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Ucrânia à beira do colapso

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Em 1954, o então primeiro secretário do Partido Comunista soviético, Nikita Krushev, empossado no ano anterior, após o falecimento de Josef Stálin, um dos maiores assassinos da história da humanidade, tomou uma decisão que sessenta anos depois está fazendo tremer o tabuleiro geopolítico do planeta: ele presenteou a Ucrânia com a Criméia, região autônoma da Rússia. Não se sabe ao certo porque ele o fez, muito provavelmente para reforçar o apoio junto aos comunistas ucranianos, visto que seu mandato como maior dirigente do partido apenas se iniciava. A justificativa oficial era a comemoração dos 300 anos de união entre Ucrânia e Rússia. Na época, tirar um território de um país e entregá-lo a outro, sob o mesmo guarda-chuva da União Soviética, não fazia a menor diferença. Não tinha importância. Hoje tem.

A Criméia é uma pequena península de 26.000 Km2 encravada no Mar Negro, conectada com a Ucrânia ao norte e com a Rússia pelo leste. A maioria da sua população tem origem russa, que representam 58% de um total de 2 milhões de habitantes. Os outros 42% se dividem principalmente entre ucranianos (32%) e tártaros (10%). Cabe uma menção especial a esse último grupo, povo de ascendência turca e majoritariamente muçulmanos, os tártaros eram maioria na região no período que precedeu a Segunda guerra mundial. Em 1944, Stálin promoveu sua extradição, enviando-os para regiões distantes no Cazaquistão e Uzbequistão. Consta que praticamente metade de sua população foi dizimada nessa época, devido aos maus tratos da política de faxina étnica do regime stalinista. Após a abertura liderada por Mikhail Gorbachev, em meados da década de 80, os tártaros obtiveram autorização para retornar à sua terra de origem, e muitos o fizeram, constituindo atualmente uma minoria representativa com fortes vínculos à região. Como era de se esperar, nutrem uma certa antipatia pelos russos, que ocuparam as casas que haviam sido de suas famílias antes da deportação.

O cenário é muito preocupante. De um lado, a Rússia, renegada pela Ucrânia, cuja população recentemente derrubou o presidente corrupto que a apoiava, e agora adota um discurso pró-Europa. Sob alegação de que defende os interesses da maioria da população na Criméia (de origem russa), Vladimir Putin já obteve autorização do parlamento para o uso da força e nesse momento suas tropas encaminham-se para a península ( se é que já não a invadiram). Certamente utilizará o argumento de que a região pertencia à Rússia antes de Krushev repassá-la à Ucrânia. Considerando seu poder bélico muito superior ao ucraniano, sua audácia e a indiferença aos apelos do ocidente, é provável que Putin anexe a Criméia como parte do território russo.

Do outro lado, temos a Ucrânia, um estado combalido por uma grave crise econômica e institucional, dependente economicamente da Rússia e historicamente vinculada a ela, e que volta os olhos e sonhos para o ocidente, distanciando-se da ‘nave mãe’. O estado ucraniano alegará direito sobre o território da Criméia, conferido pela decisão de Krushev e do governo da época, jamais desafiadas formalmente pelos russos ao longo dos 60 anos seguintes. Vejo como improvável a Ucrânia se aventurar militarmente contra sua ‘ irmã mais velha’, hoje com relações estremecidas. A derrota e o agravamento de sua crise econômica seriam inevitáveis, além da subsequente ameaça à sua própria integridade territorial. Me parece lógico que a Ucrânia abdique da Criméia, mesmo a contragosto, com o objetivo de preservar-se, por mais que tenha bons motivos para alegar a autenticidade e a validade jurídica do ‘status-quo’.

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A história terminaria por aí, com o retorno da Criméia para o jugo russo, não fossem algumas variáveis importantes e imprevisíveis, que podem funcionar como álcool misturado a querosene:

A minoria de ucranianos e tártaros no território da Criméia passaria a ser governada por Moscou. É possível que houvesse o recrudescimento das políticas de estado adotadas por Putin contra ambas, em particular no caso dos tártaros, o que suscitaria amargas lembranças do período da segunda guerra. Ânimos exaltados podem facilmente reativar animosidades cultivadas por algumas décadas e que hibernam sob o governo ucraniano. Nesse caso, os tártaros estariam em larga desvantagem e arriscados a reviver o sofrimento de seus antepassados. São 200 mil pessoas que não seriam consideradas bem-vindas na pátria-mãe Rússia…

Até onde vai a ambição de Vladimir Putin? Bastaria para ele anexar a Criméia, ou pretende também retomar a influência sobre a Ucrânia, obrigando-a a permanecer como um estado satélite da Rússia? Nesse caso, o que ele seria capaz de fazer para atingir seu objetivo e em que medida ele estaria disposto a confrontar o ocidente e possíveis sanções econômicas? As respostas a essas perguntas ainda são um mistério.

Como se comportarão as principais potências ocidentais, lideradas pelos EUA? É muito improvável que essa tensão diplomática se materialize em um embate militar entre Rússia e ocidente, já que ambas as partes teriam muito a perder. Não podemos esquecer que a primeira é a maior fornecedora de gás para Europa, que por conta disso muitas vezes faz vistas grossas às ‘esquisitices’ que vem do leste. O presidente Obama, já há algum tempo em pleno exercício como ‘pato manco’, recentemente sequer conseguiu se impor à Síria do ditador Assad, é difícil imaginar que obtenha resultado diferente com Vladimir Putin, cuja habilidade ( e imprevisibilidade) são comprovadamente maiores que as de seu colega americano no tabuleiro de xadrez político global. O histórico recente indica que as potências ocidentais vão adotar uma oratória inflamada, assertiva, mas na prática pouco farão. Afinal, para que se meter em uma briga de irmãos, se nem os assuntos internos decorrentes da hecatombe financeira de 2008 foram resolvidos?

Dentro desse contexto, surgem algumas certezas: a Ucrânia sofrerá ainda mais. Mesmo excluindo a Criméia, existe uma divisão interna considerável entre os que apoiam uma guinada para a Europa, localizados mais na região oeste ( onde se encontra a capital Kiev), e os que são partidários de Moscou, normalmente com ascendência russa e localizados no leste do país. Putin pode não perpetrar um ataque ao território ucraniano diretamente, mas não teria dificuldades em subsidiar os anseios continuístas de sua porção oriental. A Rússia poderia ser chamada para juntar os cacos oriundos de uma guerra civil…

Se o futuro sombrio da Ucrânia é fato consumado, o da Criméia é ainda mais grave, particularmente de suas minorias. Se eu fosse um tártaro residente na região, estaria buscando desesperadamente alternativas para sair de lá. Não se iludam os que esperam alguma interferência ocidental na questão da Criméia. Não ocorrerá. Quem se importa?

Em um mundo completamente conectado, o andamento desse impasse diplomático pode impactar o rumo da economia global e respingar no Brasil, que já não anda com fundamentos muito sólidos. Mas pior que isso, pode demonstrar mais uma vez a omissão das principais nações do planeta diante de atrocidades, como vimos ocorrer tantas vezes no continente africano, nos Balcãs, no Oriente Médio e outros cantos onde guerras civis e regimes ditatoriais sacrificaram milhares de vidas. A situação da Ucrânia ainda não atingiu esse ponto, mas a bestialidade do ser humano pode muito bem nos levar até lá…

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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