A Guerra na Ucrânia – Capítulo 6: O Anschluss Russo

Não se entende a guerra na Ucrânia sem se entender o líder da Rússia e suas motivações.
No início do ano 2000, o substituto de Boris Yeltsin, Vladimir Putin, era uma grande incógnita para o Ocidente. Sem uma carreira política pregressa, tendo sua vida profissional dedicada ao serviço de inteligência da União Soviética, Putin podia ser qualquer coisa. E sua personalidade camaleônica não passou despercebida pela Economist:
“Em traje de batalha, visitando a frente na Chechênia, por exemplo, ele interpreta o militar. Ele toma cuidado para apelar aos liberais também, encontrando escritores, criticando as condições escandalosas nas prisões e até mesmo depositando flores no túmulo de Andrei Sakharov, o ícone dos direitos humanos. Ao assumir o cargo, ele declarou encorajadoramente que a liberdade de expressão e a propriedade privada eram os fundamentos de uma sociedade civilizada.” (Vladimir Putin, Russia’s post-cold-warrior – Economist – 06/01/2000)
No entanto, em outra reportagem, a revista não deixa de alertar:
“Mas não é o que ele diz que importa. É o que ele faz. E a maioria das coisas significativas que ele fez, tanto em sua curta carreira como líder político quanto em sua longa carreira como espião, foram assustadoras.” (Putin The Great Unknown – Economist – 06/01/2000).
Mas é no “ideólogo da Corte”, Alexander Dugin, que devemos buscar as razões últimas das ações de Putin. Em artigo de 07/04/2024 no Estadão, o professor Denis Rosenfield mata a charada:
“Alexander Dugin, seu ideólogo, elaborou essa concepção. Segundo ele, a Rússia não é apenas um país, mas uma nação, leia-se uma civilização, com alma própria, em tudo distinta da ocidental. Sua filosofia seria conservadora, no sentido de conservação de seus valores, enraizados em seu povo (narod), portador, por sua vez, de um ser próprio, o do camponês russo, em tudo distinto da concepção ocidental do povo, baseada nos direitos universais do cidadão. O homem não é indivíduo livre, mas membro de uma comunidade à qual presta obediência.
O conceito de conservadorismo, assim entendido, inclui em sua significação a noção de algo grandioso, de valores próprios que se alçariam a seu Zenith por meio da noção do homo maximus, tendo como resultado a noção de Império. Império vem a significar uma unidade territorial, um Estado em expansão, conduzido por um grande homem, capaz de encarnar esses valores máximos, levando-os para além de suas fronteiras. E, mais ainda, para seus territórios vizinhos como a Ucrânia, considerado um país artificial, ou os Países Bálticos, o que equivale a dizer que deveriam ser incorporados à Grande Rússia. Logo, Império não é somente uma entidade política, mas “religiosa”, imbuída de uma missão civilizatória.
“Conservadores são raramente pacifistas”, escreve ele.
Eles estão voltados para a guerra, não somente por uma necessidade geopolítica, mas religiosa. Trata-se de uma expansão ideologicamente fundada, uma espécie de necessidade da alma russa, dos valores de seu narod, corretamente interpretados por sua liderança política. Um povo que não se engaja numa guerra é um povo que decai, podendo vir a perder a sua alma. Um povo carente de alma nem mereceria existir.
Em seu antiocidentalismo, Dugin propõe uma guerra sem quartel contra o universalismo ocidental, sua noção de direitos, seu conceito de autodeterminação dos povos e os seus representantes políticos. Seu alvo são os liberais identificados aos inimigos. Comunistas e não comunistas antiocidentais se unem contra o inimigo comum, Putin e Dugin colocando-se em linha de continuidade com a União Soviética, em sua cruzada antidemocrática.”
