victor,
    Seu texto é legal demais! Parabéns!
    Bom, sou pai de uma menininha de 2 anos e meio. Imagino que sua rotina seja bem mais complicada do que a minha, por causa de serem três filhos… mas só por isso. No resto, não há nenhuma diferença da sua experiência como pai de meninos do que a minha como pai de menina! Inclusive com relação à “draguinha”. Ri muito com esse termo, pois a chamo exatamente assim! Acho por fim, que o que importa é que sejamos capazes de proporcionar aos nossos queridos filhos, a capacidade de serem felizes do jeito que eles são. Pelo menos é o que eu tenho tentado fazer! Parabéns para vocês! Escreva mais!

  3. Victor, por enquanto tenho um moleque de 2 anos e um na barriga de minha esposa que, no ultimo exame, deu pinta de ser menina…. O desafio das brincadeiras mais agitadas parece que será complementado com chás e bolos invisíveis…. Abracao

  4. Victor, seu texto é lindo. Sou mãe de dois guris bem tipo os seus, causadores de calafrios. Ainda mais em mãe que corre atras deles com meia e casaquinho o tempo todo. Um tem 6 e o outro tem dois. Não tenho planos para o terceiro, até imagino como seria uma menininha. Estou realizando uns check-ups para saber se guento um terceiro. Bom, de qualquer forma, obrigada por dividir sua experiência. Obrigada. Aproveite muito com os guris.

    1. Victor, que bom poder reencontra-lo depois de tanto tempo e com um texto tao bem escrito. Tambem adoro ser pai de tres guris e compartilhar esta experiencia tao bonita. Parabens!

  5. Lindo texto Victor. Só discordo de uma coisa: meninas gastam mais. As meninas gastam mais com roupas, mas os brinquedos dos meninos são muito mais sofisticados e caros. Menino não liga pra roupa, mas se liga em um universo bem mais caro: legos, super heróis, feiras de antiguidade,
    vídeo games, eletrônicos em geral, e mais tarde, carros de verdade.

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