Esporte

O fim do torcedor-de-sofá raiz

De tanta reclamação do monopólio da TV Globo nas transmissões do futebol no Brasil, vivemos hoje, ao mesmo tempo, uma oferta infinita de opções de canais e um apagão de jogos. Os clubes comemoram, mas o torcedor...

Viva a concorrência! Pelo fim dos monopólios! FlaGlobo só transmite o queridinho! Corinthians sempre privilegiado! Chega de assistir jogo na Globo! Saudade do Show do Esporte da Band!

O torcedor-de-sofá raiz desde sempre esbraveja impropérios como esses. Eu me incluo no meio.

O monopólio global começou a se desenhar há muito tempo.

Em 1987, em meio a uma bagunça generalizada na CBF, os grandes clubes brasileiros se uniram como nunca antes, formaram o Grupo dos 13 e decidiram realizar o campeonato brasileiro sem interferência da entidade máxima. Viraram a mesa, definiram o grupo principal (o que seria a série A hoje) somente com 16 times (o Grupo dos 13 acrescido dos “convidados’ Coritiba, Santa Cruz e Goiás). Estava criada a Copa União.

O vice campeão brasileiro do ano anterior, Guarani, foi rebaixado na canetada, o Atlético-GO, que havia conseguido se manter “na elite” dentro de campo (a regra era que os 28 melhores colocados do campeonato de 1986 estariam garantidos no ano seguinte) também foi rebaixado (e só conseguiu voltar à elite 23 anos depois, em 2010).

A Globo comprou a ideia, ganhou a exclusividade de transmissão do grupo principal, chamado módulo verde, e anunciou que teríamos só jogão na TV, só clássico! E eu, na minha adolescência, como milhões de garotos, acreditei na propaganda global e que o futebol brasileiro seria melhor naquele formato, só os grandes jogando e só a Globo transmitindo.

A Bandeirantes ficou com o que sobrou, e investiu em outros esportes, até sinuca com Rui Chapéu passava em horário nobre de domingo. E acho que naquele momento nasceram os torcedores-de-sofá raiz no Brasil.

“XV de Piracicaba x Bauru, diretamente de Limeira” – piada célebre do extinto programa Casseta e Planeta – era evento clássico na Band, disseminando a ideia de que era importante passar esportes na TV, quaisquer que fossem.

Luciano do Valle era um visionário. Alavancou diversos esportes no Brasil. Alimentou o torcedor-de-sofá raiz durante décadas. É claro que teve custo, o futebol, por exemplo, foi perdendo público nos estádios.

E quando surgiam oportunidades, a Band não desperdiçava. O campeonato italiano com Gullit, Van Basten, Maradona, Careca, Lottar Matheus, era na Band. A NBA com o Bulls de Michael Jordan também.

O campeonato alemão era na TV Cultura.

A Globo, percebendo o risco, passou a adquirir todos os direitos de transmissão, principalmente com o advento da TV a cabo. Repassava como bem entendia alguns jogos para a Band e outros canais, mas o filet mignon era só na Globo ou nos canais pagos do grupo.

Com o tempo, até o filet mignon passou a ser somente transmitido na TV paga, e, depois, no pago do pago (o hoje Canal Premiere).

Numa jogada nunca esclarecida, depois de termos um Globo Repórter inteiro mostrando denúncias contra a CBF, a Globo ganhou a exclusividade de transmissão, tanto em TV aberta quanto fechada, da Copa de 2002, e nunca mais ouviu-se um pio no Jornal Nacional sobre as acusações feitas naquele programa.

Pronto, campeonato brasileiro e copa do mundo passaram a ser exclusivos da Globo, com algum repasse para a Band ou Record, somente pra “inglês ver” e não haver reclamações do possível monopólio.

O torcedor-de-sofá raiz passou a ter que desembolsar uma grana boa para poder ter à disposição tudo de futebol e de outros esportes, pois teria que adquirir o canal fechado pago mais o premiere (pago do pago). Não é e não era barato.

Mas tinha um lado bom, todos os jogos do campeonato brasileiro e principais estaduais eram transmitidos, todos da série A e série B. Os campeonatos estaduais também foram valorizados (pelo menos na TV), as afiliadas da Globo passaram a transmitir o torneio do próprio estado de origem.

Campeonatos europeus migraram para os canais ESPN.

Então, no fim das contas, estava preservado o conforto do torcedor-de-sofá raiz, tendo, obviamente, que pagar mais por isso.

Em 2008, com a queda de Eurico Miranda e esvaziamento de poder do Clube dos 13, a Globo “incentivou” os clubes a negociarem de forma independente.

Na época, entendo que a Globo apostou corretamente que não haveria concorrência, mesmo com uma bravata da REDE TV anunciando comprar todo o pacote do brasileiro.

Realmente não houve concorrência. Todos os times correram para os braços da plim plim.

E a Globo fez o que muitos temiam. Os contratos de Flamengo e Corinthians eram de valores muito superiores aos demais.

Fazendo um aparte no futebol, a TV Record conseguiu quebrar a bolha global, quando teve a exclusividade da Olimpíada de 2012, em Londres, pela TV aberta. Na época eu estava sem TV paga e pensei que a Record iria usar e abusar dessa exclusividade, transmitindo até badminton.

Mas fizeram o inverso, usaram o padrão global, e selecionaram pontualmente os eventos (e com critérios discutíveis).