Apesar de todo o discurso antinazista de Putin, esta descrição ecoa o nacional socialismo alemão, com sua retórica de Império, seu chamamento à conquista do espaço vital, a caracterização do russo como um super-homem (homo maximus) e o desprezo pelo povo que não sabe valorizar a luta contra o inimigo. Putin engrandece a Grande Guerra Patriótica contra a Alemanha nazista não por desprezar a ideologia nacional socialista, mas por Hitler ter sido o inimigo das ambições imperialistas soviéticas e, agora, russas.
Assim, é preciso ter em mente que Vladimir Putin almeja formar uma Grande Pátria Russa, cujas fronteiras podem ser qualquer coisa que ele imaginar. O controle sobre territórios estrangeiros não se dá, necessariamente, pela ocupação e incorporação formal ao território russo. Como veremos a seguir, a Rússia coloca em prática um jogo em que os países são como que colonizados a partir de um enclave que divide o país, e o impede de se mover em relação ao Ocidente. É o que a Economist, com rara felicidade, descreve às vésperas da invasão russa à Crimeia:
“Putin pode não desejar, ou ser capaz, de anexar formalmente a Crimeia, e ele diz que a Rússia não tem planos de fazê-lo. Mais provavelmente, ele pretende usá-la como um fator desestabilizador e alavanca para dividir ainda mais a Ucrânia. O objetivo final pode ser transformá-la em uma federação onde o controle russo rígido das partes orientais impede o país como um todo de se mover em direção ao Ocidente.”
O processo de “passaportização”
A facilitação da naturalização russa e a consequente concessão de passaportes russos é parte da estratégia do “anshluss” russo. Como afirma a cientista política Sabine Fischer
“A naturalização dos cidadãos de outros Estados nacionais não representa em si uma violação de sua soberania. Mas se for conduzido em grande escala e aqueles que se naturalizam mantêm sua residência no exterior, pode produzir um conflito de soberania. Na política da Rússia em relação à Eurásia, a passaportização começou como um esforço inicial para encontrar uma maneira adequada de lidar com milhões de russos que viviam nos Estados recém-independentes pós-soviéticos, para se transformar posteriormente em um instrumento de política revisionista em relação aos Estados vizinhos afetados. Além disso, o discurso russo obscurece a distinção entre cidadãos russos reais, russos étnicos e falantes russos, abrindo mais oportunidades para Moscou.”
A passaportização foi usada com as populações da Ossetia do Sul e Abkhazia, na Georgia, e Transnistria (uma região na fronteira entre Moldávia e Ucrânia) assim como nas províncias do Leste ucraniano. A ideia era usar o fato de ter cidadãos russos nesses territórios de modo a justificar uma invasão para “proteger os interesses dos cidadãos russos” nessas regiões.
No mapa a seguir podemos observar o estabelecimento generalizado de “serviços de migração” russos nos territórios separatistas do Leste ucraniano, para facilitar a naturalização e emissão de passaportes.

Entre abril e julho de 2019, o governo russo emitiu três resoluções que visavam à facilitação do processo de naturalização para os habitantes do Donbas. O primeiro permitia um fast track para a naturalização de ucranianos que viviam nas áreas dominadas pelos separatistas, diminuindo de 8 anos para 3 meses o tempo necessário para os trâmites. Os documentos necessários são as identidades emitidas pelas autoridades rebeldes. O segundo estende o direito para aqueles que residiam nessas regiões antes de abril de 2014 e que possuíssem documentos que lhes permitissem ficar em território russo. Por fim, o terceiro garantia o direito de obtenção do passaporte russo para todos os habitantes da região do Donbas, mesmo aquelas partes controladas pelo governo ucraniano.
O fato desses decretos terem sido emitidos entre a eleição de Zelensky (abril) e as eleições parlamentares (julho) foi interpretado como um instrumento de pressão sobre o novo governo. No final de 2019, 136 mil habitantes das áreas separatistas e 60 mil das áreas controladas pelo governo receberam cidadania russa. Em fevereiro de 2022, às vésperas da invasão, 720 mil residentes das áreas separatistas haviam obtido o passaporte russo, aproximadamente 18% da população dessa região.
