Política

Israel e a ONU – Cap. 9: Jerusalém

Até a descoberta da América e o desenvolvimento das modernas técnicas de cartografia, os mapas-múndi circulares desenhados pelos povos cristãos tinham como centro geométrico as coordenadas de Jerusalém. Esse fato dá uma medida da enorme importância política e espiritual por eles atribuída ao palco histórico do drama da paixão, da morte e da ressurreição de Jesus Cristo. Do mesmo modo, os judeus consideram essa cidade milenar – que acolheu o Templo de Salomão e é a atual sede do governo israelense – o centro de sua vida espiritual e temporal, bem como o cenário do futuro advento do Messias e do fim dos tempos. Por sua vez, os muçulmanos acreditam que, durante sua ascensão celestial, Maomé visitou Jerusalém montado em seu cavalo alado, tornando-a um centro incontornável do culto islâmico.

Assim começa a apresentação do livro de Simon Sebag Montefiore, “Jerusalém – A Biografia”, de leitura obrigatória para quem quer entender a história da cidade que mais tem história no mundo. Local de acontecimentos transcendentais para as três maiores religiões monoteístas, Jerusalém não poderia deixar de ser o pomo da discórdia no conflito árabe-judeu.

resolução 181, de 29/11/1947, que definiu a partilha da Palestina, assim descreve o destino de Jerusalém:

A Cidade de Jerusalém será estabelecida como um corpus separatum sob um regime internacional especial e será administrada pelas Nações Unidas. O Conselho de Tutela será designado para desempenhar as responsabilidades da Autoridade Administradora em nome das Nações Unidas.

A ideia era realmente estabelecer uma espécie de terceiro país na região, ao lado dos Estados judeu e árabe. Tanto é assim, que a resolução prevê que

Todos os residentes tornar-se-ão ipso facto cidadãos da cidade de Jerusalém, a menos que optem pela cidadania do Estado do qual foram cidadãos ou, se forem árabes ou judeus, tenham apresentado notificação de intenção de se tornarem cidadãos do Estado árabe ou judeu, respectivamente, […]

Seria como uma espécie de Mônaco no coração do Oriente Médio.

A partir daí, as Nações Unidas batem cabeça para assumir o comando da cidade. A resolução 185, de 26/04/1948 (20 dias antes do fim do Mandato Britânico)

solicita ao Conselho Tutelar que estude, com o Poder Mandatário e os interessados, medidas adequadas à proteção de Jerusalém e dos seus habitantes, e que apresente no mais curto espaço de tempo propostas à Assembleia Geral nesse sentido.

E, no dia 06/05/1948, 9 dias antes do fim do Mandato Britânico, aprova a resolução 187, que

Recomenda que o Poder Mandatário nomeie, de acordo com a legislação palestina, antes de 15 de maio de 1948, um neutro aceitável tanto para árabes quanto para judeus, como Comissário Municipal Especial, que deverá, com a cooperação dos comitês comunitários já existentes em Jerusalém, desempenhar as funções até então realizadas pela Comissão Municipal.

É de se notar, portanto, que as Nações Unidas, como era de se esperar, dado o caráter burocrático inerente a esse tipo de associação, não conseguiu lidar a bom tempo com a questão de Jerusalém. Como afirmou o representante dos Estados Unidos nos debates durante a votação da resolução 187,

o governo dos Estados Unidos vem procurando um arranjo prático para Jerusalém, de modo a assegurar a continuidade, após 15 de maio (último dia do Mandato Britânico), do funcionamento dos serviços municipais, assim como a proteção dos direitos dos seus habitantes, o fornecimento adequado de comida e água e a provisão de policiamento adequado em Jerusalém.

Há, portanto, duas discussões que se confundem: uma é a proteção e o livre acesso aos lugares santos; outra é a vida dos cidadãos que moram em Jerusalém, e que poderiam ter o seu dia a dia afetado por um vácuo de governança. Foi exatamente isso o que aconteceu, e Israel e Jordânia tomaram o lugar das Nações Unidas nessa tarefa, levando consigo a tutela dos lugares santos.

