Quando causa e efeito não andam muito juntas…
Por força das circunstâncias ou do destino, fiz minha carreira em áreas que envolviam o conceito de crédito ou gerenciamento de risco. Nessa matéria, convivemos com um fenômeno que afeta outras situações da vida de modo equivalente: a consequência das decisões são deletérias, não podem ser visualizadas em tempo real ou no curto prazo. Essa característica costuma confundir um grande contingente de pessoas, desacostumadas à associação entre causa e efeito, quando o último acontece muito tempo depois da primeira.
Para boa parte dos eventos cotidianos ou mesmo no mundo corporativo, causa e efeito andam relativamente juntos. Em negócios de bem de consumo, o “fim” é a venda em si, para qual está associada a receita, sem futuras perdas ou efeitos colaterais. Vale o mesmo para a nossa vida estudantil, por exemplo, nosso esforço é recompensado em um período curto de tempo, com a nota do semestre ou de uma prova servindo como referência. Uma criança que se comporte mal terá sua reprimenda em tempo real dos pais. A associação entre causa e efeito em períodos relativamente curtos é de fácil compreensão e intuitiva, o estímulo para determinado comportamento é induzido pela sua recompensa ou punição, facilmente percebidas pela quase simultaneidade entre os dois momentos.
A conversa fica mais complexa quando os efeitos são deletérios e somente são observados muito tempo depois da causa. Esse “gap” temporal abre possibilidades ilimitadas para interpretações equivocadas da realidade, comportamento permissivo ou mesmo fraudulento.
Retomo agora com a analogia inicial do meu texto, em um negócio de crédito massificado, por exemplo, você “vende” muitos produtos de crédito em um determinado mês. A depender do prazo médio dessa venda, demora bastante até a inadimplência aparecer e contaminar o resultado. Nesse interim, o credor tem condições de renegociar as dívidas “arriscadas”, camuflando o inevitável calote. Esse processo tóxico pode levar meses ou anos até de fato vir à tona, provavelmente os gestores que o conceberam já não estarão lá para resolver o problema, outros que não tiveram nada a ver com sua concepção terão que “descascar o abacaxi”.
Se a recompensa para a tomada de decisões ou atingimento de metas ocorre em uma “janela de tempo” mais curta do que a “colheita” das consequências, teremos um incentivo perverso, pois quem toma a decisão não necessariamente visualiza o horizonte de longo prazo. No caso do mercado financeiro, há indicadores “precoces” capazes de indicar uma provável futura deterioração (muitas vezes imprevisível e causada por fatores externos alheios à qualidade da decisão) e a regulação dos bancos centrais, que monitoram as possíveis “pedaladas” e buscam criar mecanismos para proteger o sistema (antecipação de provisão para perdas). Mecanismos são criados para minimizar o possível dano de decisões erradas cujos efeitos ainda não foram observados. Mesmo com o registro de vários fracassos pelas mesmas razões ao longo da história e o conjunto de controles existentes, é usual observar organizações incidindo no mesmo erro, pois a tentação dos ganhos de curto prazo é grande e muitas vezes as recompensas estimulam os equívocos.
Na economia e em políticas públicas, o contexto é parecido. É improvável que a “colheita sobre decisões” ocorra rapidamente, quase sempre não será concomitante com o período de um mandato eleitoral. Nem preciso dizer o quanto isso torna a tarefa de diferenciar o ‘joio do trigo” muito mais complexa, tanto para o cidadão comum, desacostumado a fazer associações de longo prazo (às vezes até por uma limitação educacional), quanto para “especialistas” que nem sempre dominam o assunto e não raro precisam simplificar a complexidade para uma audiência ávida por explicações rápidas e simples, a famosa cultura da “manchetes e cortes”. Na outra ponta temos os políticos, que muitas vezes até tem noção do “imbróglio”, mas são recompensados no curto prazo e por isso não possuem qualquer motivação para resolvê-lo. A próxima eleição normalmente não perdoa medidas que exigem sacrifícios da população.
Seria tudo mais fácil se causa e efeito andassem juntas para tudo na vida, mas não é o caso. Muitas vezes, o efeito se dá no final do filme em que a causa foi o prólogo. A sequência de fotografias tiradas ao longo do roteiro não é capaz de associar as duas pontas.