O caso da Georgia
Em fevereiro de 2014, as mais caras Olímpiadas da história tinham lugar na cidade de Sochi, Rússia, às margens do Mar Negro. Tratava-se de um triunfo para Vladimir Putin, que havia trazido uma edição dos Jogos Olímpicos para o seu país após o último evento em Moscou, em 1980. Ao contrário daquela ocasião, não houve boicote: todos os países prestigiaram as Olímpiadas de Putin. Nem parecia que, a apenas 40 km dali, encontrava-se a fronteira com a ex-República soviética da Georgia, um país que havia sido desossado por Putin em 2008, um ano depois de Sochi ter sido escolhida como sede dos Jogos de 2014.

Entre os dias 07 e 12 de agosto de 2008, exércitos e tanques russos invadiram as regiões da Abkhazia e Ossetia do Sul para “libertar” essas duas regiões russófonas. Era a primeira vez que a Rússia invadia um país soberano desde o fim da União Soviética (a próxima se daria em 2014, com a invasão da Crimeia). O motivo foi o mesmo usado para a invasão da Ucrânia: “proteger” as populações russas dessas duas regiões. A Rússia reconheceu essas duas regiões como Estados independentes, no que foi seguida por seus aliados, como Síria, Nicarágua, Coreia do Norte e Venezuela.
A questão da Georgia remonta aos estertores da União Soviética, no final da década de 80. Ao contrário da Ucrânia, em que as diferentes minorias conseguiram chegar a um ponto comum e seguiram unidas em torno de um governo central, nacionalistas georgianos e minorias abkhazes e ossetianas se envolveram em escaramuças que se agravaram com a independência da Georgia em 1991, levando a uma guerra civil em 1991-92. Esta guerra terminou com o presidente da Georgia, Eduard Shevardnadze, e o presidente da Rússia, Boris Yeltsin, assinando um cessar-fogo e o estabelecimento de uma força de paz. No final, essas duas regiões acabaram não se integrando de verdade ao restante da Georgia, permanecendo com um status semiautônomo em relação ao governo central georgiano. Shevardnadze, a exemplo de Leonid Kravchuk, primeiro presidente da Ucrânia, era oriundo da nomenclatura soviética, o que lhe permitia manter estreitos laços com Moscou. Esse estado de coisas perdurou até 2003.
A partir de agora, o paralelo com a Ucrânia é notável. Em 02/11/2003, ocorreram eleições parlamentares, que, segundo observadores internacionais, não atingiram níveis mínimos de confiança em seus resultados. Além disso, pesquisas de boca de urna apontavam que a oposição havia ganho as eleições. Tiveram início, então, protestos populares liderados pelo líder da oposição, Mikheil Saakashvili, no que ficou conhecido como a Revolução Rosa, pois Saakashvili invadiu o parlamento com rosas nas mãos. No final, as eleições foram anuladas pela Suprema Corte e novas eleições foram marcadas para janeiro de 2004, quando Saakashvili foi eleito o novo presidente da Georgia com nada menos do que 96% dos votos.
Saakashvili era um político muito mais pró-Europa do que Shevardnadze, o que não passou despercebido para Vladimir Putin, que começou a distribuir passaportes e direitos a pensões para os ossetianos, em um movimento muito semelhante ao que faria nas províncias do Leste da Ucrânia alguns anos depois.
Quatro anos depois, em agosto de 2008, após anos de escaramuças entre ossetianos e georgianos, a Rússia decide invadir a Ossetia do Sul com seu exército para, segundo Putin, “defender os seus cidadãos”. Em 5 dias, os russos dominam a região, rechaçando as forças georgianas. Moscou faz o mesmo na região da Abkhazia, onde não havia, em princípio, nenhuma atividade militar da Georgia, o que demonstra o seu objetivo último: anexar, na prática, as duas regiões à Rússia.
