Filosofia de boteco

Os pesadelos do engenheiro

Faltam 10 minutos para acabar a prova. Cheguei atrasado, nem sei o porquê, e agora tenho que correr contra o tempo. Eu sei resolver as questões, mas o nervosismo se apodera da alma, me dá um frio na barriga e eu fico estático, não consigo colocar as ideias no papel, estou travado. Passam os minutos, ao perceber que não vou conseguir, aumenta o calafrio. Se eu não terminar essa prova, não me formo. Simples assim, cinco anos de luta e um trágico desfecho! Por que me atrasei logo para a última prova? Por que não consigo escrever o que sei? A sensação é desesperadora, o tempo está acabando, no meu pensamento a ideia de que não me formarei nunca. Acordei. Alívio.

Chegou o grande dia. A última batalha. Abro a prova. Bato o olho nas questões. Inexplicavelmente, não sei nada. Releio tudo, parece chinês para mim. Como é possível? Nunca vi o assunto! Rabisco qualquer coisa, sem significado. Aflito, lembro-me que aquele ‘zero’ impedirá minha graduação. No auge do desespero, acordo. Alívio.

Na data da cerimônia de formatura, recebo o aviso inusitado de que faltou uma matéria. Não vou me formar. Como assim? Não há maiores explicações, apenas de que me esqueci daqueles quatro créditos. O pior é que eles somente serão oferecidos dali a um ano. Perderei meu emprego, não posso ser um estagiário para sempre. E agora? O que eu vou fazer? Como vou avisar aos meus pais que aquela festa não é minha? Para meu alívio, acordo. Há mais de vinte anos que estou formado. Ufa!

Tranquei a faculdade. Quero retomá-la, mas não consigo. Emburreci. Já não estou em forma para o cálculo, teoria eletromagnética, princípios de telecomunicações, a lei de fourier, o nabla. Maldita hora em que resolvi dar um tempo. Sinto-me um incapaz. Uma sensação de frustração se apodera dos meus pensamentos. Sou um bosta! Um barulho no quarto e eu acordo. O alívio é compensador…

Ao longo dos últimos 23 anos tenho pesadelos esporádicos na linha do que eu descrevi acima. É verdade que eles eram mais frequentes nos primeiros dez anos após a minha graduação, e foram rareando com o tempo. Rarearam, mas não desapareceram. Ocasionalmente, lá estou eu, não me formando por alguma razão.

Descobri que muitos colegas de turma vivem a mesma experiência. Talvez tenha sido um trauma coletivo. O mais interessante é que nos cinco anos em que cursamos Engenharia Elétrica na Unicamp, esse não era um cenário factível. Apesar das dificuldades, que não eram poucas, avançávamos, mas não havia o medo de não se formar.

Hoje, a saga do formando me aparece em pesadelo uma ou duas vezes por ano. O despertar é extraordinário, por razões óbvias. Os detalhes do sonho se perdem nos minutos seguintes, mas as sensações ficam. E de tanto repetí-los, decorei os roteiros. O objetivo dessa crônica é expiar esses ‘demônios’. Quem sabe agora, eles cessem. A outra opção é conviver com esse carma até o fim dos meus dias. Enquanto estiver acordando, eu aguento…

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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4 Comentários

  1. Quando jovens universitários não havia o medo de não se formar é porque os jovens não conhecem a neura de alguns adultos!

  2. Meu relato:
    Sou formado em arquitetura e tambem tinha eventualmente esse pesadelo!
    Ironia: com materias “tecnicas”, com cara de engenharia civil:
    Fundações, hidraulica, estrutura…
    E, uma vez, também tive o pesadelo de no dia de uma das matriculas anuais a funcionaria da secretaria me avisar que faltou alguma matéria…

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