Mas a Assembleia da ONU insiste no ponto. A resolução 303, de 9/12/1949, após, portanto, a Guerra da Independência e já sujeita às linhas do armistício,

reafirma a intenção da ONU de que Jerusalém seja colocada sob um regime internacional permanente, que deverá prever garantias adequadas para a proteção dos Lugares Santos, tanto dentro como fora de Jerusalém, e confirma especificamente as seguintes disposições da Resolução 181 da Assembleia Geral:

(1) a Cidade de Jerusalém será estabelecida como um corpus separatum sob um regime internacional especial e será administrada pelas Nações Unidas;

(2) o Conselho de Tutela será designado para desempenhar as responsabilidades da Autoridade de Administração…; e

(3) a Cidade de Jerusalém incluirá o atual município de Jerusalém mais as aldeias e cidades vizinhas.

Mapa de Jerusalém como corpus separatum, proposto na resolução 181, a da partilha da Palestina.

Essa resolução, já em 1949, receberá os votos negativos de Israel (em sua primeira votação na Assembleia Geral depois de ter se tornado membro) e dos Estados Unidos, dentre outros (essa resolução foi aprovada com 64% dos votos).

É interessante observar os argumentos usados por Israel para votar ‘não’. Basicamente, trata-se de respeitar uma realidade que se impõe. O seguinte trecho dos debates que antecederam a votação é esclarecedor:

Em vez disso, o que implicava o projeto de resolução apresentado à Assembleia Geral? Nada menos que uma tentativa de negar realidades inteiramente legítimas e inalteráveis, de conceber um acordo totalmente impossível de ser executado, de colocar as Nações Unidas num rumo que parecia fadado a terminar num fiasco, e de deixar os Lugares Santos sem provisão adequada.

O fato de a Nova Jerusalém ser uma cidade moderna, repleta de atividade econômica, cultural e política, e que já desempenhava um papel central e orientador na vida de Israel, foi completamente ignorado pelos autores do presente projeto de resolução. Foi tratado como uma abstração – uma mera sublimação de seu verdadeiro eu.

Israel, portanto, defende a manutenção do status quo após a Guerra da Independência. Lembra que

numa altura em que as Nações Unidas tinham o direito legal e a obrigação moral de assumir o controle da Cidade deixada pela Administração do Mandato cessante e de estabelecer ali a sua autoridade, não o conseguiram fazer de forma resoluta e irrevogável. Por votos recorrentes na Assembleia Geral e no Conselho de Tutela, recusou-se a assumir a tempo a responsabilidade que anteriormente tinha votado assumir. O vácuo resultante foi preenchido imediata e inevitavelmente pelo Estado de Israel. O Estado assumiu o lugar quando as Nações Unidas não cumpriram o seu mandato.

Nessa época, a Jordânia não era ainda membro das Nações Unidas, então não temos como saber o seu posicionamento. Mas seria estranho que os jordanianos votassem por abrir mão de um território conquistado, dentro de fronteiras determinadas por linhas de armistício amplamente aceitas. E não qualquer território! Um território que continha todos os principais lugares sagrados do Islã em Jerusalém, além de toda a Cidade Velha de Jerusalém, o que incluía os principais lugares sagrados do Judaísmo e do Cristianismo. As nações árabes votaram em peso pela internacionalização, mas não sabemos qual teria sido o voto da Jordânia.

Pode-se interpretar esse posicionamento de Israel como um “avanço tático” com o objetivo de, um dia, conquistar Jerusalém inteira, o que acabou ocorrendo na Guerra dos Seis Dias, 19 anos depois. Se Jerusalém tivesse sido internacionalizada, este avanço teria sido virtualmente impossível. Por outro lado, é também verdade que Jerusalém esteve à disposição das Nações Unidas desde a época da partilha (novembro de 1947), até o início da Guerra da Independência, em maio de 1948, e não houve, por parte do órgão supranacional, nenhum movimento nesse sentido junto ao Mandato Britânico à época. Houve, como disse o embaixador israelense, um vácuo de poder. E, como sabemos, todo vácuo será necessariamente preenchido. No caso, o foi por Israel e pela Jordânia.

Após a Guerra da Independência de Israel, a parte oeste de Jerusalém ficou sob administração de Israel, enquanto a parte oriental passou a fazer parte da Jordânia. Não havia, como já repetimos várias vezes ao longo destes capítulos, um “território palestino” que seria ocupado por Israel em 1967. Israel ocupou a parte oriental de Jerusalém tomando-a da Jordânia, não dos “palestinos”, apesar de haver árabes da Palestina vivendo lá. Mas não vamos colocar o carro adiante dos bois.

