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Reflexões “covidianas”: a análise de uma enquete sobre a maldita

Já se passaram 16 meses desde que a pandemia chegou ao Brasil e ainda há gente que contesta sua severidade, a despeito dos quase 500 mil óbitos registrados por covid e ao absurdo volume de ‘excedentes’, a mais importante das métricas (ainda pouco utilizada),  de +13% em 2020 e quase 50% adicionais em 2021.

Mas afinal, quantas pessoas já tiveram contato com o maldito vírus em nosso círculo próximo? A pandemia favorece o instinto do tamanho, transformamos inconscientemente raros exemplos em fatos corriqueiros e isso causa medo. As situações de internação ou mesmo óbito de conhecidos prevalecem sobre a normalidade da ação quase inofensiva da doença na maioria das pessoas e assim constrói-se uma paranoia.

Com o objetivo de entender o grau de contaminação já ocorrida ao meu redor, estabeleci uma enquete que ficou aberta por 48 horas nas redes sociais e obtive 2052 respostas. Trata-se de um microcosmo sem nenhuma relevância estatística, mas fornece alguns insumos para conclusões interessantes.

Para começar, é importante dizer que o universo de respondentes abrange todo país, apesar de não ter maiores informações sobre segmentação geográfica e demográfica. Certamente concentra-se em um intervalo de pessoas entre 30 e 75 anos que remete ao público com o qual tenho maior interação nas redes sociais.

A primeira das informações relevantes é que 78% não tiveram covid, ao menos não souberam disso. Podemos considerar que esse é o máximo, já que haverá gente que teve e não sabe, por falta de testagem. Mas essa comparação condiz com a metodologia de divulgação dos números oficiais, afinal, somente é possível contabilizar o caso após um teste. De qualquer maneira, o número de 22% das pessoas contaminadas é alto e se extrapolado para toda população brasileira, seriam quase 47 milhões.

É sobre esse subconjunto que podemos derivar algumas conclusões. Das 444 pessoas que tiveram covid (21.6% do total), 25.6% apresentaram sintomas fortes, mais do que uma gripe comum, 8% precisaram ser internadas em hospital, das quais 3% foram parar na UTI. Ou seja, se você tiver covid, a chance de que seja algo mais forte do que uma gripe comum é de 1 em cada 4, a de parar no hospital é de 1 em cada 12 e de internação em UTI de 1 em cada 33, de acordo com os resultados dessa enquete.

Obviamente que nenhum falecido a respondeu, mas se tomarmos a média acumulada/MM de habitantes do país, nesse microcosmo teríamos de 4 a 5 óbitos, o que significaria um índice de sobrevivência de 60% entre aqueles que vão para UTI. Mesmo sem nenhuma pretensão científica, os resultados da enquete fazem sentido quando observamos a realidade dos números brasileiros.

A primeira impressão é de que geramos uma tempestade em copo d’água, afinal, de um conjunto de 2000 pessoas (número arredondado), somente 36 foram parar no hospital. Se adicionarmos os 5 óbitos estimados, seriam 41. Parece pouco? Conclusão errada, vamos investigar mais.

Em uma cidade como São Paulo, a mais rica do Brasil, há 3 leitos de hospital para cada 1000 habitantes. É de se esperar que na maioria das cidades brasileiras, os índices sejam piores que esse, mas trabalharemos com um cenário otimista. Imaginemos que esse universo de 2000 respondentes (número arredondado) seja uma microcidade com a infra da capital paulista. Teríamos, portanto, 6 leitos de hospital para atender a essa população.

Se fizéssemos uma divisão simples de 41 por 78 (6 leitos X 13 meses, considerando de Abril/20 a Maio/21), teríamos 52% de ocupação dos leitos apenas pela covid ao longo do período. É como se reduzíssemos a capacidade do sistema pela metade. Essa conta, entretanto, considera o tempo médio de 1 mês de internação, que é muito longo; reduzindo para 15 dias, dobraríamos a capacidade, mas também precisamos levar em conta que a pandemia não se distribuiu de maneira equitativa ao longo dos 13 meses. Em boa parte do tempo, tivemos poucos casos e em outros períodos, uma fase aguda. Sob a premissa plausível que durante metade da pandemia o volume de novos casos foi o dobro da média diária, retornaríamos à mesma sobrecarga média do sistema, de 52% durante esses meses. Em condições normais, isso levaria ao colapso, pois hospitais não são feitos para funcionar com metade da capacidade ociosa.

Estamos fazendo as contas a partir de uma infra paulistana, mas se o índice de leitos hospitalares fosse 2, ao invés de 3 por 1000 habitantes, essa sobrecarga seria de 80%, ou seja, durante os 7 meses mais críticos da pandemia, teríamos somente 20% dos leitos disponíveis para outras doenças/acidentes diferentes da covid.

