Economia

Igualistão ou Crescimenistão: onde você gostaria de viver?

Este é o primeiro de dois posts sobre crescimento econômico. Neste primeiro, farei a defesa do crescimento econômico como estratégia principal para melhorar o padrão de vida dos mais pobres. No segundo, discorrerei sobre as condições necessárias para acelerar o crescimento econômico.

Estamos em uma era em que a distribuição de renda é o “zeitgeist” do debate econômico. A má distribuição das riquezas fere os espíritos mais sensíveis, e a falta de condições mínimas de subsistência de uma parcela significativa da população global clama por soluções.

Neste contexto, falar de crescimento econômico soa quase que como uma heresia. Delfim Netto, quando era ministro da Fazenda de Médici, cunhou a frase que resume o pensamento que hoje merece a fogueira: “é preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”. Esta frase veio em um contexto que nos é familiar: as críticas ao modelo econômico do Brasil (“o milagre econômico brasileiro” do início da década de 70), que deixava uma parcela significativa da população de fora dos benefícios do crescimento acelerado.

Se discutir crescimento econômico já era pouco simpático na década de 70, hoje temos o ambientalismo como o novo ingrediente que faz do crescimento econômico o grande vilão. Afinal, em um planeta à beira de uma catástrofe ecológica, com recursos cada vez mais escassos, o crescimento “a todo custo” ou “desordenado” trabalha para levar o mundo para o caos. Confesso que não consigo definir o que seja “a todo custo” ou “desordenado”, mas são adjetivos frequentemente encontrados em discursos para qualificar o crescimento econômico nocivo.

Por outro lado, os que defendem a primazia do crescimento econômico, afirmam que os mais pobres são também beneficiados no processo. Podemos resumir o raciocínio utilizando um exemplo fictício. Sejam dois países, o Igualistão e o Crescimenistão, ambos com o mesmo número de habitantes. O PIB do Igualistão é de 100 moedas, enquanto o PIB do Crescimenistão é de 300 moedas. Portanto, o PIB/capita do Crescimenistão é três vezes maior que o PIB/capita do Igualistão. No entanto, o índice de Gini do Igualistão é igual a zero, enquanto o índice de Gini do Crescimenistão é igual a 0,5.

O índice de Gini mede o grau de desigualdade de renda de um país. Gini igual a zero significa distribuição perfeita de renda. Ou seja, não existem mais ricos ou mais pobres, todos têm a mesma renda. Por outro lado, quanto mais próximo de 1 for o índice de Gini, mais desigual é a distribuição de renda. Um índice de 0,5 pode ser construído da seguinte forma: os 10% mais ricos da população possuem 55% da renda do país, enquanto os outros 90% da população vivem com os restantes 45% da renda do país, sendo que a renda desses 90% está igualmente distribuída. Ou seja, somente os 10% mais ricos ganham mais do que todos os outros.

Com essas informações, podemos facilmente calcular a renda da população do Igualistão e do Crescimenistão. No Igualistão, os 10% mais ricos têm renda equivalente a 10% da renda do país (10 moedas), os 10% seguintes também têm renda de 10% da renda do país (10 moedas), e assim por diante. Ou seja, todos os habitantes do Igualistão têm a mesma renda. Deste modo, no final somamos as 100 moedas, que é a renda total do país.

Já no Crescimenistão, os 10% mais ricos representam 55% da renda do país, que é de 300 moedas. Portanto, a renda dos 10% mais ricos soma 165 moedas. Já os 90% restantes têm renda de 145 moedas. Como todos ganham a mesma coisa, cada estrato de 10% ganha 15 moedas. Temos então que os 10% mais ricos ganham 165 moedas, os 10% seguintes ganham 15 moedas, os 10% seguintes também ganham 15 moedas, e assim por diante, até completar a renda total do país, que é de 300 moedas.

Note que os cidadãos mais ricos do Crescimenistão têm renda/capita 11 vezes maior que o restante da população. Uma bela desigualdade. No entanto, o país é tão mais rico, que os mais pobres do Crescimenistão são 50% mais ricos que os cidadãos do Igualistão (15 moedas contra 10 moedas). Em outras palavras, mesmo em um país desigual, os mais pobres podem ter qualidade de vida superior ao de países mais igualitários. Basta que sejam mais ricos.

