Opinião

A cultura do cancelamento está cancelando a cultura. A ignorância agradece

Como sempre acontece com as grandes tragédias, tudo começou com pequenos sinais. Os causos que vou relatar a partir de agora, estão em ordem cronológica. E são todos rigorosamente verdadeiros.

Causo 1 – A aluna que odiava Mandela

Em 2006 eu estava ministrando uma aula sobre liderança em um MBA e citei Nelson Mandela (ainda vivo, na época), como um grande exemplo. Havia alguns angolanos na turma, e uma moça mostrou-se particularmente incomodada com o que falei. Pediu a palavra e, agressivamente, disse que “Mandela não é bem isto que o senhor está a dizer”. E baixou a porrada; disse que a atitude de Mandela era servil, que ele não devia perdoar os brancos, e otras cositas mas. Tive que ter muita habilidade para lidar com a situação, afinal a patrulha “politicamente correta” ainda não tinha chegado ao nível inquisitorial de hoje mas já era forte, e se eu reagisse no mesmo tom correria o risco de aparecer no Jornal Nacional no dia seguinte (algo como “professor alemão nazista humilha e agride aluna africana”, ou talvez pior). Prudente, optei por uma retirada estratégica do tipo “respeito a sua opinião, afinal você vive na África e pode ter uma percepção diferente da minha” e passei, rapidamente, para o próximo item da aula. Mas fiquei impressionado com a convicção da jovem; ela queria ver sangue. Chamar prá conversar, como fez Mandela, era para os fracos. Mal sabia eu que isto era só o começo…

Causo 2 – Não queremos resolver, queremos lacrar

Tenho um amigo que é da geração dos meus filhos (faixa dos quarenta) e exerce um papel de liderança em algumas atividades relacionadas à preservação da cultura africana no Rio de Janeiro. E aconteceu que uma destas atividades (se não me falha a memória um show musical na Lapa) foi proibida pela prefeitura. Meu amigo conseguiu uma audiência com o próprio Prefeito Crivella, e saiu de lá com um acordo que permitiu a volta da atividade. Para comemorar o sucesso da negociação, postou no Facebook uma foto dele ao lado do Crivella, assinando o acordo. Infelizmente, a reação de muitos amigos dele foi de crítica, tipo “você, tirando foto do lado deste (****), que vergonha…”.  Fiquei tão impressionado que coloquei um comentário defendendo, afinal Crivella era o prefeito eleito da cidade e negociar com ele era o único jeito de resolver a situação. Não levei muita paulada mas fui meio ignorado, tipo “o que este alemão tá fazendo aqui?”. Achei que as coisas não tinham como piorar. Sabe nada, inocente!

Causo 3 – Onde houver trevas, que eu leve a escuridão

Dia do professor, 15/10/19. Entre várias mensagens repassadas “mais do mesmo” sobre a importância dos mestres, uma me chamou a atenção. Um meme com um quadrinho em que uma “professora” dizia que “Se eu descobrir que algum aluno meu votou no Bolsonaro, eu jogo um livro na cabeça dele”. Nos comentários, vários “kkkk” até de conhecidos meus. Fiz questão de me posicionar, afinal entendo que, nem como piada, é aceitável a proposta de que é direito de um professor agredir fisicamente um aluno só porque tem uma posição política diferente. Recebi alguns apoios (tímidos), mas também algumas respostas malcriadas. Uma delas foi inesquecível, por ter vindo de um ex-colega de Petrobras, da minha idade, engenheiro com uma respeitável história na empresa; “Hervé, bolsominion não raciocina. Pode até ser que a pancada faça o cérebro dele começar a funcionar, kkk”. Preferi não levar o assunto adiante, mas senti que a coisa tava indo de mal a pior.

4 – O dia em que a Natura me lacrou

No dia dos pais de 2020, a Natura usou como símbolo da campanha o transexual Thammy Miranda. Achei uma idéia interessante, estamos em tempo de quebra de preconceitos e, certamente, se me permitem uma concessão rápida à baixaria explícita, pai é muito mais do que o sujeito cujo pinto nos gerou; é quem dá carinho e orientação. Coloquei um comentário favorável no Linkedin e, quando alguém vindo diretamente do Neandertal me respondeu que “quando era mulher até filme pornô a Thammy fez”, respondi que não interessa o que ele ou ela fez antes; o que vale é que hoje é um pai modelo. Simples assim.

A história deveria ter acabado ali. Só que a própria porta-voz da Natura, que assinava o post original, fez questão de me responder. Sem muita sutileza, a moça escreveu algo do tipo “agradecemos o seu apoio, mas não esqueça que nunca deve se referir a ele como “a” Thammy; é “o” Thammy, entendeu?”. Ou seja, a moça não queria apoio; exigia submissão total. Se não seguir a minha regra, você é um machista porco como qualquer outro. Ainda pensei em argumentar dizendo que estava me referindo ao período em que ele era mulher, mas senti que não valia a pena. Guardei minha viola no saco, como diria meu avô.

Epílogo – meu ódio será tua herança

Resumindo, cada vez mais o ambiente é de ódio, e o mais triste é que o lado que, supostamente, quer o fim dos preconceitos e deveria agir de forma mais ponderada, se deixou contaminar. E é triste, porque uma mudança cultural só acontece quando se tem atitudes e propostas novas, a história prova isto. Por exemplo, achar que proibir a exibição do filme “E o vento levou” vai ajudar a causa dos negros é confiar muito pouco na inteligência alheia; é muito melhor deixar o pessoal ver o filme (que é muito bom, por sinal) e entender que aquela situação existiu mas não vai mais existir, porque negros e brancos inteligentes não vão deixar que isto aconteça. Só que dizer que brancos não tem “lugar de fala” (ou seja, têm mais é que calar a boca), é apenas substituir um preconceito velho por um novo.

Neste mar de ódio, pessoas assumidamente grosseiras como Trump e Bolsonaro nadam de braçada. Porque esta postura incoerente e, por vezes, até arrogante dos “anti-racistas” e/ou “anti-homofóbicos” salta aos olhos. Neste ponto, a idéia de banir Trump do Facebook foi um tiro no pé, porque acaba dando a ele uma relevância que ele não tem. Porque no campo das idéias, que é o único que sobra no final, é muito fácil vencê-lo. Só que para isto temos que adotar o discurso de gente inteligente como Martin Luther King e Mandela, entre outros, e nunca o extremismo radical e obtuso de querer combater fogo com fogo.

Concluindo com poesia, como eu gosto, vale lembrar os inspirados versos de Ronaldo Bôscoli em “Tributo a Martin Luther King”; “luta negra demais, é lutar pela paz, para sermos iguais”.

Que a luta seja pela paz. Porque somos iguais.

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

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2 Comentários

  1. Excelente o texto e, infelizmente, retrata muito bem para onde estamos indo como sociedade. O pior de tudo é que muito provavelmente este é um caminho sem volta.

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