Esta havia sido a primeira invasão de um país europeu por exércitos desde o fim da União Soviética. Como observou a Economist:
“Não há uma nova cortina de ferro descendo sobre a Europa, nenhuma “nova guerra fria” de base ideológica; mas há uma divisão profunda e dolorosa que se estende muito além das devastadas Georgia, Ossetia do Sul e Abkhazia. Parafraseando Winston Churchill, de Tallinn, no Báltico, a Tbilisi e além, a violência do mês passado, juntamente com as afirmações da Rússia sobre seus “interesses privilegiados” em sua vizinhança, causou mais danos às relações entre a Rússia e o Ocidente do que os líderes russos acham que precisam se preocupar e muitos europeus se incomodam em admitir.”
A invasão da Georgia inaugurava o “anschluss” russo, a incorporação de territórios de nações soberanas com o pretexto étnico. A Georgia foi um pequeno ensaio do que ocorreria na Ucrânia 10 anos depois.
A anexação da Crimeia
Em 27/02/2014, cinco dias após a destituição do presidente Viktor Yanukovich pelo Congresso ucraniano e quatro dias após o fim das Olimpíadas de Inverno em Sochi, Vladimir Putin ordena o início da invasão e ocupação da Crimeia. Se a invasão da Georgia em 2008 mereceu apenas um muxoxo da comunidade internacional, a ocupação da Crimeia criou bem mais barulho. Mesmo porque, a Ossetia do Sul não foi ocupada e muito menos anexada por Moscou. No caso da Crimeia, depois de um referendo relâmpago com aprovação de 96% da população, Putin anexou a província à Rússia, em 18/03/2014.
É estranha um tal apoio à anexação. Em pesquisa do Instituto Gallup, conduzida no ano anterior, apenas 23% dos respondentes apoiavam uma eventual anexação, número que havia se reduzido em 10 pontos percentuais nos últimos 2 anos.

Um argumento bastante comum para justificar a ação de Putin é de que a Crimeia pertencia à Rússia antes de 1954. Naquele ano, a península foi cedida pelo Soviete Supremo à Ucrânia, como parte das comemorações dos 300 anos da assinatura do Tratado de Pereyaslav, que marcou a união dos cossacos ucranianos com o então Reino da Rússia. O decreto de transferência é curto, e diz o seguinte:
“Decreto do Presidium do Soviete Supremo da URSS transferindo a Província da Crimeia da República Russa para a República da Ucrânia, levando em consideração o caráter integral da economia, a proximidade territorial e os laços econômicos estreitos entre a Província da Crimeia e a República da Ucrânia, e aprovando a apresentação conjunta do Presidium do Soviete Supremo da República Russa e do Presidium do Soviete Supremo da República da Ucrânia sobre a transferência da Província da Crimeia da República Russa para a República da Ucrânia.”
O que motivou este movimento, além da “proximidade territorial e dos laços econômicos estreitos”? Segundo a bisneta de Kruschev, Nina Khrushcheva, professora da The New School de Nova York, a União Soviética estava passando pelo período de revisão histórica do período stalinista após a morte de Stálin, e o Holodomor (a grande fome na Ucrânia entre 1932-33) era uma ferida aberta, e que precisava, de alguma maneira, ser compensada. Assim, Kruschev teria transferido a Crimeia para a Ucrânia como um gesto simbólico de reparação histórica. Obviamente, não se previa, naquele momento, a dissolução da União Soviética e a separação da Rússia e da Ucrânia. Quando houve a cessão, tudo era um país só, na prática.
Kruschev não era ucraniano, mas nasceu próximo à fronteira com a Ucrânia, e chegou a trabalhar nas minas da região do Donbas na adolescência. Além disso, sua esposa era ucraniana, razões pelas quais mantinha laços afetivos com o país, segundo sua bisneta. De qualquer forma, quaisquer considerações sobre a suposta fraqueza das motivações de Kruschev não se sobrepõem à legalidade da transferência do território.
