Opinião

Vacinação privada… Sério?

Recentemente abriu-se um debate sobre a conveniência da administração da vacina contra a covid-19 por parte do setor privado. Argumentos dos mais variados tem sido utilizados a favor e em contra: com fundo ético, econômico, utilitarista, etc. Um dos artigos mais completos que li foi o de autoria de César Mattos e Cleveland Prates ( http://www.brasil-economia-governo.org.br/2021/02/03/por-que-nao-vacinas-para-a-covid-19-fora-do-sus/ . Logicamente é um debate que só faz sentido enquanto a demanda de vacinas for superior à oferta.

Também é um debate que deve ser condicionado à sua vertente ética. Se eticamente se aceitam certas premissas, e se as mesmas não forem respeitadas pela vacinação privada, ele perde o sentido, a menos que aceitemos que a ética tem um preço, o que não seria muito ético…

“Tem um ditado que diz que não se colocar preço em uma vida humana, mas este ditado é falso porque já colocamos, e é muito menor do que você pode pensar. Sim, a vida humana tem seu preço como qualquer outra coisa, e seguirá tendo enquanto funcionar como uma mercadoria”

Precisamente nesta parte do artigo do Matos e Prates, sendo o fundamental, acredito que eles passam superficialmente, limitando-se a:

– Destacar uma falácia de analogia, baseando-se no argumento de que o mercado é melhor alocador de recursos que o Estado. Este argumento é bastante discutível, especialmente quando comparamos a qualidade e custo da saúde nos USA, basicamente privada, com a existente na Europa, basicamente pública ou conveniada público-privada.

– Argumentar que o setor privado não seria concorrente do setor público, sendo que as fontes de aplicação da vacina seriam diferentes.

Para rebater adequadamente estes e outros argumentos a favor ou contrários à vacinação privada, devemos assentar algumas premissas básicas para evitar conclusões erradas.

Primeiro: Quais são os fatores que impedem a vacinação em prazos curtos de toda a população?

Parece uma pergunta estúpida. É obvio que são dois: Disponibilidade de vacinas, e capacidade de administrar as mesmas.

“Parafraseando Lucrécio, não há nada mais útil do que observar um homem ou mulher em tempos de doença mortal contagiosa combinado com suas suposições de adversidade financeira para discernir que tipo de homem ou mulher eles realmente são”

As empresas fabricantes de vacinas e insumos precisam fazer os investimentos adequados para conseguir uma cadência na fabricação. E não farão os investimentos buscando minimizar o ‘time to Market’ mas sim um bom equilíbrio investimento-retorno. Algumas destas empresas tem recebido ajudas de governos para melhorar a sua capacidade produtiva, mas logicamente haverá um limite. Portanto, é de se esperar que a oferta se igualará à demanda somente daqui a alguns meses

Nestas condições seria esperado que uma vacina privada não concorresse com uma vacina pública? Vamos ver possibilidades:

– Subministradores diferentes. O artigo do Mattos e o Prates imagina que o setor privado poderia se valer de subministradores diferentes, e, portanto, não concorreria com o setor público. Sendo assim, não seria eticamente reprovável, já que obteríamos maior benefício social. Existem dois fortes argumentos contra essa tese. A oferta de vacinas, neste momento, é de vários milhões de doses por dia, e a demanda é de vários bilhões, com contratos futuros. Qualquer um que ganhe uma vacina para hoje, o fará às custas de outro. Por isso que a OMS e outros organismos internacionais estão tentando organizar a celeuma para que os países mais pobres não fiquem sem vacina. Aliás, existem suspeitas fundadas de parte da União Europeia de que AstraZeneca e Pfizer estariam priorizando Reino Unido e EUA… É interessante, porém, que o artigo menciona as disputas existentes pela obtenção de vacinas no mundo, mas desprecia como argumento essa possível  disputa entre setor público e setor privado, como se fosse possível que não existisse, a partir do momento em que o setor privado fosse autorizado a comprar as vacinas.

Mas até aqui, não chegamos ao cerne da questão ética sobre o tema.