Obviamente, o ideal seria que tivéssemos o melhor dos dois mundos: a renda do Crescimenistão combinada com a igualdade do Igualistão. É possível? Sim. Não só é possível, como é o que normalmente acontece. No gráfico a seguir, mostramos a relação entre índice de Gini e renda/capita (conceito PPP) de 144 países. (A fonte para o índice de Gini é o Banco Mundial e para a renda/capita é o FMI).

Observe como a linha de tendência é levemente decrescente. Ou seja, quanto maior a renda/capita, menor tende a ser o índice de Gini. Em outras palavras, os países mais ricos tendem também a ser mais igualitários. Uma notável exceção são os Estados Unidos, que têm um Gini muito alto se considerarmos sua renda/capita. Voltaremos a este ponto mais à frente.

Fosse para encontrar alguma correlação, poderíamos dizer que uma forma de aumentar a igualdade seria simplesmente enriquecer, dado que os países mais ricos tendem também a ser mais igualitários. No entanto, podemos observar que também países muito pobres possuem índices de Gini baixos. Ou seja, é possível ser pobre e igualitário também. Em outras palavras, aparentemente, a igualdade não tem a ver com o nível de renda do país para os países mais pobres.

Para tentar inferir quais outros fatores poderiam afetar a distribuição de renda, fiz o ranking dos países mais desiguais (Gini mais alto) e países mais igualitários (Gini mais baixo).

Observe que, entre os países mais igualitários, temos uma predominância de países do Leste Europeu, além da Escandinávia. Mesmo países com renda mediana, como Moldávia e Ucrânia, apresentam Gini muito baixo. Será que o sistema socialista criou, de fato, igualdade nesses países? Ou será que a homogeneidade de suas populações levou naturalmente a uma igualdade maior de renda? Difícil dizer, sem termos acesso a uma série histórica. Mas o ranking dos países mais desiguais nos dará insights mais interessantes.

Podemos observar que, dos 10 países mais desiguais, 8 se encontram na África e 2 na América Latina. Sim, o Brasil faz parte desse ranking. Observe que Brasil, Botswana e África do Sul possuem mais ou menos a mesma renda/capita da Moldávia e Ucrânia, mas uma desigualdade muito maior. Ou seja, a pobreza não explica a desigualdade.

Será que o processo de colonização e o histórico de escravidão levaram às grandes desigualdades na África e na América Latina? A escravidão como fator de desigualdade também explicaria o alto índice de Gini nos EUA, muito acima da média dos países mais ricos. Além disso, é um país que recebe muitos imigrantes, o que torna sua população mais heterogênea em termos de condições iniciais, pelo menos em um primeiro momento.

Se isto é verdade, a forma de diminuir as desigualdades é tornando a população mais homogênea do ponto de vista das suas condições iniciais. E a forma de fazer isso de maneira estrutural é através da capacitação da mão-de-obra e do fomento de instituições que permitam o emprego dessa mão-de-obra capacitada. Não adianta de nada formar mão-de-obra e dificultar a vida das empresas que poderiam empregá-la. A mão-de-obra formada irá vazar para o exterior.

Por outro lado, se a preocupação não for com a igualdade, mas com as condições de vida dos mais pobres, o crescimento econômico talvez seja uma solução mais adequada. Como vimos acima, os pobres do Crescimenistão vivem melhor que os pobres do Igualistão.

Vou além: em países como o Brasil, as políticas que visam melhorar as condições iniciais dos mais pobres e, assim, aumentar a homogeneidade da população, são sequestradas pelas elites em seu próprio benefício. As escolas são sequestradas pelas corporações de funcionários públicos, as faculdades atendem os filhos das elites, o sistema de aposentadorias (tanto privado quanto público) suga os poucos recursos que poderiam estar sendo investidos na melhoria das condições iniciais da população mais pobre, os incentivos fiscais atendem empresas que poderiam andar com as próprias pernas, etc, etc, etc.

