Júri e foro privilegiado: usos e abusos
Podemos separar os processos penais em 4 tipos de foro e forma de julgamento, cada um com seus desdobramentos.
1) Indivíduos que o STF, STJ, TRF, STM, TJ, TRE, TSE ou STM tem que processar: réus com foro privilegiado. O tribunal adequado depende do cargo do réu. Se for STF, TSE ou STM, trata-se, em geral, da instância final, o que pode tornar uma eventual punição mais célere.
O foro privilegiado pode ser uma faca de 2 gumes. De um lado, pode haver proteção para uma parcela de acusados, o que afasta a penalização. De outro lado, pode haver uma aceleração do rito pela ausência de outras instâncias, que talvez seja o caso do Collor, que está, por ora, apenas protelando seu destino, através de um embargo de declaração, que está paralisado por um pedido de vistas do ministro Gilmar Mendes.
2) Indivíduos que o STF (ou, potencialmente, qualquer outro tribunal usado para foro privilegiado) quer processar referente a réus sem foro privilegiado.
No caso, pode-se citar o ex-presidente Bolsonaro, ou indivíduos acusados de crimes contra o STF ou contra 1 ou mais de seus integrantes.
O foro do STF viola o artigo 102 da CF que estabelece as competências do STF, porque processar pessoas comuns ou antigos ocupantes de um cargo não faz parte das atribuições deste tribunal.
𝐴𝑟𝑡. 102. 𝐶𝑜𝑚𝑝𝑒𝑡𝑒 𝑎𝑜 𝑆𝑢𝑝𝑟𝑒𝑚𝑜 𝑇𝑟𝑖𝑏𝑢𝑛𝑎𝑙 𝐹𝑒𝑑𝑒𝑟𝑎𝑙, 𝑝𝑟𝑒𝑐𝑖𝑝𝑢𝑎𝑚𝑒𝑛𝑡𝑒, 𝑎 𝑔𝑢𝑎𝑟𝑑𝑎 𝑑𝑎 𝐶𝑜𝑛𝑠𝑡𝑖𝑡𝑢𝑖𝑐̧𝑎̃𝑜,
….
𝑏) 𝑛𝑎𝑠 𝑖𝑛𝑓𝑟𝑎𝑐̧𝑜̃𝑒𝑠 𝑝𝑒𝑛𝑎𝑖𝑠 𝑐𝑜𝑚𝑢𝑛𝑠, 𝑜 𝑃𝑟𝑒𝑠𝑖𝑑𝑒𝑛𝑡𝑒 𝑑𝑎 𝑅𝑒𝑝𝑢́𝑏𝑙𝑖𝑐𝑎, 𝑜 𝑉𝑖𝑐𝑒-𝑃𝑟𝑒𝑠𝑖𝑑𝑒𝑛𝑡𝑒, 𝑜𝑠 𝑚𝑒𝑚𝑏𝑟𝑜𝑠 𝑑𝑜 𝐶𝑜𝑛𝑔𝑟𝑒𝑠𝑠𝑜 𝑁𝑎𝑐𝑖𝑜𝑛𝑎𝑙, 𝑠𝑒𝑢𝑠 𝑝𝑟𝑜́𝑝𝑟𝑖𝑜𝑠 𝑀𝑖𝑛𝑖𝑠𝑡𝑟𝑜𝑠 𝑒 𝑜 𝑃𝑟𝑜𝑐𝑢𝑟𝑎𝑑𝑜𝑟-𝐺𝑒𝑟𝑎𝑙 𝑑𝑎 𝑅𝑒𝑝𝑢́𝑏𝑙𝑖𝑐𝑎;
𝑐) 𝑛𝑎𝑠 𝑖𝑛𝑓𝑟𝑎𝑐̧𝑜̃𝑒𝑠 𝑝𝑒𝑛𝑎𝑖𝑠 𝑐𝑜𝑚𝑢𝑛𝑠 𝑒 𝑛𝑜𝑠 𝑐𝑟𝑖𝑚𝑒𝑠 𝑑𝑒 𝑟𝑒𝑠𝑝𝑜𝑛𝑠𝑎𝑏𝑖𝑙𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒, 𝑜𝑠 𝑀𝑖𝑛𝑖𝑠𝑡𝑟𝑜𝑠 𝑑𝑒 𝐸𝑠𝑡𝑎𝑑𝑜 𝑒 𝑜𝑠 𝐶𝑜𝑚𝑎𝑛𝑑𝑎𝑛𝑡𝑒𝑠 𝑑𝑎 𝑀𝑎𝑟𝑖𝑛ℎ𝑎, 𝑑𝑜 𝐸𝑥𝑒́𝑟𝑐𝑖𝑡𝑜 𝑒 𝑑𝑎 𝐴𝑒𝑟𝑜𝑛𝑎́𝑢𝑡𝑖𝑐𝑎, 𝑟𝑒𝑠𝑠𝑎𝑙𝑣𝑎𝑑𝑜 𝑜 𝑑𝑖𝑠𝑝𝑜𝑠𝑡𝑜 𝑛𝑜 𝑎𝑟𝑡. 52, 𝐼, 𝑜𝑠 𝑚𝑒𝑚𝑏𝑟𝑜𝑠 𝑑𝑜𝑠 𝑇𝑟𝑖𝑏𝑢𝑛𝑎𝑖𝑠 𝑆𝑢𝑝𝑒𝑟𝑖𝑜𝑟𝑒𝑠, 𝑜𝑠 𝑑𝑜 𝑇𝑟𝑖𝑏𝑢𝑛𝑎𝑙 𝑑𝑒 𝐶𝑜𝑛𝑡𝑎𝑠 𝑑𝑎 𝑈𝑛𝑖𝑎̃𝑜 𝑒 𝑜𝑠 𝑐ℎ𝑒𝑓𝑒𝑠 𝑑𝑒 𝑚𝑖𝑠𝑠𝑎̃𝑜 𝑑𝑖𝑝𝑙𝑜𝑚𝑎́𝑡𝑖𝑐𝑎 𝑑𝑒 𝑐𝑎𝑟𝑎́𝑡𝑒𝑟 𝑝𝑒𝑟𝑚𝑎𝑛𝑒𝑛𝑡𝑒;
Claramente é possível interpretar que um ex-presidente não pode ser considerado presidente e é ululante que um vândalo das invasão de 8 de janeiro, que não tenha foro privilegiado, deveria ser processado em 1a. instância e não no STF.
O entendimento firmado pelo STF, que já tem maioria, é no sentido de julgar pessoas com direito a foro privilegiado, mesmo que já tenham saídos seus cargos, quando o crime em questão está relacionado ao exercício do cargo. Ou seja, eles adicionaram uma nova atribuição ao STF não prevista na Constituição ou estão ignorando o prefixo “ex” e chamando um ex-presidente de presidente por “educação” e para efeitos de possíveis punições.