É claro que isso não leva em consideração a disponibilização de leitos de emergência em hospitais de campanha, mas dá para enxergar que esses números supostamente ‘tímidos’ são suficientemente contundentes para colapsar um sistema de saúde, mesmo com uma letalidade baixa.

O maior desafio que a covid impõe a sociedade é o fato de que individualmente ela não é perigosa, tratando-se obviamente do cidadão médio. As chances de você parar no hospital por causa dela são inferiores a 2 para cada 100. Isso muitas vezes cria a percepção de que as medidas de proteção são exageradas. Porém, o somatório de casos individuais pouco perigosos pode trazer o caos (é claro que sob a perspectiva dos 2% que vão para o hospital, trata-se de uma doença terrível). Então, temos uma doença pouco letal individualmente, mas “coletivamente” extremamente traiçoeira e perigosa.

Um sujeito pode tomar a decisão de se proteger pouco e não sofrer nada com isso, as chances lhe são amplamente favoráveis. Porém, o somatório de vários sujeitos fazendo a opção pela pouca proteção pode incrementar o número de casos de tal maneira que o sistema de saúde não aguente. No nosso exemplo real de 2000 respondentes e 36 casos de internação vimos que a sobrecarga para uma infra ‘paulistana’ de 6 leitos hospitalares seria de uns 52% no período mais crítico da pandemia, mas imaginem uma situação mais “descuidada” que gerasse não 36, mas 45 internações. Nesse caso, para a mesma quantidade de leitos, o nível de sobrecarga do sistema iria para 65%.

Do ponto de vista individual, tomar o risco de covid pode parecer “ok”, o problema é que essa atitude extrapolada aos milhares, faz a coisa “desandar” coletivamente. Não é algo que parece tangível, daí a dificuldade. Me parece que sociedades onde o espírito coletivo é mais intenso tendem a apresentar resultados melhores.

Infelizmente, esse não é o único aspecto a influenciar os rumos da pandemia, as variáveis são diversas e muitas delas ainda desconhecidas. Quando somadas ao longo período sob o qual vivemos com algum tipo de restrição (a liberdade plena dos tempos pré-pandemia ainda não é uma realidade), cujos efeitos colaterais nas vidas pessoais estão em fase de assimilação (crise financeira, doenças mentais, surtos de ansiedade, agressividade, etc), e ao insuportável cenário político polarizado, que transforma qualquer notícia em uma guerra de narrativas, temos o pior dos mundos.

É provável já estejamos no último quartil dessa maldita, e infelizmente estamos nos acostumando ao seu ‘modus operandi’, a desgraçada já faz parte de nossas vidas há quase um ano meio e tudo leva a crer que nos acompanhará pelo menos até o final do ano, mesmo que perca intensidade. Carregue uma garrafa de um litro de água por um minuto e será tranquilo. Transforme esse minuto em uma hora e já haverá algum sofrimento. Converta a hora em um dia e isso lhe exigirá uma resiliência infinita, é mais ou menos isso que a pandemia tem nos cobrado.

 Os números estão aí para quem duvidar, apesar de ser uma doença ‘individualmente’ pouco letal, nos deixa um rastro de destruição e dor, que o digam os milhões de pessoas impactadas por uma perda decorrente da maldita.

A essa altura, pode parecer impossível, mas vai passar. Um dia a menos.

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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2 Comentários

  1. Valeu a enquete para ampliar a visão dessa maldita.
    Sinceramente só me tranquilizarei quando chegarmos a quase zero de contaminação e mortes por Covid, enquanto isso, álcool gel e máscara não abra mão.

  2. Parabéns Victor, muito bom artigo. Penso que é uma doença necessitando de investimento para diagnóstico rápido, o que promoveria um tratamento mais assertivo e antecipado. No entanto, estamos em um país onde é escasso o acesso à todos de maneira eficiente e a sua continentalidade (Brasil) dificulta essa busca. É o nosso cenário: torcer para que a maldita não chegue perto de nós, prevenção, rezar pelos que se contaminaram e educar para prevenir. O Ministério da Educação já deveria ter implementado nas aulas do ensino básico, fundamental e médio (presenciais ou on-line) uma hora por dia de higiene e limpeza pessoal e social. Lembro-me que na minha infância, toda quarta-feira era dia de aplicar flúor para evitar cáries, fortalecer o esmalte dos dentes, etc.. Quem sabe os velhos hábitos não poderiam retornar para formar cidadãos mais bem instruídos. Ah, também poderiam instituir módulos de educação financeira. Já pensou, uma criança saindo da escola educada moralmente, com hábitos de higiene exemplares, conhecedora de alimentação saudável e educada financeiramente? Um forte abraço.

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