Quando da independência da Ucrânia, o governo central, reconhecendo o status diferenciado da província, concedeu à Crimeia o status especial de República Autônoma, o que significava maior autonomia em relação a Kiev do que desfrutavam as outras províncias. Além disso, Sebastopol recebeu status de distrito federal, o mesmo de Kiev (o mesmo de Brasília), e era a base da frota naval russa no Mar Negro. A divisão da frota soviética e das instalações de Sebastopol entre Rússia e Ucrânia foi definida pelo Tratado de Partição sobre o Status e Condições da Frota do Mar Negro, assinado em 1997 e renovado em 2010 com validade até 2047. O governo russo revogou unilateralmente este Tratado após a anexação da península, em 2014.
A Rússia ratificou as fronteiras ucranianas (incluindo a Crimeia) em quatro ocasiões: 1) quando de sua declaração de independência, em agosto de 1991, reconhecida pela Rússia com a inclusão da Crimeia; 2) na assinatura do Acordo de Belovezha, que funda a Comunidade dos Estados Independentes (CIS). Em seu artigo 5º, o acordo estabelece que os signatários irão “respeitar a integridade territorial de cada membro e a inviolabilidade das fronteiras existentes dentro da Comunidade.”; 3) na assinatura do Memorando de Budapeste, em que as fronteiras da Ucrânia seriam respeitadas em troca de seus armamentos nucleares e 4) na assinatura do Tratado de Amizade, Cooperação e Parceria entre Rússia e Ucrânia, que, em seu artigo 3º, diz textualmente: “As Altas Partes Contratantes, […], respeitarão a integridade territorial umas das outras e confirmarão a inviolabilidade das suas fronteiras comuns.”
O argumento usado por Putin para desrespeitar esses tratados se baseia na tese de que o Euromaidan, ao depor um presidente legitimamente eleito, supostamente criou um novo país, que não herdou os direitos internacionais do antigo. Ele comparou a situação com a queda do Tzar em 1917 e o início do regime bolchevique. Obviamente, trata-se de uma falácia absurda. Imagine se as fronteiras dos países deixassem de existir quando houvesse uma mudança profunda de governo ou de regime (e este nem foi o caso da Ucrânia). A União Soviética deixou de existir em 1991, e nem por isso algum país se achou no direito de invadir o território russo. Seria como se o país deixasse de existir, o que é, obviamente, um disparate. Mas para Putin, qualquer argumento serve, pois a lei está a seu serviço, e não o oposto.
Está muito claro, portanto, que a Crimeia pertence à Ucrânia, razão pela qual a anexação por parte da Rússia foi reconhecida somente por Afeganistão, Cuba, Coreia do Norte, Quirguistão, Nicarágua, Sudão, Síria e Zimbabwe. Mas para Putin, isso pouco importa. Como ressalta uma matéria da Economist:
“Muitas potências, incluindo a Grã-Bretanha, a França e os Estados Unidos, às vezes violaram a lei internacional. Mas Putin esvaziou a lei de significado, distorcendo a realidade para significar o que ele escolher. Ele argumenta que os fascistas ameaçam a segurança dos falantes de russo na Ucrânia; que as tropas de elite que cercam as bases ucranianas não são russas, mas irregulares que compraram seus uniformes nas lojas; que o memorando de Budapeste, que a Rússia assinou em 1994 e garante as fronteiras da Ucrânia, não é mais válido porque o governo em Kiev foi derrubado. Essas alegações absurdas não devem ser tomadas pelo valor de face. Em vez disso, elas comunicam uma verdade que os russos comuns entendem muito bem: a lei não está lá para restringir o poder, mas para servi-lo. Sem contestação, isso é uma licença para a agressão russa.”
As “repúblicas” de Luhansk e Donetsk
Após a anexação da Crimeia, nacionalistas separatistas, com o apoio logístico da Rússia, começam a ocupar prédios públicos nas províncias de Donetsk e Luhansk, ao Leste da Ucrânia, região conhecida como Donbas. Para enfrentar este movimento, Kiev estabelece a Ação Anti-Terrorismo (ATO, na sigla em inglês), tendo o apoio de batalhões paramilitares nacionalistas. O nome da operação indicava a forma como o governo central via a insurreição, algo semelhante ao ETA espanhol ou o IRA irlandês. A mudança dessa abordagem somente viria em 2018, quando a operação passou a ser liderada pelo exército ucraniano e não mais pelas forças internas de segurança.
