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Sonho Inverossímil

Tenho muita dificuldade para lembrar de sonhos, talvez pela drenagem de energias durante o dia. Todavia, aconteceu-me algo inusitado outra noite, um sonho vívido que acabei anotando para não me esquecer. Acredito que este sonho seja uma continuação do outro artigo que escrevi aqui.

Não é muito longo, mas tem uns detalhes que chamam a atenção até por certa similaridade com os tempos atuais, razão talvez desse sonho. Em função disso, vi-me pela primeira vez na vida compelido a compartilhar desse onirismo com os dois ou três leitores que se dispõem ao suplício de me ler.

Eis que me vi numa sala ampla e envidraçada, em uma época difícil de precisar. Pelas janelas viam-se edifícios que ladeavam um amplo gramado verde, sob um céu azul com nuvens esparsas em um dia ensolarado. Dentro da sala uma mesa de reuniões em formato oval, na qual estavam sentados de um lado militares, de outro almofadinhas engravatados e perfumados e numa ponta um sujeito meio desleixado tamborilando seus dedinhos sobre a mesa, impaciente à espera de alguém. Alguns pouco centímetros à frente de suas unhas, duas pequenas pilhas de celulose, contendo, quem sabe?, informações misteriosas ou revelações proibidas.

De repente, anuncia-se a chegada do presidente do Judiciário, sendo-lhe indicado que se sentasse na outra ponta da mesa oval, defronte ao presidente do Executivo, que começou falando:

 – Presidente, agradeço que tenha podido comparecer a esta reunião. Melhor que fazê-la num jantar, meio às escondidas, sem constar da agenda oficial. Como vê, estamos aqui com os comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica à minha direita; e com os presidentes da Câmara e do Senado à minha esquerda, como usual aliás.

– Bom dia, Presidente, é sempre uma satisfação dialogar de forma republicana e desinteressada com os senhores, sempre em benefício do povo – respondeu o presidente do Judiciário com voz impostada.

– É justamente o povo a razão deste colóquio – respondeu o presidente do Executivo. Tomei conhecimento de uma pesquisa feita pelo Instituto Dados de Papel, em caráter privado, que gostaria de compartilhar com o senhor. Nessa pesquisa, com uma amostra de 2002 pessoas e margem de erro de 2%, 50% da população acha que não vivemos mais em uma normalidade institucional democrática, conclusão que o mais cego do povo pode chegar.

– Que absurdo, as decisões são todas tomadas de acordo com a legislação, especialmente do Judiciário, cuja interpretação, sim, é cega, pois não vê a quem beneficia – respondeu o presidente do Judiciário.

– Veja, presidente, não parece ser verdade. Existe um inquérito ilegal ocorrendo sob sua batuta, um deputado foi preso no exercício de suas funções, um senador foi preso sem flagrante e a última medida foi incluir a minha pessoa nesse inquérito ilegal, para me impedir de concorrer no próximo pleito. Estamos caminhando para uma ruptura institucional e, em nome do povo, quero evitar essa situação insólita a todo custo.

– Mas, presidente, no caso do deputado, por exemplo, a própria Câmara referendou a prisão – respondeu o presidente do Judiciário.

– Talvez a harmonia entre os poderes tenha-se transformado em cumplicidade – respondeu o presidente do Executivo voltando-se ao presidente da Câmara – o que faltou para a Câmara opor-se à prisão do nobre deputado, presidente?

– Creio que os nobres deputados carecem de glúteos tonificados e musculosos, meu Presidente – respondeu o presidente da Câmara. Aproveitando, seria possível uma suplementação orçamentária para a renovação da academia de ginástica da Câmara?

– Caro Presidente do Senado, por que o Senado não toma uma atitude contra essas arbitrariedades do Judiciário? – indagou o presidente do Executivo.