O ponto em que a legislação é omissa ocorre quando o processo já foi iniciado pelo tribunal de foro privilegiado. Deveria esse processo ser redirecionado para a 1a. instância? Isto já aconteceu antes com o Lula em 2016, em virtude de processo já iniciado no STF envolver réus com foro privilegiado. Neste caso, eu sou contra transferir para a 1a. instância um processo já iniciado, porque é mais uma forma de desperdício de dinheiro público, além de aumentar muito a chance de prescrição, pelo acréscimo de tempo, já que o novo juiz tem que tomar ciência de tudo que já foi feito.
3) Indivíduos sem foro privilegiado acusados de crimes que não envolvem júri: processos correm na 1a. instância.
Se o indivíduo não tem um bom advogado, muitas vezes, ele fica preso por um bom tempo antes do julgamento, mesmo sem base legal para isso,
A base legal para a prisão antes da condenação são agrupadas no conceito de prisão cautelar.
A prisão cautelar se desdobra em prisão temporária, (Lei nº 7.960/89 que estabelece, exceto no caso de crimes hediondos, uma duração de 5 dias prorrogáveis por mais 5 dias ); prisão em flagrante (artigos. de 301 a 310 da CPP) e prisão preventiva, tratada nos artigos de 311 a 316 do CPP).
Particularmente, no caso da prisão preventiva, que pode ter duração indeterminada, o artigo 314 do CPP diz que “o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.”, desde que o tipo do réu se enquadre no que estabelece o caput do artigo 313 com seus incisos.
Em outras palavras, a justificativa precisa se referir à possibilidade do réu interferir no curso do processo ou que ele se constitua uma ameaça continuada ou que apresente risco iminente de fuga, e não apenas a uma eventual grande probabilidade de culpa do réu, em um dos crimes pelo qual ele está sendo acusado, como deixa claro o artigo 313 § 2º: ” Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia.”. Note que claramente este não é o caso da grande maioria dos réus da invasão do STF de 8 de janeiro, que estão presos preventivamente há um bom tempo.
Se o indivíduo tem acesso a um bom advogado é possível que o processo vá até a última instância ( STF, TSE ou STM). No caso do STF são no total 4 instâncias.
