Opinião

1968 – o ano em que quase fui parar nos porões da ditadura

Eu tinha 16 anos, e a minha curiosidade adolescente sobre a doutrina anarquista, despertada pelos acontecimentos da “revolta de maio” em Paris, por pouco não me botou numa cilada de proporções trágicas. Vale dizer que eu não era militante de porra nenhuma, apenas um nerd com fome de conhecimento.


Um dia fui na casa de um amigo e o pai dele, ex-comunista arrependido, tinha um livro de Piotr Kropotkin, o guru do anarquismo. Enchi o saco dele até que aceitou me emprestar. Era um “tijolo” que mal cabia na pasta do colégio, mas dei um jeito de acomodá-lo. Este detalhe talvez tenha salvo a minha pele. Saí de lá no início da noite e, embora o trajeto fosse longo, o atleta aqui gostava de caminhar. Para quem conhece Porto Alegre, informo que ele morava perto do parque da Redenção e eu nos Moinhos de Vento.
Vale dizer que, na época, a probabilidade de ser assaltado em Porto Alegre era mínima, mas havia o medo (enorme) da abordagem da polícia. Em principio todo o estudante era suspeito, e eu sabia de várias situações desagradáveis vividas por amigos.


No meio do caminho, aconteceu; um carro da polícia diminuiu a marcha e, jogando o farol em cima de mim, se aproximou da calçada. Fingi que não era comigo e continuei andando conforme o mantra; não tão rápido que pareça uma fuga, nem tão devagar que pareça provocação. Meu visual também ajudava; magrelo, cabelo curto, sem barba, óculos fundo de garrafa, enfim, nenhum sinal exterior de rebeldia.


Os caras devem ter me achado muito inofensivo e ouvi, aliviado, o carro se afastando. Quando ajeitei a pasta pesada no braço, a ficha caiu; o livro, porra! Carregar um livro sobre anarquismo me tornava um subversivo perigoso, inimigo da pátria e da família brasileira. Um lobo em pele de cordeiro. Era dali direto pra delegacia e só Deus sabe o que poderia acontecer. A caminhada virou agonia, e minha pulsação só voltou ao normal quando cruzei a porta de casa são e salvo.
Até hoje, mais de meio século depois, penso no que teria acontecido se eu fosse revistado. Ia sobrar para mim, para meus pais, para o pai do meu amigo, talvez eu nem estivesse aqui.


A moral da história é simples; não se deixe enganar por sereias totalitárias, o melhor regime é o que dá ao individuo o direito de se informar e opinar livremente, sem medo de represálias. E os inimigos da liberdade incluem desde as viúvas da ditadura militar até as do Fidel Castro, passando por fanáticos religiosos de todas as seitas e também os neuróticos inquisitoriais do tal “politicamente correto”. Todos iguais na ânsia de censurar a informação e calar os possíveis opositores. Mesmo que seja apenas um inocente estudante em busca de novos conhecimentos.
Concluindo, acho que o Brasil saiu da treva absoluta, mas ainda estamos muito longe da luz. E a mudança só depende de nós.

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

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