Em 11 de maio, após referendos amplamente rechaçados pela comunidade internacional, os separatistas declaram a independência da República Popular de Donetsk e da República Popular de Luhansk, sob as lideranças de Alexander Zakharchenko e Igor Plotnitsky, respectivamente. O objetivo era pedir a incorporação dessas regiões à Rússia. Putin, obviamente, não aderiu a este plano, que significaria a invasão do Donbas. Ele já tinha a Crimeia para cuidar neste primeiro momento.
Entre maio e setembro, forças de Kiev e dos separatistas lutam palmo a palmo para defender/conquistar terreno. Em 5 de julho, as forças ucranianas retomam a cidade de Sloviansk das mãos dos rebeldes (vide mapa abaixo). A retomada de Donetsk, a principal cidade da região, parece estar próxima.

Com a retomada de Sloviansk e os avanços posteriores das forças de Kiev, Moscou percebe que a guerra está virando a favor da Ucrânia. A partir de agosto, decide “dar uma mãozinha” para os separatistas, enviando soldados furtivamente. Alguns foram capturados pelas forças ucranianas.
Com a ajuda não oficial da Rússia, os separatistas conseguiram segurar as forças ucranianas no que ficou conhecida como a linha de contato (vide mapa acima). Esta linha seria mais ou menos mantida até a invasão russa, em fevereiro de 2022.
Percebendo que a batalha para reconquistar a região tomada pelos separatistas estava perdida com a entrada em cena do apoio russo, o presidente recém-eleito da Ucrânia, Petro Poroshenko, decidiu aceitar negociar um acordo com os rebeldes, com a intermediação russa. Em 5 de setembro era assinado o primeiro Acordo de Minsk, que será cuidadosamente analisado no capítulo 8, dada a sua importância para entender a natureza do conflito e os
interesses das partes. A partir de então, serão inúmeros acordos de cessar-fogo entre as partes, nunca completamente cumpridos, até chegarmos à invasão russa de fevereiro de 2022.

Na mesma semana da assinatura deste primeiro acordo, a Economist cita um líder separatista:
“[…] à frente temos uma longa luta política e militar. O Estado rebelde da Novorossiya deve, no final, se estender por toda a costa do Mar Negro até a fronteira com a Romênia e a Moldávia, e, no final, passar a fazer parte da Rússia”.
“Novorossiya” (Nova Rússia em russo) é um conceito que remete a uma espécie de “herança russa” em áreas da Ucrânia que deveriam pertencer à Rússia. Em um programa de TV em abril de 2014, o próprio Vladimir Putin menciona este conceito:
“Relembro: aqui é Novorossiya. Kharkov, Luhansk, Donetsk, Kherson, Nikolayev e Odessa não faziam parte da Ucrânia durante o período czarista. Todos esses territórios foram doados à Ucrânia na década de 1920 pelo governo soviético. Por que [os soviéticos] fizeram isso, só Deus sabe.”
No mapa abaixo temos as províncias citadas por Putin (além da Crimeia) em vermelho. Os percentuais referem-se ao total de falantes russos em relação à população de cada província, de acordo com o censo de 2001. Putin não citou Dnipropetrovsk (província natal de Zelensky, ele próprio um falante russo), mas poderia muito bem fazê-lo, considerando o número de falantes russos.

Aqui temos, novamente, a menção a uma configuração territorial de mais de um século atrás para justificar a agressão a fronteiras reconhecidas pela própria Rússia em vários tratados e acordos muito mais recentes.