Entre 1949 e 1967, Jerusalém ficou assim, metade com Israel e metade com a Jordânia. Cabe destacar que os principais lugares sagrados para o Judaísmo, incluindo o Muro das Lamentações, estavam sob administração da Jordânia, que não permitia o acesso de judeus. No mapa abaixo, temos uma visão mais detalhada de Jerusalém:

Fonte: https://www.npr.org/sections/parallels/2018/05/13/610519266/understanding-the-map-of-jerusalem-or-trying-to

Observe como a linha verde (linha do armistício de 1949) contorna a parte azul, delimitando a área que passou a ser controlada por Israel a partir de 1949. Essa linha verde contorna a cidade velha de Jerusalém, não a incluindo, e que contém todos os lugares sagrados. Este mapa é de 2018, já incluindo os assentamentos israelenses em Jerusalém oriental.

Depois da resolução 303, de 9/12/1949, que repete a decisão de tornar Jerusalém um “corpus separatum” sob tutela da ONU, Jerusalém passa a ser um não assunto para a ONU até a Guerra dos Seis Dias, em junho de 1969. A resolução 2253, de 4/7/1967, contém a primeira citação a Jerusalém depois daquela de 1949. Esta resolução é a primeira que vai condenar Israel por ter tomado da Jordânia (e não dos “palestinos”) a parte oriental de Jerusalém. Esta resolução diz o seguinte:

A assembleia geral, profundamente preocupada com a situação que prevalece em Jerusalém como resultado das medidas tomadas por Israel para mudar o estatuto da cidade, 1. Considera que estas medidas são inválidas; 2. Exorta Israel a revogar todas as medidas já tomadas e a desistir imediatamente de tomar qualquer ação que possa alterar o estatuto de Jerusalém.

Esta resolução foi aprovada com 81% dos votos (um bom nível de aprovação), sem nenhum voto contra (Israel não votou e os Estados Unidos se abstiveram).

Quem leu essa resolução, leu todas a respeito de Jerusalém a partir de então. Há uma condenação generalizada e perene à tomada de Jerusalém oriental por parte de Israel. A última menção (até 2023) ocorre na resolução 78/78, de 7/12/2023, que diz o seguinte:

Recorda a afirmação do Conselho de Segurança, na sua resolução 2334 (2016), de que não reconhecerá quaisquer alterações às linhas de 4/6/1967, incluindo no que diz respeito a Jerusalém, para além das acordadas pelas partes através de negociações.

Pelo menos aqui se faz menção a “negociações”.

Antes de continuarmos, vale a pena ler um trecho da carta que o então chanceler de Israel enviou para o Secretário Geral da ONU em resposta à resolução 2253.

Como resultado da agressão lançada pelos Estados Árabes contra Israel em 1948, a área de Jerusalém onde estão concentrados os Lugares Santos foi governada durante dezenove anos por um regime que se recusou a dar o devido reconhecimento às preocupações religiosas universais. A cidade foi dividida por uma linha de demarcação militar. Casas de culto foram destruídas e profanadas em atos de vandalismo. Em vez de paz e segurança houve hostilidade e frequente derramamento de sangue. O princípio da liberdade de acesso aos Lugares Santos de todas as três religiões monoteístas foi violado no que diz respeito aos judeus, mas não apenas a eles. O Governo da Jordânia informou ao Comitê Político Ad Hoc nas 4ª e 5ª sessões da Assembleia Geral, em 6/12/1949 e 11/12/1950, que não concordaria com quaisquer disposições especiais para os Lugares Santos. […]

Em 5/6/1967, as forças jordanianas lançaram um ataque armado destrutivo e não provocado na parte de Jerusalém fora dos muros. Este ataque foi realizado apesar dos apelos de Israel à Jordânia para que se abstivesse de hostilidades. Dezenas de cidadãos de Jerusalém foram mortos e centenas ficaram feridos.

O bombardeio de artilharia foi dirigido contra sinagogas, a Igreja da Dormição, hospitais, centros de ensino secular e religioso, a Universidade Hebraica e o Museu de Israel. Fogo intenso foi dirigido contra instituições e centros residenciais de posições dentro e perto dos próprios Lugares Sagrados, que foram assim convertidos em posições militares para bombardear Jerusalém.

