Violência: não é o que parece
Aprendi na minha vida, que dados estatísticos, quando bem coletados, analisados e interpretados, falam muito mais alto do que casos isolados, relatos de vizinhos e amigos, noticiários de TV e reportagens da grande imprensa.
Ao me deparar na grande imprensa com a notícia envolvendo o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, referente ao grande número de mortes de “civis” decorrentes de ações policiais por lá, vi depois uma postagem mostrando que São Paulo em 2023 teve o índice de mortes por habitante abaixo da vasta maioria dos estados, inclusive a Bahia governando há mais de 20 anos pelo PT, por grande diferença. “Civis’ se referem a qualquer pessoa fora da força de segurança que está realizando alguma ação nas ruas, incluindo mortes por bala perdida.
Pesquisando, me deparei com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, que tem 404 páginas em um PDF.
O que se aprende é que invariavelmente a realidade se sobrepõe a qualquer ideologia e, sobretudo à polarização contra ou a favor.
A grande verdade é que no mundo real não tem “ismo”, tudo é multifatorial ao extremo, resistindo a qualquer tentativa humana de reduzir tudo a uma causa e atribuir tudo aos governantes. Isso também vale para a Economia, enfim, tudo que é relacionado à nossa sociedade.
São Paulo é o campeão de pessoas mortas por policiais?
Bem, a resposta é um sonoro não. Longe disso!
Aqui não vale olhar números absolutos (embora nem assim seria o caso), é preciso dividir pela população, para se ter uma ideia relativa.
Se fôssemos olhar número absolutos, o estado mais violento do Brasil como o Amapá, seria o 4º. estado mais tranquilo do país, quando a realidade é justamente o oposto disso!
Vejam que o Amapá, é disparado o primeiro estado do país, com 236 mortes por 100 mil habitantes. Bem, o Amapá é um caso a parte e será citado novamente abaixo. A Bahia está em segundo com 12 por 100 mil, estado há 20 anos governado pelo PT e o mesmo estado que executou o famoso ex-policial Adriano da Nóbrega evadido do Rio de Janeiro.
São Paulo parece quase na lanterninha com 1,1 por 100 mil, enquanto o Rio do Claudio Castro está em 7º com um nível quase 5 vezes maior. sendo o 1º. do Sul Maravilha (Sul e Sudeste). Minas é o segundo estado do com o menor índice (0,7 por 100 mil habitantes) e o primeiro da região sul e sudeste.
São Paulo tem a melhor polícia do Brasil?
Uma narrativa que rola em dos lados do espectro ideológico, é que o Estado de São Paulo tem a melhor polícia do país. Bem, se você analisa pela ótica do crime praticado, isso não se verifica.
Aqui não examino aspectos técnicos como salário, estrutura e equipamentos da polícia, e nem o uso de inteligência e infiltração na investigação policial e taxa de solução de crimes. Apenas considera-se aspectos estatísticos ligados a números de crimes praticados por categoria.
De fato, se você olhar homicídios dolosos por 100 mil habitantes, São Paulo é o estado menos violento do país: o índice em 2023 ficou em 6,9 por 100 mil habitantes, o melhor do país, sendo Amapá o último com 42,4 por 100 mil habitantes, comparável ao índice da África do Sul.
Homicídios dolosos ou assassinatos intencionais, são os assassinatos em que há intenção de matar a vítima, com ou sem premeditação (planejamento). Esse tipo de assassinato se contrapõe ao homicídio culposo, em que não há intenção de matar, como o caso da mãe que deixa por acidente o filho se afogar na piscina.
O termo mais genérico que existe, na terminologia brasileira, é MVI (Mortes Violentas Intencionais), que inclui 5 categorias: homicídios dolosos, latrocínios, lesão corporal seguida de morte, policiais civis e militares mortos em decorrência da função e civis mortos por forças de segurança.
O valor de 6,9 por 100 mil é, de fato, um bom índice, apenas um pouco acima do índice dos EUA de 2023 (5,9), que anda em queda, embora bem acima da Inglaterra e País de Gales (England e Wales) que registrou apenas 583 homicídios no ano terminado em março de 2024, o que corresponde a 0,96 homicídios dolosos (intentional homicides) por 100 mil habitantes.
Para uma pessoa, da classe média para cima, que não passa por certos lugares quase em guerra (como faz pessoas que eu conheço), não tem desavenças pessoais proeminentes, nem crime passional no horizonte e para mulheres, que não se aproximam de lugares onde há maior risco de estupro praticado por desconhecidos, o medo extremo se resume a latrocínios (roubo ou tentativa de roubo seguido de assassinato e estupro cometido por pessoas conhecidas, no caso de mulheres).