Tanto a judoca Sarah Menezes, quanto a pentatleta Yane Marques foram desprezadas nas suas campanhas. Na estreia de Sarah tive que me contentar com sermões de pastores, e no caso de Yane, foi pior, a transmissão só entrou ao vivo no finalzinho da última prova. Ambas eram favoritas à medalha. Sarah foi Ouro e Yane bronze.

Naqueles dias, perdi a fé que a concorrência com a Globo iria fazer bem ao torcedor-de-sofá raiz.

Voltando ao futebol, após uma década da negociação individual com os clubes, a Globo começou a perder espaço justamente onde menos achou que perderia, pois uma rebelião no “baixo clero” iniciou uma debandada que ligou o sinal de alerta na emissora tarde demais.

Times como Coritiba, Fortaleza e Athlético negociaram a transmissão do campeonato brasileiro em canal fechado pago, o esporte interativo (agora com a TNT da Turner), e ai o negócio pegou fogo.

Os contratos da Globo eram amarrados para que, caso um time isoladamente não aceitasse sua oferta, ficaria sem poder transmitir seu jogo, pois a transmissão teria que ser consentida por ambas as equipes.

Só que o grupo dos rebeldes foi aumentando e a Turner passou a transmitir muitos jogos, tendo o direito de transmissão de ambos os clubes envolvidos, acabando com o produto único premiere e também prejudicando o aplicativo Cartola que a Globo investe há algum tempo.

E ai aconteceu o apagão. Jogos em que um time tem contrato com a Globo tanto na TV aberta quanto na fechada, e o outro time tem contrato de TV fechada com a Turner, poderiam não ser transmitidos, caso não fossem escolhidos na TV aberta previamente, como foi o caso de Vasco 1 x 0 Athlético, em que voltamos à era do rádio.

A solução, dizem os clubes, é a Lei do Mandante.

Pois bem, pela Lei do Mandante, o clube mandante é que tem o direito de transmissão do evento, não importando o time adversário.

Teremos, então, muito em breve, o fim do torcedor-de-sofá raiz, e explico:

Você é torcedor do São Paulo, mora fora de São Paulo, e quer acompanhar seu time na TV. Comprará o pacote do São Paulo e terá direito, no caso do Brasileiro, aos 19 jogos em que o clube é mandante. Os 19 jogos em que é visitante você comprará jogo a jogo, à parte (é claro que o valor inviabilizará seu desejo).

E no caso de morar em São Paulo, gosta de ir frequentemente ao estádio, então não vai comprar o pacote do São Paulo, mas quer assistir os jogos fora de casa. Terá que comprar os pacotes dos outros times (evidentemente não pagará o pacote do rival).

Você, como milhões de torcedores, torce para um time “grande” e o do seu estado. Compra o pacote do time grande, e do time do seu estado, tendo direito somente à metade da temporada. Difícil.

Meu time de coração do meu estado natal é o Vila Nova – GO, atualmente na série C. As transmissões estão ocorrendo nos Canais DAZN e no aplicativo MyCujoo.

Agora, imagina você, torcedor das antigas, acostumado ao sofrimento inerente ao Vila Nova – GO (típico time raiz onde só torce quem tem exame periódico semestral de coração e de pressão) ter que adquirir dois planos de transmissão dos jogos. Imagina se forem mais planos. Já não basta carregar a cruz e torcer pelo glorioso Tigrão da Vila famosa? Temos ainda que ir atrás de quem transmite, desanimador.

E times da série A poderão vender seus pacotes para 5, 6 TVs diferentes (Fora Globo!), e, portanto, se você quer ter à disposição desde Flamengo x Palmeiras, até XV de Piracicaba x Bauru, terá que pagar muito dinheiro. Não irá pagar.

Quer acompanhar toda a temporada do Mengão? Terá que comprar o pacote rubro negro com os 19 jogos em que é mandante, mas para os 19 jogos fora de casa, em que clubes de menor expressão irão vender a partida como sendo “o jogo do ano”, o preço será especial, bem salgado mesmo.

Os clubes, quase que em unanimidade, aplaudem a Lei do Mandante, me lembrando a Copa União em 87. Mas e o torcedor? Dane-se o torcedor, ele é sempre lembrado como o maior patrimônio do clube mas é o menos prestigiado.

Meu filho de 4 anos, quando não quer fazer alguma coisa, fala pra mim, imitando minha fala:

– Papai, estou com dor de coluna.

Então, ao invés de comprar um sofá novo, anunciarei muito em breve o abandono do agora seleto grupo do torcedor-de-sofá raiz.

E hoje tem Seleção! A Globo não transmite, nem outra TV aberta (contrariando a Lei Pelé), mas ninguém liga, chega de Galvão Bueno!

Viva a concorrência!

Vinícius Perilo

Vinícius Perilo, 47 anos, é engenheiro civil apaixonado por todos os esportes. Tudo começou no Ursinho Misha em Moscou 80, e, a partir daí, acompanhando ídolos como Oscar, Hortência, Bernard, Jacqueline, Ricardo Prado, Joaquim Cruz. Ama futebol como todo brasileiro, faz parte da geração que chorou de tristeza a derrota de 82 e de alegria com o Tetra em 94. Realizou um sonho de criança e conduziu a Tocha Olímpica para a Rio 16. Ainda acredita no Brasil olímpico.

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