No caso de crimes de colarinho branco com um bom advogado, até 2020 era provável que o réu nunca chegue a ser preso, uma vez que a pena de cada crime isolado é pequena e, portanto, as prescrições em anos são curtas; fora que as prescrições não se somam quando o indivíduo esteja sendo acusado de vários crimes. E isto tudo será agravado quando o conceito de juiz de garantias estiver plenamente implementado, já que muitos processos terão que ter 2 juízes em períodos diferentes.
Eu disse acima até 2020, porque, ao pesquisar mais à fundo para escrever este artigo, levantei que, desde 2020, o novo entendimento do art. 117 do Código Penal, definido pelo STF, determina que o prazo de prescrição também reinicia a contar após a publicação da sentença em 2a. instância (algum dos TRFs), mas não em recurso negado na 3a. instância (STJ), o que torna a prescrição bem mais difícil, especialmente se um dos crimes envolver algum pena de 5 anos ou mais, que gera um prazo prescricional de 12 anos (art. 109 do CP).
4) Indivíduos sem foro privilegiado acusados de crimes que envolvem júri, que basicamente incluem crimes dolosos contra a vida: tribunal de júri, com prisão imediata após a condenação agora reconhecida pelo STF .
Obviamente um bom advogado pode fazer a maior diferença, porque é possível, com muito talento, que se consiga manipular o júri de forma que ele termine inocentando um réu que efetivamente cometeu um crime.
Só que esta interpretação diverge quando se compara a crimes que não envolvam júri, que deveria, até o momento atual, ir até a última instância.
Existe uma ginástica interpretativa do STF que afirma que o júri equivale a um julgamento pela sociedade, mas esta afirmação é totalmente interpretativa, se isto não está expresso em lei.
Vamos retroceder e comparar o que diz a CF e o CPP sobre isso.
O primeiro ponto é a interpretação do termo “trânsito em julgado” presente no artigo 283 do Código de Processo Penal e no artigo 5o. inciso LVII da CF.
CF:
𝐴𝑟𝑡. 5, 𝑖𝑛𝑐𝑖𝑠𝑜 𝐿𝑉𝐼𝐼: 𝑁𝑖𝑛𝑔𝑢𝑒́𝑚 𝑠𝑒𝑟𝑎́ 𝑐𝑜𝑛𝑠𝑖𝑑𝑒𝑟𝑎𝑑𝑜 𝑐𝑢𝑙𝑝𝑎𝑑𝑜 𝑎𝑡𝑒́ 𝑜 𝑡𝑟𝑎̂𝑛𝑠𝑖𝑡𝑜 𝑒𝑚 𝑗𝑢𝑙𝑔𝑎𝑑𝑜 𝑑𝑒 𝑠𝑒𝑛𝑡𝑒𝑛𝑐̧𝑎 𝑝𝑒𝑛𝑎𝑙 𝑐𝑜𝑛𝑑𝑒𝑛𝑎𝑡𝑜́𝑟𝑖𝑎
CPP:
𝐴𝑟𝑡. 283 – 𝑁𝑖𝑛𝑔𝑢𝑒́𝑚 𝑝𝑜𝑑𝑒𝑟𝑎́ 𝑠𝑒𝑟 𝑝𝑟𝑒𝑠𝑜 𝑠𝑒𝑛𝑎̃𝑜 𝑒𝑚 𝑓𝑙𝑎𝑔𝑟𝑎𝑛𝑡𝑒 𝑑𝑒𝑙𝑖𝑡𝑜 𝑜𝑢 𝑝𝑜𝑟 𝑜𝑟𝑑𝑒𝑚 𝑒𝑠𝑐𝑟𝑖𝑡𝑎 𝑒 𝑓𝑢𝑛𝑑𝑎𝑚𝑒𝑛𝑡𝑎𝑑𝑎 𝑑𝑎 𝑎𝑢𝑡𝑜𝑟𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒 𝑗𝑢𝑑𝑖𝑐𝑖𝑎́𝑟𝑖𝑎 𝑐𝑜𝑚𝑝𝑒𝑡𝑒𝑛𝑡𝑒, 𝑒𝑚 𝑑𝑒𝑐𝑜𝑟𝑟𝑒̂𝑛𝑐𝑖𝑎 𝑑𝑒 𝑝𝑟𝑖𝑠𝑎̃𝑜 𝑐𝑎𝑢𝑡𝑒𝑙𝑎𝑟 𝑜𝑢 𝑒𝑚 𝑣𝑖𝑟𝑡𝑢𝑑𝑒 𝑑𝑒 𝑐𝑜𝑛𝑑𝑒𝑛𝑎𝑐̧𝑎̃𝑜 𝑐𝑟𝑖𝑚𝑖𝑛𝑎𝑙 𝑡𝑟𝑎𝑛𝑠𝑖𝑡𝑎𝑑𝑎 𝑒𝑚 𝑗𝑢𝑙𝑔𝑎𝑑𝑜.”