Latrocínios é a justificativa justa do medo.
Latrocínio se refere a um assalto ou tentativa de assalto, que resulta no assassinato de 1 ou mais de suas vítimas. No Brasil, não está enquadrado como homicídio doloso (apesar de ser, de certo modo, pelo conceito do termo).
Latrocínio, quando há relevância estatística e roubo (consciente que existe a subnotificação) são os melhores indicadores para mensurar o medo para todos (o estupro é mais específico das mulheres) mas particularmente para quem é de classe média para cima e não precisa viver ou circular em áreas mais deflagradas. Para quem não pode se permitir a isso, é preciso adicionalmente temer também a violência das facções, das batidas policiais e das balas perdidas, além da coação das facções.
O uso de latrocínios (com a ressalva que isso depende do nível “violência” implícita dos atos, que tem a ver com o tipo de criminoso), é algo prejudicado pela questão de relevância estatística, se o número de latrocínios em um dado estado é muito pequeno.
Observe que São Paulo e Rio tem empate técnico (1 para cada 250 mil habitantes por ano) sendo respectivamente o 8o. e o 9o. do país. O estado com menos latrocínios per capita é Santa Catarina com 1 latrocínio para cada 630 mil habitantes, 2, 5 vezes melhor que São Paulo. Já os estados mais pesados são Tocantins, Roraima, e Amapá, este com 1 latrocínio para cada 56 mil habitantes, São Paulo está 4,4 vezes melhor que Amapá.
Veja ainda como é alta a proporção de latrocínios perante o total de homicídios dolosos em São Paulo (apenas 14 homicídios para cada latrocínio, quando comparada ao Rio (1 latrocínio cada para 50 homicídios dolosos) refletindo o baixo clima de conflagração entre facções em São Paulo perante o Rio, pelo amplo domínio territorial do PCC no estado paulista.
Roubos: boa métrica de violência para o cidadão comum
Roubo difere de furto pela violência implícita ou explícita e/ou coação. Já o furto é simplesmente o ato de levar um bem da vítima, sem qualquer violência implícita/explícita ou coação. A pessoa que pega o celular da mão de alguém e sai correndo cometeu um furto simples, não roubo.
A estatística de roubos é interessante porque o número sempre é grande o suficiente para ter relevância estatística. Claro que é contaminado pela subnotificação, em uma escala muito maior do que assassinatos, embora menor do que furtos.
Obviamente furtos (quando não envolve violência ou coação) estão fora deste número, assim como roubos a instituições financeiras.
Santa Catarina é o campeão dos 2 rankings no sentido de não violência: há apenas 1 roubo para cada 1.300 habitantes e baixo nível de latrocínios.
Em roubos, SC tem um indicador 14 vezes melhor que o Amapá, o lanterninha dos 2 rankings: 1 roubo para cada 93 pessoas!
E fica claro que Minas Gerais, depois da Santa Catarina, é o que sai melhor no Sul Maravilha (Sul e Sudeste), excetuando a questão do estupro, que Santa Catarina despenca (como veremos abaixo).
São Paulo e Rio estão entre os 8 piores estados. SP (6º. pior) com 1 roubo para cada 156 habitantes e o Rio de Janeiro é o 8o. pior. com 1 roubo para cada 176 habitantes. Maranhão fica no meio dos 2 estados.
Brasília e Espírito Santo estão também um osso duro de roer. Aliás, em empate técnico com São Paulo.
No caso específico de celulares (roubos e furtos), Paraíba e Rio Grande do Sul são os que tem menor índice deste tipo de crime (1 celular para mais de 600 habitantes). Do sul e sudeste, Minas Gerais, Santa Catarina e Rio de Janeiro ainda se posicionam bem, enquanto Paraná e Espírito Santo (especialmente) estão piores.
Nas últimas colocações (piores) estão surpreendentemente São Paulo (1 para cada 150 habitantes), Rondônia, Distrito Federal, Amapá (sempre ele) sendo Amazonas (1 celular furtado para cada 93 habitantes) é o lanterninha.
Dentre as cidades acima de 100 mil habitantes, incrivelmente São Paulo é a terceira cidade com mais celulares roubados e furtados (1 para 56 habitantes) , só atrás de Teresina (1 para 54 habitantes) e Manaus (1 para 48 habitantes). Rio de Janeiro não está nem entre as 50 piores cidades neste ranking de cidades acima de 100 mil habitantes.
