Opinião

Afasta de ti esse Cálice.

Entre outras, com a estrofe abaixo, em Cálice, Chico Buarque criticava a Censura que havia no Brasil durante o Regime Militar que governou o país entre 1964 e 1984.

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado

Por conta de posições políticas, há quem tenha dificuldade de separar a obra de seu autor. Não é meu caso, admiro profundamente a obra de Chico Buarque, ainda que discorde diametralmente de suas posições políticas.

Na canção “Com açúcar, com afeto” com muita doçura e um olhar feminino, em um exercício puro de empatia, Chico Buarque ilustrou uma relação que seguramente espelha muitas outras da vida real.

“Com açúcar, com afeto
Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa

Qual o quê
Com seu terno mais bonito
Você sai, não acredito

Quando diz que não se atrasa
Você diz que é um operário
Sai em busca do salário
Pra poder me sustentar
Qual o quê

No caminho da oficina
Há um bar em cada esquina
Pra você comemorar
Sei lá o quê

Sei que alguém vai sentar junto
Você vai puxar assunto
Discutindo futebol
E ficar olhando as saias
De quem vive pelas praias
Coloridas pelo sol

Vem a noite e mais um copo
Sei que alegre ma non troppo
Você vai querer cantar
Na caixinha um novo amigo
Vai bater um samba antigo
Pra você rememorar

Quando a noite enfim lhe cansa
Você vem feito criança
Pra chorar o meu perdão
Qual o quê

Diz pra eu não ficar sentida
Diz que vai mudar de vida
Pra agradar meu coração
E ao lhe ver assim cansado
Maltrapilho e maltratado
Como vou me aborrecer?
Qual o quê

Logo vou esquentar seu prato
Dou um beijo em seu retrato
E abro os meus braços pra você”

Essa canção foi fruto de uma encomenda feita por Nara Leão, UMA MULHER, que queria emprestar sua voz, para cantar a história de UMA MULHER sofredora, segundo suas próprias palavras em depoimento dado por Chico Buarque no documentário “O canto livre de Nara Leão”.

Em depoimento Chico “confessa” a encomenda de Nara.

Ainda que submissa, refém de uma relação, a canção fala de uma mulher doce, generosa e apaixonada. Não se trata, portanto, de uma ode à submissão, mas à capacidade de amar. Não se trata de uma defesa e nem ao menos de uma justificativa sobre uma dinâmica interpessoal, não, trata-se de um retrato poético de uma manifestação de amor.

Toda obra artística (dentre outras tantas variáveis) é fruto de um contexto histórico. Além de manifestação da essência humana, de uma necessidade atávica, ancestral, do registro de nossa existência, algumas obras de arte são marcos de seu tempo, enquanto outras, no entanto, são atemporais.

A rica obra de Chico Buarque tem registros ligados a um tempo, assim como também repercute sentimentos que não são passíveis de serem datados, pois retratam as relações humanas.

Acusado de machismo, Chico “aposentou” a canção encomendada por Nara Leão e não mais a cantará em seus shows.

Não avanço aqui sobre quão pretensioso é um grupo qualquer querer representar “as mulheres”, mas é muito irônico que “feministas” (gente pretensamente de vanguarda) pretendam impor as mulheres como devem ser suas relações, como da mesma forma tenham conseguido aquilo que nem mesmo a Ditadura Militar foi capaz através da Censura, calar Chico Buarque.

“Finalmente” Chico é calado

Ainda que eu não confunda um artista e sua obra com seus posicionamentos políticos, era um mistério para mim que alguém tão brilhante em sua arte pudesse ser (a meu ver) tão politicamente equivocado como Chico Buarque.

Foi através de um texto de Leandro Narlock que esse “fenômeno” de genialidade artística e obtusidade política habitarem uma mesma pessoa passou a ser algo passível de compreensão.

Narloch aponta para o fato de que diferente de uma decisão que recaia 100% sobre si mesmo, a posição pessoal de Chico é irrelevante em um contexto maior que o pessoal, assim rever suas crenças, acaba sendo um exercício sem efeito prático. Não há incentivo para a mudança. (Veja no link abaixo).

https://veja.abril.com.br/coluna/cacador-de-mitos/chico-buarque-e-a-teoria-da-irracionalidade-racional/

Pessoalmente conveniente, a mecânica que faz Chico apoiar Lula, se negando a enxergar a realidade da atividade criminosa do ex-presidente, é a mesma que o faz censurar a si próprio fazendo eco a uma crítica absurda, mas para a qual parece não ter incentivo para não ceder. É cômodo ser simpático e sob a ótica de Chico parece não haver um bom motivo para não o ser.

Seguindo a mesma lógica a que Chico cede agora, é razoável se perguntar quanto tempo levará para que a linda canção “João e Maria” seja acusada por sua “masculinidade tóxica”, ou vítima de uma interpretação qualquer, “Construção” ser criticada como apologia ao suicídio?

Esse tipo de movimento de censura não é novo e pode se tornar apenas o prenúncio de uma tendência assustadora que deve nos impor profunda reflexão, especialmente pela pouca repercussão crítica que gera. Chama atenção a falta de destaque sobre o episódio nos meios de comunicação, ainda mais por terem a liberdade de expressão com matéria-prima.

Berlim, 10 de maio de 1933, UNIVERSITÁRIOS queimam livros na Opernplatz.


Quais outros artistas serão alvos da mesma perseguição? Que outras obras sofrerão esse tipo de ataque? Que outras canções serão “proibidas”? Que filmes serão apagados? Quais livros deverão ser queimados?

Numa mistura de perplexidade e medo, ao final deixo aqui meu apelo:

Olhos nos olhos quero ver o que você faz Chico. Apesar de você ter cedido a essa censura, afasta de ti esse Cálice. Ame essa canção como se fosse a última.”

Marcelo Porto

Gênio do truco, amante de poker, paraíba tagarela metido à besta, tudólogo confesso que insiste em opinar sobre o mundo ao meu redor. Atuando no mercado financeiro desde 1986, Marcelo Porto, 54, também é Administrador de Empresas e MBA em Mercado de Capitais.

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