Opinião

A Carta em Defesa do Estado Democrático de Direito

Confesso que tenho “mixed feelings” com relação à Carta em Defesa do Estado Democrático de Direito”, que já conta com mais de 500 mil assinaturas no momento em que escrevo este post. Não porque não concorde com seus termos. De fato, o desafio ao resultado eleitoral, ainda mais de véspera, é claramente uma atitude antidemocrática. Por mais que o sistema de apuração do resultado eleitoral, baseado nas urnas eletrônicas, possa ser alvo de críticas, ainda assim trata-se de um sistema usado há mais de 25 anos, sem que, em nenhuma ocasião, tenha havido evidência de fraude. Trata-se de sistema suficientemente seguro, não 100% seguro. Nenhum sistema o é.

Assinar uma carta defendendo que os resultados das eleições sejam respeitados é algo até óbvio. No entanto, a carta não recebeu o nome “Carta em Defesa dos Resultados Eleitorais” ou “Carta em Defesa das Urnas Eletrônicas”. O título da carta é muito mais abrangente e, por que não dizer, grandiloquente: “Carta em Defesa do Estado Democrático de Direito”.

O Estado Democrático de Direito é algo que vai bem além do respeito aos resultados eleitorais, ainda que os englobem. O Estado Democrático de Direito supõe que a lei deve ser respeitada e, por consequência, todos os que desobedecem à lei devem enfrentar os seus rigores. Os cidadãos de um país em que o Estado Democrático de Direito é respeitado em toda a sua plenitude podem esperar que qualquer um, por mais poderoso que seja, esteja igualmente sob o jugo da lei. Ou seja, a lei deve valer para todos.

Obviamente, não estamos vivendo sob um Estado Democrático de Direito pleno. O atual candidato à presidência pelo Partido dos Trabalhadores teve a sua culpa provada em duas instâncias, e o processo foi considerado íntegro por uma terceira instância. No entanto, com base na interpretação de gravações obtidas ilegalmente, a Suprema Corte do país julgou o juiz de primeira instância do caso como parcial. Para tentar evitar esse desfecho, o ministro Edson Fachin resolveu anular todo o julgamento, com base em uma divergência de foro. E, a partir daí, o atual candidato do PT foi libertado e seus direitos políticos foram restaurados.

É este desconforto que me incomoda em relação à esta carta. Estamos defendendo o Estado Democrático de Direito quando a própria candidatura do PT é uma afronta a este mesmo Estado Democrático de Direito. Claro, formalmente a Suprema Corte devolveu os direitos políticos de Lula, e a Suprema Corte tem a última palavra. Formalmente, o candidato do PT tem o direito de se candidatar. Mas não deixa de ser algo moralmente reprovável, e que fere gravemente o Estado Democrático de Direito. A mensagem é de que a longa mão da justiça não é suficientemente longa para alguns no país.

Por outro lado, a esse respeito, não posso deixar de lembrar a reação do PT ao impeachment de Dilma Rousseff. Chamando de “golpe” um processo legítimo, levado dentro das regras do Estado Democrático de Direito, o PT atacou (e ainda ataca, outro dia Lula voltou a chamar o impeachment de golpe) as bases desse mesmo Estado Democrático de Direito. Na época, comparei a atitude do PT ao de um torcedor que xinga o juiz de ladrão, colocando em dúvida a sua imparcialidade e, portanto, a própria decisão tomada. Em um jogo de futebol, por mais que se reclame do juiz, suas decisões são soberanas.

E é neste ponto que o respeito às regras deve valer para todos. Se o juiz é soberano no caso do impeachment, também deve ser considerado soberano no caso da libertação e recuperação dos direitos políticos de Lula. Não podemos escolher quando vamos respeitar a decisão do juiz, sob pena de tornar a arena do jogo político-institucional um vale-tudo.

É neste ponto que a Carta em Defesa do Estado Democrático de Direito acerta: ao insinuar que não irá aceitar o resultado eleitoral que não lhe favoreça, Bolsonaro, assim como o PT, também ataca as bases do Estado Democrático de Direito. O STF ter libertado Lula me revolta tanto quanto o impeachment revoltou os petistas. É da natureza do jogo democrático discordar do juiz. E é da natureza do Estado Democrático de Direito respeitar o juiz.

Claro que estamos em período eleitoral, e qualquer manifestação será sempre interpretada como apoio a um dos lados. Mas, ao contrário de cartas #elenão que pulularam em 2018, esta carta foca na aceitação do resultado das eleições, o que vale, supostamente, para ambos os lados. Claro que, com seus ataques ao sistema eleitoral, Bolsonaro é o sujeito oculto da presente carta. Com esses ataques, o presidente conseguiu unir contra si todos os que preferem respeitar o juiz da partida, mesmo não concordando com suas decisões. Por isso, não consigo pensar em tática mais errada.

Uma tática mais inteligente seria justamente apontar para a decisão estapafúrdia do STF. Poderia até chamar de “golpe”, como cansa de fazer o PT em relação ao impeachment. “Golpista não sou eu, é o sistema judiciário brasileiro, que restituiu os direitos políticos de um criminoso”, este sim, poderia ser um mote que jogaria os holofotes sobre o seu adversário e dificilmente daria margem para cartas em defesa do Estado Democrático de Direito. Mas acho que é pedir demais para um político que tem na paranoia a base de seu posicionamento na realidade.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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2 Comentários

  1. Atualmente temos uma “ditadura de corruptos” dissimulada sob o belo nome de “democracia”.
    As instituições estão infestadas e dominadas de tal forma que só funcionam a favor da impunidade e corrupção.

  2. Sempre houve evidências de que Moro e os procuradores da Lava-Jato agiram em desacordo com o processo. As gravações da vaza-jato, ainda que obtidas ilegalmente, foram a pá de cal.
    Vale lembrar também que as gravações do celular de Dilma, do famoso “tchau querida”, também foram obtidas ilegalmente e Moro retirou de maneira estranha o sigilo de tais ligações.

    Querer desqualificar a carta que já conta com mais de 1000000 de assinaturas de pessoas, entre às quais me incluo, com base nessa questão da condenação de Lula, é mais um dos exercícios de tergiversação simplista muito presente por aqui.

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