Ou seja, fica claro que apesar da fama boa (decorrente da baixa taxa de homicídios dolosos), São Paulo é, de modo geral, uma cidade mais insegura que o Rio, e não o contrário. Por exemplo, o índice de latrocínios (habitantes por latrocínio) em 2023 ficou 7% melhor no Rio do que em São Paulo (Tabela 7, página 42). (Obs.: o número total de roubos das cidades acima de 100 mil habitantes não consta neste atlas).
Conclusões
Em resumo, como eu sempre digo por aí, quando se tira as mortes e feridos ligadas a facções e desavenças pessoais o restante dos assassinatos são bem específicos: crimes passionais (que segue um certo padrão), mortes gratuitas (sem motivos reais, como serial killers) ou decorrente de estupros (muito mais raras do se imagina; como veremos abaixo).
Desse modo, o pensamento recorrente de alguns que a pessoa tem uma chance razoável de morrer em um assalto no Rio e São Paulo é completamente falsa. Ainda mais se a vítima evitar reagir ou fugir.
Afinal, a chance de um latrocínio em2023 ficou mm torno de 1 para 250 mil pessoas por ano. No mesmo ano de 2023 foram 33.743 mortes no trânsito, o que perfaz cerca de 1 morte de trânsito para cada 6.300 pessoas. Ou seja, é quase 40 vezes mais provável morrer no trânsito do que por um latrocínio!
Adendo: há dogmas sobre estupros a serem quebrados
A definição legal de estupro no Brasil é qualquer ato de natureza sexual contra a vontade da vítima. No caso da pessoa alcoolizada ou drogada ou com menos de 14 anos, é considerado estupro, mesmo com o consentimento da vítima. Tecnicamente, trata-se de estupro de vulnerável.
Relativo a estupros, o ranking do Anuário Brasileiro de Violência não bate muito com as outras métricas. Há considerações culturais importantes. Obviamente não há aqui como computar estupros sofridos pela mesma vítima, assim como é o caso dos roubos. Aqui também está incluído estupro de vulneráveis, qualquer intercurso sexual com menor de 14 anos.
Também há um problema seríssimo de subnotificação nos números de estupro, o que pode distorcer bastante, já que ela varia estado por estado, conforme elementos culturais específicos.
O pior passa a ser o estado Roraima com 1 cada 516 mulheres, seguido por Rondônia, Mato Grosso do Sul, Amapá (sempre ele) e Acre, locais que também devem ter muitas subnotificações.
O melhor curiosamente é a Paraíba (1 para 3.904), que é quase 10 vezes melhor que a Roraima, mas aí deve atuar uma cultura (extrema?) de subnotificação, que distorce a confiança neste tipo de número.
Minas é o primeiro do Sul Maravilha (Sul/Sudeste) e 3º. lugar geral com 1 para 2,3 mil mulheres.
Rio de Janeiro é o 8º. com 1 para 1,8 mil mulheres e São Paulo é o 10º. m com 1 para 1,7 mil mulheres.
O sul do Brasil representam os piores estados do sul e sudeste, mas a subnotificação deve ser bem baixa: Rio Grande do Sul (1 para 1,2 mil) Santa Catarina (1 para 900) e Paraná (1 para 800). Santa Catarina, o melhor na criminalidade geral, por pouco, não é o pior do grupo.
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Um estudo no Brasil de 2014 (Estupro no Brasil, uma radiografia segundo os dados da Saúde (Ipea, 2014)) aponta que em 7 de cada 10 estupros, o estuprador conhece a vítima, mas aqui não dá para confiar muito, sabendo que a subnotificação de estupros, em caso de conhecidos é maior ainda.
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Nos EUA, o FBI Data Explorer, aponta que de 614 mil estupros nos EUA em 10 anos de dados, em que o tipo de relação entre a vítima e o perpetrador é conhecida, apenas 54 mil não conheciam a vítima de algum modo, o que é cerca de 8,7% do total! (Há mais 109 mil estupros em que o tipo de relação entra a vítima e o estuprador é desconhecido). E se levarmos em conta que a subnotificação quando o autor é conhecido da vítima é maior do que para autores desconhecidos, aí então…
O mesmo FBI Data Explorer levanta que nos EUA em 10 anos, apenas 91 mil estupros dos 723 mil estupros no total há um crime associado. O restante todo deve ser apenas estupros (sem outro crime associado), podendo ter alguns em número não revelado com algum crime associado desconhecido ou ignorado. Neste subconjunto de 91 mil estupros detectou-se assassinato da vítima em apenas 110 casos! É muito, muito pouco, perante a imaginação coletiva das pessoas, a partir de filmes na TV ou no cinema. Representa aproximadamente 1 morte para cada 6.600 estupros. Com certeza, há muito mais suicídios associados.
