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Sobre a ditadura do futebol, a falta de educação e medalhas de latão

A cada quatro anos, o Brasil descobre que em seu território se praticam outros esportes diferentes do futebol e atletas-heróis são elevados à categoria de celebridades por duas semanas. Os poucos que entram no panteão dos medalhistas são aceitos temporariamente no olimpo esportivo tupiniquim, e aqueles que chegam quase lá são muitas vezes taxados injustamente de ‘amarelões’, como se fosse motivo de vergonha estar entre os melhores do mundo em alguma atividade. Passa o tempo, as Olimpíadas são esquecidas, e quem não trouxe um ‘ourinho’ para casa é destituído do olimpo, quase desprovido de espaço para outros que não sejam ‘boleiros’ de profissão.

O Brasil possui a sexta economia do mundo e quase 200 milhões de habitantes. Em qualquer indicador de performance olímpica, nosso desempenho é patético. Com mais de 2.5% da população mundial, na Olimpíada de Pequim, nossa melhor desempenho, obtivemos pouco mais de 1.5% das medalhas e ficamos acima da 20° colocação no quadro geral, situação que deve se repetir esse ano. Um leve sentimento de frustração incomoda a todos que acompanham e gostam de esporte: afinal, por que sempre esse fiasco?

Não há milagres. Em um país onde praticamente não se incentiva o esporte, seria impossível visualizar qualquer outro desfecho diferente da dúzia de medalhas usuais. É fácil enumerar um conjunto de razões que explicam esse fracasso, muito próximo de insucessos em outras áreas sociais e de educação, mas algumas delas saltam aos olhos.

Primeiramente, vivemos uma ditadura monoesportiva. E não é algo que seja forçado. Realmente somos loucos por futebol, mas é uma paixão egoísta que chega a sufocar qualquer interesse por outros esportes. Ou alguém se lembra de uma segunda-feira de comentários sobre a rodada do voleibol do final de semana? Tomando como exemplo a Europa e a própria Argentina, lugares onde a devoção ao futebol também é imensa, o contraste é significativo. Por lá, a Copa do Mundo de Rúgbi é um evento bastante badalado. A Argentina já foi campeã mundial nesse esporte. O Basquete, por exemplo, também lota ginásios na Europa, sem contar o handbol e o voleibol. Nenhum deles chega a ter a popularidade do futebol, mas oferecem bem mais que o traço na audiência para os meios de comunicação. Alguns podem contestar dizendo que joga-se voleibol de alto nível no Brasil. É verdade, mas tal sucesso não pode ser atribuído a uma genuína paixão popular. Isso sem mencionar os Estados Unidos, uma das últimas fronteiras a serem conquistadas pelo esporte bretão, que divide sua atenção entre quatro esportes coletivos principais: o futebol americano, o beisebol, o basquetebol e o hóquei. Esse monopólio futebolístico certamente prejudica financeiramente outros esportes, pois todos querem abocanhar um pouco do filão que o futebol proporciona. Alguém imagina a Rede Globo transmitindo uma partida de voleibol às 16 horas do Domingo? Esse ano, a Globo detinha os direitos de transmissão das finais da NBB – Novo Basquete Brasil. Ela aconteceu no sábado pela manhã. Quase ninguém viu.

Há solução para isso? Como fazer com que a população em geral passe a acompanhar outros esportes? Difícil. Eu mesmo sou um exemplo; em meu trajeto diário para o trabalho, tendo o rádio como meu companheiro de trânsito, quase sempre mudo de estação quando a programação esportiva divesifica além do futebol e da fórmula 1. E aqui uma pergunta do tipo ‘o que vem primeiro, se o ovo ou a galinha’: são as pessoas que devem demonstrar crescente interesse por alguma modalidade esportiva ou os meios de comunicação que devem estimulá-lo? Talvez um pouco dos dois.

Com boa parte dos recursos canalizados para o futebol (masculino, vale o lembrete), se já resta pouco para outros esportes coletivos, para os individuais então vivemos quase em um deserto de investimentos. Além de alguns esportes onde já criamos uma razoável tradição, como judô e iatismo, nos demais dependemos de estrelas solitárias que se tornam ídolos efêmeros de uma geração e ajudam a disseminar a sua prática. Gente que nasceu com um dom diferenciado e superou o descaso do Brasil para crescer e brilhar. Gustavos Borges, Gustavos Kuertens, Cesar Cielos, Robson Caetanos da vida, entre outros. Eles são fruto do esforço individual e de seus treinadores e talvez da rara ajuda de algum mecenas ou instituição, jamais são consequência de um planejamento sério por parte do governo e das autoridades oficiais esportivas. Por isso, são heróis. Não somente os que atingiram o panteão de medalhistas, como também os anônimos e aqueles que quase chegaram lá…

Uma segunda razão é a completa desconexão entre educação e esporte, além da baixíssima qualidade da primeira. Nos Estados Unidos, a maior parte dos esportes olímpicos é catalisada nas universidades. Devem ser raríssimos os atletas olímpicos sem diploma universitário ou fora da faculdade. O oposto dessa situação ocorre no Brasil, onde o único esporte com potencial para ser adotado pelas universidades é o ‘levantamento de copo’, modalidade que ainda não é olímpica. Brincadeiras à parte, os escassos jogos universitários que ocorrem Brasil afora são coadjuvantes das atividades sociais que os mesmos geram, o esporte em si fica em segundo plano. Se no ensino universitário o panorama é esse, nos ensino básico e médio a situação é similarmente ruim, com raras exceções. Sejamos realistas: um sistema educacional que está desde sempre na rabeira do teste ‘PISA’ nas disciplinas de matemática, ciências e interpretação de textos e que carrega o fardo de ter gerado mais de trinta milhões de analfabetos funcionais atuais, incapazes de ler e entender um texto simples, não pode aspirar a nada muito além da mediocridade, em se tratando de esporte. No filme da educação brasileira, tanto o ator principal – que é a qualidade da própria, quanto o ator coadjuvante – que é a prática de esporte, atuam sem roteiro e diretor. E a nossa sociedade conformada assiste silenciosamente essa desgraça. Está satisfeita com a educação. Se poucos pressionam, as autoridades não se esforçam para mudar o quadro. Lamentavelmente, tanto a educação quanto o esporte, nesse quesito, sofrem do mesmo mal.

Uma terceira razão, essa bem mais evidente, é a falta de apoio do Estado. Escuta-se há décadas o discurso de que para as próximas olimpíadas, avançaremos no suporte às atividades esportivas e na geração de atletas de alto nível. Conversa fiada. Obtemos destaques em modalidades nas quais já temos o DNA estabelecido. Em atletismo e natação, tradicionalíssimas especialidades olímpicas, dependemos de dons diferenciados e da resiliência de uns poucos privilegiados. Nossa cartolagem é muito incompetente, e as pouquíssimas exceções apenas ratificam essa afirmação. Muito pior que perder um pódio é produzir tão poucos candidatos a ele…

Enquanto tudo permanece como d’antes, resta-nos torcer por todos os heróis e heroínas. Eles merecem no mínimo uma medalha simbólica, de ouro. A cartolagem, as autoridades e suas perenes promessas quebradas merecem medalha de latão.

 

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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