Desde 7 de Junho, toda a cidade de Jerusalém vive a paz e a unidade. Os Lugares Sagrados de todas as religiões têm sido abertos ao acesso daqueles que os consideram sagrados.

A resolução apresentada em 4 de julho pelo Paquistão e adotada na mesma data refere-se evidentemente a medidas tomadas pelo Governo de Israel em 27/6/1967. O termo “anexação” usado pelos defensores da resolução está fora do lugar. As medidas adotadas dizem respeito à integração de Jerusalém nas esferas administrativa e municipal e fornecem uma base jurídica para a proteção dos Lugares Santos em Jerusalém.

Obviamente trata-se de uma visão parcial, mas dá uma noção de como Israel vê a questão de Jerusalém. Aqui, vale dar uma parada e analisar a dinâmica da Guerra dos Seis Dias, pois esta dinâmica é fundamental para entender o ponto de vista das partes.

Como vimos no Capítulo 6, a Guerra dos Seis Dias tem como precedente a chamada “crise do Suez”, quando o governo de Gamal Abdel Nasser, do Egito, fechou o canal de Suez e o estreito de Tiran para a passagem de navios israelenses. Depois de uma breve guerra, o Egito é obrigado a reabrir as passagens. Forças da ONU foram deslocadas para a fronteira entre Israel e Egito, na península do Sinai.

Em maio de 1967, o Egito solicita a retirada dessas forças da ONU, e acumula tropas na fronteira com Israel. E é aí que mora a discussão. Israel toma a dianteira, e ataca a força aérea egípcia ainda em terra, dizimando-a. Tecnicamente, Israel foi quem iniciou a guerra, mas é como uma pessoa que atira no ladrão quando este ainda está do lado de fora da casa. Em princípio, o ladrão ainda não consumou o seu crime, mas poucos irão afirmar que não se tratou de legítima defesa. A lógica é que, dado o histórico de escaramuças, era mais do que esperado que o Egito tomasse a iniciativa, o que deixaria Israel em uma posição estratégica muito frágil.

De qualquer forma, os árabes dirão que foi Israel o agressor. Jordânia e Síria atacaram Israel em solidariedade ao Egito, em uma reedição da guerra de 1948. É a esta agressão que o chanceler de Israel se refere em sua carta. Israel havia advertido para que Jordânia e Síria não se metessem em sua guerra com o Egito, em vão. Em história não existe o “se”, mas não podemos descartar a hipótese de que, se a Jordânia não tivesse tomado a iniciativa da agressão, Jerusalém Oriental e a Cisjordânia ainda pertenceriam à Jordânia e não estaríamos conversando sobre um Estado palestino nesses territórios.

O fato é que a Jordânia atacou, perdeu, e Israel passou a ocupar a Cisjordânia e Jerusalém Oriental. A resolução 2253 e todas que as seguiram, são unânimes em condenar a “mudança de estatuto de Jerusalém” por parte de Israel. Esta “mudança de estatuto” é, em termos práticos, a anexação de Jerusalém Oriental ao território de Israel. O chanceler de Israel argumenta, em sua carta, que o termo “anexação” não é apropriado para o que Israel fez, mas pareceu a todos um jogo de palavras, razão pela qual a resolução teve um amplo apoio.

A questão é que, quando a linha de armistício manteve a cidade velha sob domínio da Jordânia, e esta expulsou todos os judeus da cidade e fechou o acesso aos judeus aos lugares santos, não houve nenhuma resolução da ONU que condenasse essa arbitrariedade. Em junho de 1967, foi a primeira vez que muitos judeus puderam chegar até o Muro das Lamentações, fechado desde 1949. Hoje, vale lembrar, a administração israelense garante aos árabes acesso aos seus lugares santos.

Também é fato que Israel não parecia dar importância ao status quo da cidade velha e dos Lugares Santos. Na resolução 619, de 21/12/1952, intitulada “Queixa de violação pelos Estados Árabes das suas obrigações nos termos da Carta, das resoluções das Nações Unidas e das disposições específicas dos acordos gerais de armistício celebrados com Israel, exigindo-lhes que desistam de políticas e práticas de hostilidade e que procurem um acordo por negociação para o estabelecimento de relações pacíficas com Israel”, Israel aborda a questão da má vontade dos árabes de negociar, mas não toca na questão de Jerusalém especificamente.