Relativo a suicídios, um estudo abrangente nos EUA indica que 1 em cada 3 vítimas chegam a cogitar suicídio e 1 em cada 8 chega a tentar. Um estudo cita referência que na Austrália taxa de suicídios em vítimas de estupro é cerca de 11,9 vezes maior que o índice geral. Bem, como na época a taxa de suicídio anual era cerca de 12,1 por 100.000 habitantes, compondo estes números temos quase 1 suicídio efetivo para cada 700 estupros. É muito!
Conclusão Geral
Não é muito fácil chegar a conclusões por aqui. A grande mídia hoje, na média, é muito superficial e enviesada, além de brigada com números e a lógica analítica.
Segurança pública é um tema complexo, e aqui apenas arranhamos alguns números, mas muito longe de dar ao tema a profundidade que merece.
A segurança pública é muito mais multifacetada do que questões em ter ou não a permissão de porte de armas ou número de mortos em ações da polícia.
As facções hoje estão mancomunadas com boa parte das autoridade policiais, que também, aqui e ali, se associam com elas. A passividade acabou há muito. Quando há um confronto entre polícias e bandidos, sequer sabemos se eles estão lutando contra o “mal”, negociando aumento de propina através da coação por violência ou se estão “visitando” uma facção a serviço de outra facção. E, ainda assim, o armamento da bandidagem é bem pesado,
Qualquer que seja a política de segurança, algum nível de confronto será inevitável.
Quanto às mortes de civis, é preciso apurar caso a caso, não dando para opinar de maneira genérica e superficial.
A polícia brasileira está totalmente atrasada em relação aos países desenvolvidos. Falta tudo: armas, equipamentos, veículos, inclusive ações de inteligência, infiltração, ações para quebrar os laços financeiros, e uma fiscalização reforçada nas fronteiras.
Fora que já um problema endêmico de corrupção do corpo policial que, muitas vezes, sobe até aos comandantes de batalhões e secretários de segurança extravasando até para as fiscalizações nas nossas vastas fronteiras.
A verdade é que falta vontade política para lidar com essa questão, que demanda ações muito mais complexas do que confrontos simples.
Aqui no Rio, voltamos a ter regiões fechadas e com toque de recolher. É uma cidade sitiada em muitos bairros.
O melhor meio de desarticular as facções envolve um trabalho de muito longo prazo, que envolve sufocá-los financeiramente e sofisticados esquemas de inteligência e infiltração.
Quanto à questão das drogas, é um tema extremamente complexo. Eu sou favorável à descriminalização do consumo de drogas, porque encher a prisão com consumidores não é a solução para nada, gera mais superlotação das prisões, além de gerar muito sofrimento e ainda produz novos criminosos, a partir de aulas intensivas na prisão.
Pela forma como as facções se organizam, não sou favorável a descriminalizar a venda das drogas, porque hoje os peixes pequenos são uma moeda de troca importante para pegar peixes maiores, ressaltando-se o fato que as facções hoje têm tentáculos muito mais amplos do que as drogas, vendendo serviços de luz, água, telefone, Internet, aluguel e venda de imóveis, proteção, jogos de azar, prostituição etc.
Em muitos lugares vivemos totalmente um clima de narcoestado. O estado oficial tem sua entrada barrada por meios de enormes valões e coisas assim, além de grupos fortemente armados. Quando as forças públicas tapam um valão, eles o restauram imediatamente, para impedir a entrada de caveirões e outros veículos.
Aí na área existe um “governo” paralelo local, que cobras taxas extorsivas para tudo e faz até exerce justiça tosca no local, incluindo sentenças de morte, que são sumariamente exercidas, além de impõe toque de recolher e tudo o mais. A milícia só adotou a droga, de uns anos para cá, como forma de diversificação dos negócios. Nem precisaria.
Complicado…
Paulo,
Um excelente artigo.
Valeu, William, obrigado!
Ótimo artigo! Visão mais ampla dos dados, ao contrário que vemos as informações são bem superficiais ou como como disse bem , algumas vezes enviesados…
Fernando, obrigado.
O impressionante é que não conseguimos ver uma análise mais profunda em nenhum dos veículos tradicionais de imprensa. E nem sempre foi assim.