Opinião

Protesto-raiz era assim…

É difícil encontrar um adjetivo para qualificar o que aconteceu no mundo em 1968. Como no título do livro do grande Zuenir Ventura, é o ano que não terminou.

Décadas de repressão política, social, racial e até sexual armaram uma bomba relógio que explodiu ao longo dos anos 1960, ao som dos Beatles e Rolling Stones. E não há dúvidas que 1968 foi o pico da onda.

Pinçando apenas alguns dos eventos mais marcantes daquele ano, temos;

Abril – Assassinato de Martin Luther King Jr.;

Maio – A famosa “revolta dos estudantes”, que incendiou a França;

Junho – Assassinato de Bob Kennedy;

Agosto – Tanques soviéticos esmagam a “primavera de Praga”, uma tentativa de liberalização do comunismo feita pelos tchecos.

Em outras palavras, viver em 1968 não era para os fracos.

Enquanto tudo isto acontecia, dois atletas negros, Tommie Smith e John Carlos, se preparavam para ss Olimpiadas do México, em outubro. Bolsistas na Universidade de San Jose, na California, eram os grandes favoritos para a prova dos 200 metros rasos.

Sofrendo na pele a barra pesada do racismo da época (que incluía ônibus e ate banheiros separados para brancos e negros), ambos participaram de um movimento que ameaçou boicotar os jogos, o Olympic Project for Human Rights (OPHR), que conseguiu, pelo menos, excluir da competição países onde o apartheid era constitucional, como África do Sul e Rodésia (hoje Zimbabwe).

Em surdina, Tommie e John combinaram um protesto no pódio. Vale dizer que vivíamos a época do amadorismo total nas Olimpiadas, portanto nenhum deles sonhava com os patrocínios milionários de hoje. A vida era dura para os dois, sem dúvida. E o combinado foi subirem ao pódio descalços, usando luvas negras, e ouvir o hino americano de cabeça baixa e com o punho erguido, o gesto típico do orgulho negro, na época. Um protesto silencioso, respeitoso, mas forte.

Na hora da prova, uma zebra; o australiano Peter Norman fez o melhor tempo da sua vida, e intrometeu-se entre os dois, conquistando uma prata totalmente inesperada. Tommie foi ouro e John, bronze.

Na sala de espera da cerimônia de premiação eles viram, com decepção, que haviam esquecido um dos pares de luvas no alojamento. Foi então que o branco e australiano Peter resolveu entrar na conversa, sugerindo que cada um usasse uma luva. E fez mais; comprando uma briga que, em principio, não era sua, resolveu aderir ao protesto, colou um adesivo do OPHR no uniforme e foi ocupar seu lugar no pódio e na história.

-“Naquela hora, descobri um irmão”, escreveu John em seu livro de memórias alguns anos mais tarde. E não foi força de expressão; seus filhos sempre se referiram ao australiano como “Uncle Pete”. E quando da morte de Peter, em 2006, John viajou até a Austrália e fez um comovente discurso no funeral.

A foto deste pódio é, seguramente, a imagem mais impactante de um protesto esportivo em todos os tempos. E hoje é reproduzida em um monumento em Sidney que leva, apropriadamente, o nome de “Three Proud People” – três pessoas com orgulho. Três seres humanos que nos orgulham.

Obviamente a reação do “establishment” foi violenta. Eles perderam suas medalhas, foram expulsos da Vila Olimpica e banidos do esporte. De volta ao lar, as ameaças e agressões contra John e sua família foram tão pesadas que a mãe dele sofreu um infarto fatal em 1970. Peter foi marginalizado por seus colegas na Austrália. Eles só foram reabilitados muitos anos depois. PhD em Ciências Humanas, John ainda hoje é figura presente nos movimentos pela igualdade racial.

Por tudo isto não consigo levar a sério os debates inflamados em torno da “corajosa manifestação política” da Carol Sohlberg e a reação “repressiva e arbitrária” da CBV. Aquele gritinho ridículo e desafinado no máximo pode ser classificado como uma atitude boba, coisa de quem resolveu se exibir para a turminha e fez merda. Perdoem a falta de modéstia, mas quem viveu 1968 se acostumou com outro patamar.

Enfim, não se faz mais “proud people” como antigamente…

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

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2 Comentários

  1. muito bom, Marcio
    !
    E, completando: se fosse hoje em dia, o BLM cairia de pau no australiano, por apropriação cultural e não ter lugar de fala para se juntar ao protesto dos bro…

  2. Tommie Smith e John Carlos, como represália dos dirigentes, foram expulsos da Vila Olímpica na Cidade do México. As carreiras de ambos foi igualmente afetada e quase foram banidos do esporte.

    Para Peter Norman, o destino foi igualmente cruel. Ao retornar à Austrália, foi deixado no ostracismo pelos dirigentes. Chegou a fazer 13 vezes o índice para os Jogos de Munique-1972, mas não foi convocado.

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