– Ora, meu caro presidente, não nos podemos indispor com o Judiciário, pois isso lhe causaria desconforto e poderiam requerer almofadas macias para substituir os processos em que depositam seu esqueleto adiposo há anos. Como resultado, haveria aumento de gastos no Judiciário, e os senadores precisariam de aumento em seus salários para enfrentar essa indisposição no outro Poder. Sabe como é, o dr. Cacau é caro. Não é melhor deixar tudo como está e ver como é que fica?

– Bem, presidente do executivo, como vê, nada está sendo feito sem a aquiescência de todos os poderes, tudo dentro da lei, da normalidade e da harmonia entre os poderes – retrucou o presidente do Judiciário. Em que mais lhe posso ajudar?

– Calma lá, incluir-me no seu inquérito ilegal indica caminho sem volta e sem saída. Quero evitar uma reação dos meus comandantes militares quanto a isso. E gostaria de sugerir uma solução para os problemas, sempre em nome do bem estar do nosso povo tão sofrido e pagador da maiores cargas tributárias do mundo.

– Qual sua sugestão, nobilíssimo presidente? – perguntou o presidente do Judiciário, com um leve sorriso nos lábios.

– Veja, excelência, uma ruptura institucional nos dias de hoje pega muito mal para o país. Além disso, a conta ia para meu colo. Daí que pensei, veja que ato raro, enfim pensei que o senhor poderia levar uma sugestão a seus colegas, que beneficia a todos: os colegas que já têm tempo de aposentadoria vão para a reserva, digo, pedem aposentadoria; quem não reúne essas condições, renuncia. A gente faz isso gradualmente, digamos um por semana. Em troca, eu lanço uma medida provisória aposentando quem renunciou. Dessa forma, ninguém sai prejudicado – e olhando para os presidentes da Câmara e do Senado – certo?

Vi, ainda meu sonho, como se estivesse pairando sobre os parlamentares, um certo ar de espanto e incredulidade, mas o olhar firme dos militares não lhes deu outra alternativa, senão menear a cabeça para cima e para baixo, para cima e para baixo, com um certo nervosismo, mas também com firmeza.

– Isso é ultraje! – reagiu o presidente do Judiciário. É uma ameaça totalmente ilegal.

– Foi só uma sugestão e nada é ilegal, afinal está prevista a aposentadoria e a renúncia em lei. E, como disse, não queremos nenhuma ruptura institucional. Ao contrário, somos desinteressados e sempre pensando no povo, certo? Com isso, consigo dar seguimento a meu programa de governo e prometo que nomearei as maiores autoridades jurídicas do país no lugar de quem sai. Não lhe parece razoável?

Rindo-se, o presidente do Judiciário, respondeu:

– Ah, sim, programa de governo com aumento de impostos? Nomeações como fez da última vez trazendo um dos nossos?

– Foi um favor que fiz, e me comprometo a procurar o melhor. Por exemplo, pode ser que eu indique o Simão Vivo e a Jane Coelho, ambos tem doutorado com notável saber jurídico e ilibada reputação, um até passou no concurso para juiz. Não seriam boas indicações?

– Vossa excelência não está entendendo – argumentou o presidente do Judiciário. Demorou todo o primeiro semestre do seu primeiro ano de mandato para firmarmos um acordo democrático e republicano com as forças prejudicadas pela sua eleição. Não podemos abandonar esse acordo, temos compromissos pelos quais fomos recompensados.

– Acho que é vossa excelência que não está entendendo. Mas, vou explicar melhor – respondeu o presidente do Executivo. Meus comandantes aqui me disseram que não há disponibilidade de um cabo e dois soldados para mantê-los na linha. Disseram-me que havia muitos militares lotados em meu governo para disporem de profissionais nessa missão. E me disseram que isso pegava mal para os militares. Pessoalmente acho que precisam tonificar certos músculos, mas não deixam de ter sua razão. De qualquer forma, minha sugestão não deixa ninguém indignado e funciona de acordo com a legislação para juízes (des)compromissados com a lei: quando algum é pego com a boca na botija, aposenta-se o cidadão sem prejuízo dos vencimentos proporcionais ao tempo de serviço. É o jeito que fazemos acordos há muitos anos, sem aquela agressividade.