Entre 9/12/1949 (resolução 303) e 4/7/1967 (resolução 2253), nenhuma resolução da ONU sequer citou a palavra Jerusalém. Aparentemente, tínhamos uma aceitação implícita e recíproca do status quo. Israel ocupou e anexou Jerusalém Oriental após a Guerra dos Seis Dias, e não sabemos o que aconteceria se a Jordânia não houvesse atacado. De qualquer forma, não é de todo absurdo pensar que esse ataque da Jordânia foi bastante conveniente para Israel, pois lhe deu o álibi para tomar conta de Jerusalém inteira.

A partir de 1968, Jerusalém passa a ser um dos pomos da discórdia entre as partes. Israel não fazia questão de amaciar. Em 02/05/1968, Israel realiza um desfile militar na cidade, em comemoração aos 20 anos da independência, apesar de toda a reprovação internacional, consignada na resolução 250 do Conselho de Segurança, aprovada por unanimidade em 27/04/1968, que pede a Israel que evite fazer a parada militar. Em vão.

Alguns poucos dias depois, em 21/5/1968, o Conselho de Segurança irá aprovar, dessa vez com as abstenções de Estados Unidos e Canadá, a resolução 252, a primeira em que o CS

considera que todas as medidas e ações legislativas levadas a cabo por Israel, incluindo a expropriação de terras e propriedades, que tendem a mudar o status legal de Jerusalém são inválidas e não podem mudar o seu status.” (grifo meu).

A mesma condenação se repetirá na resolução 267, de 3/7/1969 (esta adotada por unanimidade, o que demonstra o grau de deterioração do apoio a Israel na questão de Jerusalém), na resolução 298, de 25/9/1971 e em todas as resoluções da Assembleia Geral daí em diante.

Esta “tendência” a mudar o status legal de Jerusalém se concretiza em 30/7/1980, quando o Knesset (o parlamento israelense) aprova a Lei Básica de Jerusalém, que estabelece a cidade como a capital oficial do país. O Conselho de Segurança da ONU, na resolução 478, de 20/8/1980,

censura nos mais fortes termos a promulgação por Israel da “lei básica” de Jerusalém e sua recusa em cumprir relevantes resoluções do Conselho de Segurança.

Além disso, essa resolução

solicita que todos os Estados que estabeleceram missões diplomáticas em Jerusalém que retirem essas missões da Cidade Sagrada”.

Os Estados Unidos foram os únicos que se abstiveram.

O interessante é que o Knesset já se encontrava na parte ocidental da cidade, o que tornava Jerusalém a capital de fato de Israel. Tanto é assim, que a cidade contava com várias embaixadas. Só não podia reconhecer “oficialmente”. A lei básica foi interpretada como uma anexação formal do restante da cidade, tornando-a indivisivelmente a capital de Israel. É o que se depreende de seu artigo 1º:

Jerusalém, completa e unida, é a capital de Israel”.

Em 15/12/1980, a resolução 35/169(E) da Assembleia Geral é a primeira que vai condenar a “Lei Básica” aprovada pelo Knesset:

Determina que todas as medidas e ações legislativas e administrativas tomadas por Israel, a Potência ocupante, que alteraram ou pretendem alterar o caráter e o status da Cidade Santa de Jerusalém e, em particular, a recente “Lei Básica” sobre Jerusalém e a proclamação de Jerusalém como capital de Israel, são nulas e sem efeito e devem ser rescindidas imediatamente.”

Esta resolução foi aprovada com 93% dos votos, uma aprovação bastante alta. A mesma resolução

Expressa a sua satisfação pela decisão tomada pelos Estados que responderam à resolução 478 (1980) do Conselho de Segurança e retiraram os seus representantes diplomáticos da Cidade Santa de Jerusalém.

Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Rep. Dominicana, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Holanda, Panamá, Uruguai e Venezuela mudaram suas embaixadas de Jerusalém para Tel Aviv, não restando nenhuma embaixada na cidade à época.

O primeiro grande movimento de retorno ocorreu em 2018, quando os Estados Unidos, no governo de Donald Trump, decidiram mover sua embaixada para Jerusalém. Foi seguido por Guatemala e Honduras, até o momento.