“Enquanto tivermos esperança, teremos direção, energia e o mapa para nos mover”. provérbio chinês

É um fato que a vacinação não é um ato de proteção individual, e sim coletiva No Brasil, 85% dos óbitos por covid são de pessoas com mais de 60 anos. Portanto, tivemos aproximadamente 30mil óbitos de pessoas com menos que essa idade. O número não é desprezível, mas é muito semelhante ao de óbitos por homicídio ou por acidente de carro. Assim, se você tem menos de 60 anos e não tem comorbidade, a vacina vai lhe proteger mais ou menos como não dirigir carro ou não arriscar a sair à rua para evitar morte por assassinato ou acidente. Mas se você tem mais de 60 anos, aí a coisa muda. Se pegar a “gripezinha” tem uma probabilidade ainda baixa, mais já relevante (entre menos de 1% e 20%, dependendo das comorbidades e a idade).

Portanto a prioridade social seria vacinar, como determinaram a maior parte de países e como bem argumentam Prates e Mattos, o pessoal da saúde, seguidos pelos grupos de maior risco, como idosos e pessoas com comorbidades (alguém bem informado deveria esclarecer se população indígena e quilombolas fazem parte desta população de risco, ou foi só marketing social).

Qual é o preço da vida?

Até imaginando que fosse certo que a vacina privada não concorresse com a pública, seria um fato que pessoas fora do grupo de risco seriam vacinadas enquanto outras pertencentes a grupos de risco estariam morrendo por não dispor de R$X para pagar sua vacina. Aliás, seria uma pergunta interessante a se fazer, quanto seria esse X…

Parece que enquanto o critério de passar uns à frente dos outros fosse o fator económico, não incomodaria os autores, já que é pelo critério objetivo do mercado. Bom, eu tenho que reconhecer que me sinto incomodado, e acredito que grande parte do mundo também, porque este debate não tem se iniciado nem nos EUA. Claro que na Índia nem houve debate, iniciou-se a vacinação privada sem hesitação… Parece que o tema das castas está bem mais interiorizado lá que aqui…

É difícil conciliar critérios éticos divergentes deste nível sem entrar em uma briga de superioridades morais, que não existem na realidade. Mesmo assim vou tentar:

Se as 72 empresas da capacidade econômica e da força política que estavam envolvidas na negociação tentassem pressionar o Governo para agilizar o plano de vacinação, não teriam um bom resultado? Aliás, nas últimas semanas parece que o Governo está começando a trabalhar sério nesse sentido.

Não poderíamos autorizar a compra e administração da vacina pelo setor privado, mas seguindo o plano de vacinação?

Poderíamos aprovar planos de parceria público-privada para agilizar a vacinação, seguindo o modelo dos EUA. Respeitando as prioridades, conseguiríamos vacinar as populações de risco muito mais rapidamente e eficientemente conjugando interesses sociais e privados, obtendo todas as externalidades positivas que os autores mencionam, e sem o risco de parecer uma versão tropicalizada do Expresso de Amanhã (excelente seriado no Netflix).

E se não concordam, não há problema. Todos temos a disposição uma vacina privada:  https://www.forbes.com/sites/michelerobson/2021/01/17/vaccine-vaccationsgetting-a-private-covid-shot-abroad/?sh=539d5c1d76be

O preço? bem… esse é outro tema…

Victor Llebot ⚫ In Memorian

Catalão, espanhol e brasileiro de adoção. Formado em Administração por Esade Barcelona, o destino e o trabalho me trouxeram para o Brasil no final de século passado, e por aqui fiquei... Depois de 20 anos, virei bastante brasileiro como para me sentir estrangeiro na minha terra natal, mas não o bastante para não me sentir frequentemente um alien no Brasil.

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2 Comentários

  1. Olá Victor ! boa reflexão. Eu sou a favor da “vacina privada”. É preciso vacinar o maior número de pessoas o quanto antes,

    1. Obviamente eu sou a favor de vacinar o maior número de pessoas possíveis o antes possível. Só que acredito que autorizando a comercialização da vacina não é uma maneira eficaz nem ética para alcanzar essa meta…

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