– Diga-me uma coisa, ponderado e simpático presidente, e se meus colegas se recusarem a seguir sua sugestão de golpe? – perguntou o presidente do judiciário, com a soberba usual de quem tem sempre razão e é obedecido na ponta da pena que carrega.

Nesse instante, o presidente do Executivo repassou as duas pilhas de papéis que respousavam mansamente a sua frente e disse:

– A recusa vai gerar consequências, creio, indesejadas para todos. Esses papéis contêm relatórios de nossa agência de inteligência, o Nossab – por mais incrível que possa parecer. Aí há depósitos regulares elevados em sua conta e outras condutas suspeitas, incluindo de seus colegas e parentes. Creio que não queremos divulgar essas informações publicamente.

– Mas, mas isso é claramente falso, vez que não há nenhum certificado de autenticidade, logo também não vale nada e pior, vossa excelência coloca o Estado subordinado a seus interesses pessoais, o que é inadmissível e ilegal – respondeu nervoso o presidente do Judiciário.

– Tudo meia verdade, pois válido apenas quando o regime é democrático. No caso de um regime de exceção como o atual, é uma forma de combater essa cumplicidade de poderes. Além disso, usar informações de aparelhos de comunicação invadidos ilegalmente, sem certificado de autenticidade, não me parece uma conduta amiga e harmônica e legal, vez que utilizado para inocentar bandidos condenados em três instâncias – respondeu o presidente do Executivo. Então, é só interpretar que é válido e está tudo bem.

– Bem, creio que me devo retira dessa humilhação. Isso é um golpe muito baixo da sua parte – disse o presidente do Judiciário

– Todo mundo fala que sou golpista sem eu ter tomado qualquer medida nesse sentido. É tudo uma questão de narrativa. Talvez eu queira dar razão a quem assim me chama, mas seria, em verdade, um contragolpe legítimo, tudo dentro da normalidade e legalidade, como vossas excelências têm feito – respondeu o presidente.

– Creio que teremos que retomar os processos que envolvem alguns de seus familiares próximos – ameaçou o presidente do Judiciário, caminhando para a porta daquela sala.

– Ui! Sem agressividade, presidente do Judiciário, aqui não é Gothan, dispam-se de sua capa da Justiça e se assumam. Não lhe pega bem, o povo não gosta de violência, e sua farsa poderá ser revelada. Fique à vontade para retomar qualquer processo, pois os eleitores merecem a verdade, e quem fez alguma coisa ilegal deve responder por ela. Aliás, quis contribuir para apurações de crime nomeando a pessoa certa na Guarda Federal, e o judiciário me impediu; isso sim uma ilegalidade, já que baseado na presunção de interferência naquela instituição. Mas, não se preocupe, excelência, ninguém gravou esta conversa, é só uma conversa amigos, taoquei?

– Vossa excelência desperta em mim os instintos mais primitivos – terminou o presidente do Judiciário.

– E vossa excelência transpira charme, convicção, sapiência, desprendimento e senso de justiça. Parabéns! Por favor, informe-me quando se iniciam as aposentadorias e renúncias e a ordem delas.

Depois disso, olhei para a janela e o céu pareceu sombrio e escuro. Uma tempestade se avizinhava. Não me consigo lembrar de mais nada, pois acordei sobressaltado, achando que fora acometido de insanidade. Imagine se uma conversa dessas existisse…

P.S.: Esta é a descrição de um sonho. Qualquer semelhança com fatos, personagens, realidades paralelas ou nesta dimensão, não passa de um devaneio triste e infeliz.

Rodrigo De Losso

Rodrigo De Losso tem Ph.D em Economia pela Universidade de Chicago e é professor do Departamento de Economia da USP. A ideia aqui é mostrar como teoria econômica pode ser aplicada a temas do cotidanos, às vezes polêmicos, sem deixar de falar dos outros assuntos que o interessam com música, vinhos, literatura, cinema e política.

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