Normalmente, um arcabouço de histórias recorrentes sobre as diferentes armadilhas desse “gap temporal” ajuda a prevenir os mais desavisados a entrar em uma canoa furada ou a aplaudir um “Titanic” na véspera do naufrágio. Em termos práticos, experiência e instituições sólidas são um potencial remédio para essas dores. No caso da primeira, é preciso que haja humildade para aprender com erros passados (de outros ou próprios) de modo a não repetí-los. No que diz respeito a instituições sólidas, somente o tempo, e muito dele, é capaz de construí-las.
Para quem ainda não percebeu, essa parte final do artigo diz respeito ao debate sobre o nível de gasto público no Brasil, cuja trajetória da dívida cresce de maneira descontrolada. Sem entrar no mérito técnico do tema, claramente temos aqui outro exemplo de desconexão entre causa (o gasto) e consequência, mas termino com uma provocação: por quanto tempo uma entidade qualquer (pessoa, empresa, estado) consegue viver normalmente gastando mais do que ganha? Qual a duração do filme até que experimentemos seu desfecho inevitável?
A complexidade de um assunto qualquer da vida é diretamente proporcional ao tempo em que o efeito está separado da causa. Assuntos complexos geram consensos mais difíceis, avaliações superficiais tomadas como verdade e costumam ser revisitados periodicamente com uma daquelas conclusões: ‘mas como não vimos isso antes?’
Com quas três décadas de janela vivenciando esse dilema, aprendi que a realidade, cedo ou tarde, cobra o preço das decisões erradas, mesmo quando tomadas há muito tempo e com seus efeitos sendo continuamente “procrastinados”. Uma hora a corda acaba roendo…
Victor,
Pertinente o seu texto logo após o artigo do Marcelo Guterman sobre a economia . A sua indagação faz todo o sentido: “por quanto tempo uma entidade qualquer (pessoa, empresa, estado) consegue viver normalmente gastando mais do que ganha? Qual a duração do filme até que experimentemos seu desfecho inevitável?”. Não vejo nossas elites empresariais, intelectuais, públicas e políticas preocupadas com o país e seu futuro, não há um propósito de existência que una o povo. E ainda penso, que talvez, pois não sou sociólogo, a formação do Brasil se deu por vários grupos distintos que não se uniram, por alguma razão, para construir um lar. “Só vieram explorar, retirar e não construir, desenvolver e ficar”. Talvez tenham vindo para essa Terra Abençoada para ficarem pouco tempo. De qualquer forma continuamos com o mesma “lenda-lenga” todos os anos, com todo o respeito, sobre gastos, quando a discussão, deveria ser, o que queremos ser. Aí teríamos um por quê, pois sem ele, o resto são discussões sem ver o todo, aí não há futuro que aconteça. Endividar-se, de fato, para construir é um sacrifício que vale a pena.
Outro ponto que chama a atenção no seu artigo são as análises superficiais e ganhos rápidos deixando para os outros as consequências das decisões mal-analisadas ou tomadas com má-fé. Vale para o governo como para as empresas. Hoje em dia, muitas delas, trabalham com um bônus agressivo de curto prazo. Se eu fosse o acionista acompanharia de perto algumas decisões de CEOs e VPs, pois são fortemente deletérias ao longo do tempo. Nem falarei do governo.
Finalmente, você traz um assunto que gosto bastante e é um tanto filosófico e pertinente. Tomar uma decisão esperando que o resultado futuro aconteça . Aqui se faz necessário um pouco de conhecimento de Estatística e Probabilidades, que apesar de toda a teoria, é construída sob um piso de areia. Não que não seja importante. Sou um estudioso do Taleb e gosto de estatística, mas nos tempos de hoje, com mudanças tão rápidas, algumas pessoas não gostam de parar para analisar os fatos, compara-los com o passado e futuro tentado fazer predições. O que vale são atitudes rápidas e superficiais. Àqueles que prezam por mais analises antes de tomarem uma decisão são tidos como “rodas presas”, embora minha experiência como executivo mostrou que agindo dessa maneira foi possível deixar legados sólidos e construtivos para as empresas, acionistas e clientes.
Agradeço seu texto e Bom 2025! Fique bem.
Grato por compartilhar. Vale para empresas, governos e meros mortais como nós. Tenha um otimo 2025, abs