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Setembro surdo: um exemplo notável!!!

Una história de resiliência e superação

Conheci a Marcela Helena Jahjah no meu perfil do LinkedIn. Sempre muito simpática e espirituosa, interagia nos meus “posts” sobre a pandemia e o algoritmo da rede acabou colocando o que ela escrevia na minha TL. Foi então que descobri que a Marcela tinha surdez profunda nos dois ouvidos desde muito pequena, o que não a impediu de levar uma vida normal, superando e enfrentando os mais diversos preconceitos e a falta de conscientização das pessoas em relação a esse tipo de condição.

Hojje, além dos seus compromissos profissionais, a Marcela é uma ativista da causa de conscientização para uma sociedade inclusiva para os surdos. Há mais de 10 milhões de pessoas com algum grau de surdez no Brasil, dos quais 2.3 milhões com perda severa de audição.

Eu pedi a ela que elaborasse um texto para ser compartilhado aqui no Boteco, contando um pouco da sua história. A Marcela escreve muitíssimo bem, além de ser um exemplo de resiliência e superação em um mundo que geralmente tem dificuldade para incluir aqueles que não seguem o padrão  tido como usual.

Conforme esperado, o artigo ficou excelente. Para ser lido, relido e compartilhado. Parabéns e obrigado, Marcela!!!

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“Desde pequena eu sabia que eu era diferente, mas não sabia bem por quê.

Eu me via igual a todos, mas era tratada diferente. Percebia isso pelo jeito que me olhavam e falavam comigo. Até que, um dia, eu me dei conta do que era: eu não ouvia como os outros.

Eu era uma surda oralizada: fazia leitura labial e me comunicava oralmente com todos, inclusive na escola. Na minha cabeça de criança, eu era “normal”. Os outros é que viam anormalidade em mim, eu não via. Naquela época (tenho 40 anos), surdos eram relegados a aprender língua de sinais, não falar oralmente e estudar em escolas especiais. Uma criança surda em uma escola regular para ouvintes era um fato raríssimo.

Mas não importava o quanto eu tentasse ser como as outras crianças, eu não era. Lembro de uma vez que me falaram: “Você não pode brincar com a gente, porque você é surda.” Eu fiquei pensando: “Mas eu não sou igual a elas?”

Claramente eu não era.

Outros coleguinhas estranhavam: “Se você é surda, como você é capaz de falar?”

Outros tiravam sarro do meu “sotaque de surda” e do meu aparelho auditivo.

O estranhamento das crianças foi apenas um prefácio do que eu encontraria na sociedade mais tarde: “Você não é igual a nós, porque você é surda, então você não pode fazer X, Y, Z.”

Com o tempo, desisti de tentar conviver com as outras crianças e me refugiava na biblioteca da escola. Os livros eram meus amigos. Eu lia tudo que caía em minhas mãos, era uma forma de passar o tempo, acompanhar as aulas (não havia inclusão ou acessibilidade) e aprender mais.

Hoje percebo que os livros foram a salvação da minha vida. O fato de ler compulsivamente compensou tudo que eu perdia por não ouvir. E aprender sobre diversos temas me tornou uma pessoa curiosa, questionadora e com senso crítico.

Logo percebi que, sendo surda, ninguém esperava nada de mim. Alguns nem esperavam que eu concluísse a escola. Se me formasse no ensino médio era muito. Deveria me contentar com qualquer trabalho simples ou depender de algum benefício do governo.

Por mais clichê que pareça, acredito que todos vieram ao mundo com uma missão. E esta missão pode ser algo realmente simples como questionar alguns paradigmas vigentes. E foi o que fiz, pois parecia-me ilógico não poder fazer tantas coisas só porque era surda.

Ainda bem nova, decidi criar uma estratégia para lidar com o preconceito. Eu iria estudar duas, três, dez vezes mais do que os outros, vinte vezes se preciso fosse, não me importava. Escolheria um assunto em que eu fosse boa, e me aprimoraria ainda mais, até ser excepcionalmente talentosa, a tal ponto que as pessoas seriam obrigadas a reconhecer minha competência e “esquecer” minha surdez.

Logo percebi que a surdez tinha prós e contras. Poucas pessoas, aos 20 anos, tinham lido a quantidade de livros que eu li. Eu tinha um português excelente e escrevia muito bem. Eu só precisava aprimorar o que já era bom e tornar isso excepcional, de acordo com meu plano. Decidi que teria um português e inglês impecáveis e escolhi estudar Letras.

Um dia, na faculdade, me deparei com uma frase de um poema de William Ernest Henley: “I am the master of my fate, I am the captain of my soul”. Virou meu lema de vida. Sempre que alguém me rebaixa ou me humilha, lembro dessa frase, levanto a cabeça e sigo em frente.

Após me formar, iniciei minha carreira em comunicação: já fui revisora de textos, redatora, tradutora, analista de comunicação… Hoje trabalho como ghostwriter para executivos no Linkedin, produzindo conteúdo, ajudando-os a criar sua marca pessoal e a se posicionar na rede. É um trabalho bem interessante e gosto muito, mas sempre me questiono: o que mais posso fazer? Como posso ir mais além? Essas questões me impulsionam em todas as áreas da vida.

Os livros continuam sendo meus melhores amigos, leio de tudo um pouco: filosofia (Nietzsche me fez questionar as religiões e a moral), desenvolvimento pessoal, neurociências, psicologia, mas sou particularmente apaixonada pelo comportamento humano e funcionamento cerebral: por que fazemos o que fazemos? Ganhei até um apelido dos amigos: “Marcela Porquê”. Adivinhem o porquê, rs.

Percebi que fazemos o que fazemos, na maioria das vezes, por puro condicionamento (da escola, pais, sociedade, religiões). Não há nada que nos impeça de ir além, a não ser nossa própria mente, e minha surdez é a prova mais cabal disso.

O cérebro humano é uma máquina fantástica, capaz de impulsionar enormemente o potencial de cada um, se corretamente utilizado. Conhecimento é poder, e conhecimento aplicado é poder potencializado.

Porém, o conhecimento não me faz passar incólume por preconceito, discriminação e capacitismo. Essas atitudes me tiram realmente do sério, tanto que criei um perfil no Linkedin voltado a conscientizar sobre surdez, inclusão e acessibilidade. Acredito que a única forma efetiva de combater o preconceito é a educação, e faço minha parte, escrevendo sobre esses temas.

Sempre fui muito obstinada em fazer tudo que queria fazer, e ser surda é só um detalhe na minha vida: trabalhei em multinacionais, passei em concursos (odiei ser funcionária pública), fiz intercâmbio na Escócia (melhor experiência da vida), viajei sozinha pro exterior (pouco ainda!), aprendi a falar inglês (essa foi nível hard pra quem é surda), moro sozinha (infelizmente eu mesma tenho que matar as baratas, rs).

O que eu não posso fazer de um jeito (usando a audição), procuro outra forma de fazer, e acredito que esta é a melhor forma de viver: acreditando sempre na capacidade intrínseca do ser humano. Deus/Universo/Força Maior proveu cada um com dons e habilidades únicas e cabe a nós usá-los da melhor forma possível, em vez de lamentar pelo que não temos.

As pessoas me perguntam porque tenho orgulho de ser surda, porque não considero isso uma deficiência e sempre respondo: deficiência é ser “burro” e incapaz de se adaptar e abrir sua mente para aprender novos jeitos de fazer as coisas. Isso sim é uma tremenda lacuna…

E a minha vida está apenas começando, afinal, dizem que a vida começa aos 40, não é?”

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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