Ainda que o Código de Processo Penal não estabeleça formalmente o conceito de “trânsito em julgado” é de conhecimento geral que o termo se refere a um momento que não cabe mais recurso, como está explicitado no artigo 508 do Código de Processo Civil. O curioso é que o termo aparece na Constituição, mas é definido apenas no CPC. Ou o termo deveria ser tirado do CPC e prevalecer o conceito da doutrina do direito, ou deveria estar também no CPP , já que o conceito que vale para um tipo de processo, não necessariamente vale para outro tipo de processo. se não houver nenhuma nuance, que eu creio ser o caso, a conceituação de “trânsito em julgado” deveria estar apenas na CF.
No entanto, como foi ressaltado aqui é possível perceber que a CF conflita com a atual redação do ano de 2019 do art. 283 do CPP.
A CF diz que a culpa definitiva é só a partir do trânsito em julgado, mas nada se refere à questão da prisão, que é citada no inciso LVI do artigo 5o. da CF e diz
𝐿𝑋𝐼 – 𝑛𝑖𝑛𝑔𝑢𝑒́𝑚 𝑠𝑒𝑟𝑎́ 𝑝𝑟𝑒𝑠𝑜 𝑠𝑒𝑛𝑎̃𝑜 𝑒𝑚 𝑓𝑙𝑎𝑔𝑟𝑎𝑛𝑡𝑒 𝑑𝑒𝑙𝑖𝑡𝑜 𝑜𝑢 𝑝𝑜𝑟 𝑜𝑟𝑑𝑒𝑚 𝑒𝑠𝑐𝑟𝑖𝑡𝑎 𝑒 𝑓𝑢𝑛𝑑𝑎𝑚𝑒𝑛𝑡𝑎𝑑𝑎 𝑑𝑒 𝑎𝑢𝑡𝑜𝑟𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒 𝑗𝑢𝑑𝑖𝑐𝑖𝑎́𝑟𝑖𝑎 𝑐𝑜𝑚𝑝𝑒𝑡𝑒𝑛𝑡𝑒, 𝑠𝑎𝑙𝑣𝑜 𝑛𝑜𝑠 𝑐𝑎𝑠𝑜𝑠 𝑑𝑒 𝑡𝑟𝑎𝑛𝑠𝑔𝑟𝑒𝑠𝑠𝑎̃𝑜 𝑚𝑖𝑙𝑖𝑡𝑎𝑟 𝑜𝑢 𝑐𝑟𝑖𝑚𝑒 𝑝𝑟𝑜𝑝𝑟𝑖𝑎𝑚𝑒𝑛𝑡𝑒 𝑚𝑖𝑙𝑖𝑡𝑎𝑟, 𝑑𝑒𝑓𝑖𝑛𝑖𝑑𝑜𝑠 𝑒𝑚 𝑙𝑒𝑖;
Se a palavra fosse “prisão” em vez de “culpa”, estaria expressamente a prisão temporária ou preventiva, o que não é o caso.
Da leitura comparativa entre a CF e o CCP, depreende-se que o artigo 283 do CPP alterou o que diz a própria CF, pois esta não proíbe expressamente prisão antes da culpa estar definitivamente estabelecida.
Sendo assim, resta espaço para o CPP ser modificado, sem ferir o texto corrente da CF.
No caso, seria incluir no CPP a provisão para que, em julgamentos sem júri, a prisão aconteça após a condenação em 2a. instância , já que esta é um colegiado de juízes (desembargadores) ao contrário da 1a. instância. No caso de julgamentos com júri, a prisão deve se dar logo após a condenação por júri (já que isto é mais sólido do que um julgamento de um único juiz) .
Além disso, obviamente é preciso ainda alterar novamente o artigo 283 do CPP para não conflitar com a CF.
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No final, o resumo é: acusados de crime de colarinho branco tendem a ficar soltos (embora desde 2020 será um pouco mais complicado pelo detalhe, descrito acima, do novo entendimento relativo ao reinício da contagem do prazo prescricional) , acusados de crime comum tendem, em muitos casos, a serem presos, mesmo ilegalmente e, finalmente, alvos específicos serão julgados e presos rapidamente, muitas vezes em prisões preventivas intermináveis e, em geral, não previstas em lei.