Fora da questão política, as escavações arqueológicas também foram objeto de condenação por parte da ONU. A primeira resolução sobre o assunto será a 36/15, de 28/10/1981, que diz o seguinte:

Expressando a sua grave preocupação pelo fato de Israel, como potência ocupante, persistir na escavação e transformação dos locais históricos, culturais e religiosos de Jerusalém,

Observando com alarme que as escavações e transformações em curso põem seriamente em perigo os locais históricos, culturais e religiosos de Jerusalém, bem como a sua configuração geral, e que esses locais nunca estiveram tão ameaçados como estão hoje.

Notando com satisfação e aprovação a decisão do Comitê do Patrimônio Mundial da UNESCO de incluir a Cidade Velha de Jerusalém e suas muralhas na lista do Patrimônio Mundial; Notando com apreço a recomendação do Conselho Executivo da UNESCO, [..], de que o Comitê do Patrimônio Mundial deveria acelerar o procedimento para incluir a Cidade Velha de Jerusalém e as suas muralhas na Lista de Patrimônio Mundial em Perigo.

Essa resolução foi aprovada com 73% dos votos.

Vou aqui dar um testemunho pessoal a esse respeito. Estive em Israel em 2015. Sempre digo aos meus amigos que Israel é a Disneylândia da arqueologia. O turista tem acesso a lugares, estruturas e objetos de centenas e até milhares de anos atrás, conservados e organizados de tal maneira que fica até difícil de acreditar que aquilo é a coisa real e não uma réplica. O cuidado que se observa é extremo, e fica difícil entender como a Assembleia Geral da ONU conseguiu classificar as escavações arqueológicas de Israel como uma “ameaça”.

Em uma das visitas, em um túnel debaixo do Muro das Lamentações, o guia contou-nos que, antes de 1967, a Jordânia não se interessava por escavar. Aquele túnel, por exemplo, não existia, o que não permitia ver detalhes do muro escondidos para quem está no nível da rua. Não havia interesse científico, o que não me surpreendeu. A partir de 1967, Israel começou a escavar Jerusalém para descobrir a própria história e, porque não dizer, a história da humanidade. Ser contra isso parece ser algo obscurantista, o que não me surpreende, dado o perfil médio dos países que formam a Assembleia Geral da ONU. Ou, talvez, essa picuinha teve origem na vontade de encontrar qualquer coisa que pudesse servir como condenação a Israel.

Essas resoluções condenando as escavações em Jerusalém irão se repetir até 1991.

O status atual de Jerusalém é uma salada. A ONU nunca revogou a resolução 181 no que se refere a Jerusalém e, portanto, oficialmente, considera Jerusalém um “corpus separatum” que deveria estar sob jurisdição internacional. Ao mesmo tempo, em muitas resoluções, essa mesma ONU considera a parte leste de Jerusalém como “território palestino ocupado”, o que não coaduna com o status de “corpus separatum”. Nos acordos de Oslo, Israel e OLP decidiram não decidir a respeito de Jerusalém, deixando o assunto mais para frente, quando fossem negociadas as condições finais de paz, o que nunca ocorreu. Na prática, Jerusalém é hoje uma cidade israelense no que se refere à administração municipal, mas somente Israel considera a cidade juridicamente como parte do Estado de Israel. Os Estados Unidos, ao mudar a sua embaixada para Jerusalém, sinalizou também nessa direção, mas nunca a oficializou.

O status final de Jerusalém somente será resolvido em definitivo quando houver termos de paz entre israelenses e árabes palestinos. Mas, em se tratando da Cidade Santa, o termo “definitivo” deve ser usado com parcimônia. Definitivamente, não há nada mais provisório do que acordos definitivos sobre Jerusalém. O que não deixa de ser irônico, dado tratar-se da cidade do planeta supostamente mais próxima da Verdade Absoluta.


Confira os artigos desta série:

1.       Visão geral das votações – o grau de alinhamento dos países a Israel

2.       O direito de regresso dos palestinos

3.       Os direitos inalienáveis dos palestinos

4.       A propaganda é a alma do negócio

5.       A UNRWA

6.       Israel, de amante da paz a pária internacional

7.       A condenação ao terrorismo

8.       A OLP e o Estado Palestino

9.       Jerusalém

10.   A busca pela paz

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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