A invasão de 2022 e o referendo de anexação à Rússia
O próximo passo foi a invasão propriamente dita, iniciada em 24/02/2022. Ao contrário da ocupação da Crimeia e da tomada de poder, por parte dos separatistas, de parte da região do Donbas, que tiveram como claro motivo uma reação ao Euromaidan, não houve nenhum aparente catalisador para essa invasão, a não ser, provavelmente, a frustração de Putin com a falta de avanço na “independência” de Luhansk e Donetsk, prevista nos acordos de Minsk. Vamos discutir essa questão com mais profundidade no próximo capítulo. Por ora, vamos apenas colocar aqui o mapa mais atualizado da invasão russa. Neste mapa, as áreas em vermelho são aquelas já controladas pela Rússia antes da invasão, as de cor laranja são as áreas conquistadas e mantidas pela Rússia, e as em azul são as áreas que foram conquistadas pela Rússia, mas retomadas posteriormente pelo exército ucraniano. Hoje a Rússia controla partes das províncias de Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia e Kherson, e a totalidade da província da Crimeia.

Assim que iniciou a invasão, o Kremlin reconheceu a independência das Repúblicas Populares do Donestsk e Luhansk. Aqui, Putin lança mão do exemplo do Kosovo, que declarou sua independência em 2008 da Sérvia. Veremos em mais detalhe este caso no próximo capítulo, mas lembremos que a OTAN havia bombardeado Belgrado em 1999, e o governo sérvio finalmente entrou em um acordo de autonomia com a região. Em 2008 houve um passo além, com a independência plena e a criação de um novo Estado.
Como sempre, Putin faz paralelos espúrios para confundir a opinião pública. Em 1989, Belgrado havia abolido a ampla autonomia do Kosovo como província da Sérvia; dois anos depois, com a dissolução da Iugoslávia, o Kosovo perdeu seu status de entidade federal da Iugoslávia, com direitos semelhantes aos das seis outras repúblicas que formavam o país. Durante a década de 1990, as autoridades sérvias discriminaram consistentemente os kosovares, excluindo-os dos sistemas administrativo, de saúde e educacional da Sérvia. Em reação, os kosovares seguiram uma política de resistência pacífica por vários anos, antes que a falta de progresso levasse à formação do Exército de Libertação do Kosovo e a uma luta armada. Isso, por sua vez, levou as forças de segurança sérvias a conduzirem uma operação militar massiva contra os kosovares, com traços de limpeza étnica, o que provocou a reação da OTAN. No fim, uma força de ocupação da OTAN, aprovada pelo Conselho de Segurança com o voto da Rússia, estacionou no Kosovo, de modo a policiar a região e suportar uma eventual declaração de independência. Em 2010, a Corte Internacional de Justiça reconheceu o direito de independência do Kosovo.
Nada disso ocorreu com as províncias do Leste ucraniano. Os cidadãos de Donetsk e Luhansk (e da Crimeia, por falar nisso) tinham todos os direitos civis garantidos pelo governo de Kiev, inclusive o direito de usar o russo como língua oficial na região. Não havia nada parecido com uma “limpeza étnica”, apesar da retórica violenta de certos grupos nacionalistas ucranianos. Inclusive, essas regiões elegeram presidentes da República em 1991, 1994, 2010 (neste caso, derrubado pelo Euromaidan em 2014) e 2019, quando Zelensky teve amplo apoio nas províncias do Leste. Há, sem dúvida, uma divisão política, mas não supressão de direitos.
O mais curioso é que o Kremlin protestou contra a independência do Kosovo em 2008. 14 anos depois, Putin iria usar este mesmo caso para justificar a independência do Donbas.
Em setembro de 2022, os habitantes dessas províncias ocupadas pela Rússia foram chamados a votar em um referendo de anexação à Rússia. Foi uma mudança significativa de estratégia por parte do Kremlin. Até esta data, a influência russa se dava pelo apoio às populações russófonas dessas regiões, sem a intenção de anexação territorial, de modo a poder influir no país “hospedeiro” por via desses verdadeiros enclaves. Agora, temos a anexação pura e simples, contra qualquer regra internacional de respeito a fronteiras entre países.
