Economia

Sinuca de bico

Este artigo é uma espécie de continuação do anterior, em que comentamos a carga tributária brasileira. Vamos falar, agora, das despesas.

Começo com algumas manchetes que estamparam os jornais nos últimos dias:

O que aconteceu? O governo malvadão resolveu mostrar sua verdadeira face? Ou, em um acesso de loucura, decidiu dar um tiro no próprio pé, minando sua própria popularidade?

Nem um coisa, nem outra. Foi muito simples o que aconteceu: acabou o dinheiro.

Quer dizer, dinheiro tem. O que acabou foi o dinheiro do que chamamos de verbas discricionárias. O orçamento brasileiro é extremamente engessado. Como podemos ver na tabela abaixo, elaborada pela Instituição Financeira Independente, órgão do Senado, uma parte relevante das despesas são obrigatórias, ou seja, estão carimbadas por alguma lei. Inclusive, várias delas são nada menos que constitucionais.

As duas maiores despesas obrigatórias são a Previdência e Gastos com Pessoal. Somando todas as assistências sociais (Previdência, Seguro-Desemprego, BPC e Bolsa-Família), temos um total de 54,9% das despesas. Os Gastos com Pessoal, por sua vez, somam 21,4% das despesas. Outras despesas obrigatórias, como Educação (incluindo o Fundeb) e Saúde, somam 17,1% das despesas do governo. Sobram 6,6%, que são as chamadas “despesas discricionárias”.

E o que são essas despesas discricionárias? Despesas discricionárias são aquelas livremente definidas pelo governo e pelo Congresso, o que inclui todos os investimentos estatais. Como as obrigatórias são definidas por lei, não há o que fazer. E como existe a Lei do Teto de Gastos, acaba sobrando para as despesas discricionárias. Ou seja, as despesas obrigatórias crescem segundo a lei, empurrando as despesas discricionárias contra o teto de gastos. Parece aquela cena do filme Kingsman, em que o mocinho fica preso em uma sala com a água subindo, sobrando cada vez menos espaço para respirar.

O gráfico abaixo, elaborado pelo IFI, mostra os gastos discricionários ano a ano, em proporção do PIB.

Podemos observar que, neste ano de 2021, esses gastos representam apenas 1,3% do PIB, contra uma média quase sempre em torno de 2% do PIB nos anos anteriores.

Quando a Lei do Teto de Gastos foi aprovada, sabíamos que isso iria acontecer. A ideia era aprovar reformas estruturais que diminuíssem as despesas obrigatórias. Fizemos a Reforma da Previdência, que economizaria R$ 800 bilhões em 10 anos, ou R$ 80 bilhões/ano, o equivalente a pouco mais de 1% do PIB ao ano. Foi uma reforma potente, mas os seus efeitos só se farão sentir ao longo dos anos, o efeito no curto prazo é pequeno.

O mesmo se pode dizer da Reforma Administrativa que está no Congresso. Vai valer somente para os funcionários públicos que ainda vão entrar no serviço público. Então, seus efeitos sobre o orçamento serão sentidos somente ao longo dos anos, não hoje e nem no ano que vem.

Assim, com o Teto de Gastos valendo e as despesas obrigatórias aumentando, começamos a ver a máquina rangendo. Falta dinheiro para o Censo. Falta dinheiro para o Minha Casa Minha Vida. Falta dinheiro para a segurança e a limpeza das universidades federais (não se preocupe, a verba para pagar salários de professores é obrigatória, não discricionária). Daqui a pouco vai faltar dinheiro para imprimir passaportes.

Estamos chegando à hora da verdade do Teto de Gastos. É a única regra fiscal que temos, depois que abandonamos, a partir de 2014, a política de superávits primários. Aliás, para quem acha que o Teto de Gastos é muita austeridade, gostaria que me explicasse que austeridade é essa que provocou o aumento da dívida pública em quase 40 pontos percentuais do PIB em 6 anos.

Abandonar o Teto de Gastos e não colocar nada no lugar é a receita certa para o desastre. Não temos a licença para gastar que um Tesouro dos EUA tem. Sem uma âncora fiscal que substitua o Teto de Gastos, os financiadores da dívida vão começar a exigir mais juros para financiá-la (já começaram, aliás). Uma coisa é pagar juros de dois dígitos sobre uma dívida de 50% do PIB. Outra, bem diferente, é pagar juros de dois dígitos sobre uma dívida de 90% do PIB. Começa a ficar insustentável.

Como sair dessa sinuca de bico? Esta é a questão que os candidatos a presidente a partir de 2023 precisam responder. Qualquer outra bandeira depende de se resolver isso. Porque, senão, não haverá dinheiro para financiar qualquer promessa.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

Artigos relacionados

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo
Send this to a friend