Em 28/09/2022, a agência Tass, ligada ao Kremlin, anunciou os resultados do referendo. Sem surpresas, o resultado foi esmagadoramente a favor, conforme podemos observar na tabela abaixo:
O entusiasmo, refletido no amplo comparecimento às urnas, e o apoio à proposta de anexação chegam a ser emocionantes. O único problema é que esses números não são compatíveis com os números oficiais do governo ucraniano em relação à população dessas províncias. Vejamos.
Em primeiro lugar, vamos comparar o total de votantes com a população dessas províncias, de acordo com o Censo de 2022. (Este Censo não é exatamente uma contagem, baseia-se nos registros de nascimentos e mortes, mas provavelmente trata-se de uma boa aproximação. Uma discussão sobre a precisão desses números é feita na seção sobre a demografia da Ucrânia).
Chama a atenção a grande variabilidade do número de aptos a votar em relação ao total da população. O que seria um número razoável? Uma boa proxy é o referendo pela independência em 1991. A tabela abaixo mostra a população total segundo o Censo de 1989 e o número de pessoas aptas a votar no referendo, obtido do boletim final da votação:
Note como há uma uniformidade muito maior do % de aptos a votar em relação ao total da população.
As discrepâncias em relação ao referendo da anexação poderiam ser explicadas porque a população considerada pela Tass para calcular o total de aptos a votar não considera a província inteira, mas somente a parte ocupada. Neste caso, teríamos uma população menor do que aquela apontada pelo Censo de 2022. Sendo este o caso, o numerador (número de pessoas aptas a votar) seria menor, e o percentual de aptos a votar sobre a população seria também menor. Isso explica os percentuais baixos de Donetsk e Zaporizhzhia, mas deixa um mistério em relação a Luhansk e Kherson. Os percentuais de aptos a votar dessas duas províncias somente se explica se toda a província estivesse nas mãos dos separatistas, o que não é verdade.
Além do problema matemático, temos a questão, não menor, de um referendo sob a mira de fuzis. Como disse a Economist, em sua cobertura sobre esse referendo
“Quando o resultado de uma votação é anunciado como 99% para alguma coisa, você pode concluir que a cédula foi fraudada e os fraudadores querem que você saiba disso.”
Aliás, esse é o problema fundamental do Acordo de Minsk, a realização de eleições sem o mínimo de condições para a liberdade do voto. Voltaremos a este tema no capítulo 8.
Conclusão
Concluo esse capítulo com um trecho de uma matéria da Economist do longínquo 2004, nos idos da Revolução Laranja ucraniana.
“A verdade é que muitos russos nunca ficaram felizes com a própria noção de independência ucraniana. Os russos frequentemente olham para a Ucrânia como os ingleses veem a Escócia: como uma parte natural de seus domínios. A Ucrânia Oriental, de língua russa, era o coração das indústrias de carvão e aço da União Soviética. A Rússia moderna cresceu a partir da Rus de Kiev. A Crimeia era parte da Rússia até recentemente, em 1954, quando Khrushchev caprichosamente a transferiu para a Ucrânia. Não é nenhuma surpresa que não apenas os membros do governo de Vladimir Putin em Moscou, mas até mesmo muitos russos comuns, estejam irritados com o que é amplamente retratado como a “interferência” do Ocidente em seu próprio quintal — e com o risco de “perder a Ucrânia“.”
[…]“…a verdadeira razão pela qual o surgimento de uma verdadeira democracia na Ucrânia é uma ameaça a Putin é que ela estabelecerá um exemplo atraente para os aspirantes a democratas na Rússia também. Uma Ucrânia bem-sucedida e orientada para o Ocidente sob um governo democrático daria ânimo aos liberais da Rússia, que ficaram amargamente decepcionados com o governo cada vez mais autoritário e antiliberal de Putin.”
Muitos russos se sentem humilhados com o fim da grandeza representada pela antiga União Soviética e desconfiados com a influência da Europa cada vez mais para o Leste. A verdade é que, como diz a matéria da Economist, “não existe império russo com uma Ucrânia democrática”.
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