Temos décadas de políticas empilhadas visando tirar o Brasil do vergonhoso ranking dos países mais desiguais do mundo. O último é o Fundeb permanente, que provavelmente será sequestrado para pagar salários dos professores sem relação com a eficiência do processo educativo. Desconfio que daqui a 20 anos vamos ainda fazer parte desse ranking.

Para países como o Brasil, sequestrado pelas elites, a forma mais eficaz de melhorar a vida dos mais pobres é enriquecendo. Focar na redução das desigualdades é insistir nas mesmas ações que fracassaram nas últimas décadas. Qualquer ação nesse sentido acaba beneficiando as elites em detrimento dos mais pobres. Sem contar que estas ações exigem uma carga tributária mais alta, que acaba por pesar justamente sobre os mais pobres, além de prejudicar o crescimento econômico potencial do país. Acabar com essa hipocrisia já seria um bom começo.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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3 Comentários

  1. Nem crescimento, nem igualdade de renda:

    – Renda per capita nao é riqueza nem bem estar, é uma média burra de PIB por habitante.
    Nos EUA, apenas tres pessoas (Gates, Bezos e Buffet) sao mais ricos que 50% de todos os norte-americanos.
    3/4 dos norte-americanos tem um saldo bancario de menos que 400 dolares e a aparente riqueza material esconde um endividamente brutal.
    Nao vou entrar na discussao se riqueza material é felicidade, mas recomendo os estudos do economista Eduardo Giannetti da Fonseca nesse tema.

    – Gini é outro indice burro que mede apenas a concentraçao de renda e nao a concentracao de oportunidades de acumular renda.
    Se vc imaginar a vida como uma corrida de 1.000m onde quem chega antes fica mais rico, no mundo real algumas pessoas largam 2km atras da linha de partida enquanto outros iniciam a 30 cm da linha de chegada.

    Se vc pesquisar sobre a antiga URSS, vai descobrir que o PIB per capita cresceu 7x e a desigualdade de renda diminui, nem por isso existe qquer pessoa sensata que isso como modelo de pais.

    Defender crescimento sem remover as barreiras de oportunidade é defender uma sociedade de castas.

  2. Apenas 2 modestos comentários:

    1) Geni vs Renda/capita: mesmo que esta correlação fosse estatisticamente significativa (não conseguimos saber apenas observando o gráfico, mas mesmo que fosse), o coeficiente de determinação (R2 ~0,15) é baixo. Desta forma, a associação entre os indicadores é pouco relevante para explicar o fenômeno crescimento econômico versus igualdade. Em outras palavras, garantir crescimento econômico por si só é pouco provável ou terá pouco impacto na questão de igualdade social. E isso por si só faz com que a análise seja limitada e viesada.

    2) A educação possivelmente esteja entre as estratégias para remover as barreiras de oportunidades e, ao longo do tempo, diminuir a desigualdade. Ao contrário do que o autor sugere de que as universidades sejam “sequestradas para as elites”, dados atuais demonstram que a maior parte dos estudantes de universidades públicas federais e estaduais atualmente sejam de alunos oriundos de escolas públicas. No passado, nossas universidades públicas atendiam elite, mas atualmente atendem principalmente estudantes oriundos de escola pública. Desta forma, hoje pode-se afirmar sem sombra de dúvidas que iniciou-se um processo de retirada/diminuição das barreiras de oportunidades e que as universidades públicas estão e estarão contribuindo para a diminuição das desigualdades (ao mesmo tempo que contribuirão para aumento de crescimento econômico).

    Em síntese, fortalecer a educação é o caminho para um crescimento econômico mais igualitário. Do contrário, não evoluiremos no quesito de igualdade social e continuaremos com um país em condição de servidão e domínio (uma forma sofisticada de Brasil Colônia e escravidão).

  3. Apenas dois modestos comentários:

    1) Geni vs Renda/per capita: mesmo que a correlação fosse estatisticamente significativa (não podemos determinar apenas observado o Gráfico, mas mesmo que fosse), o coeficiente de determinação é baixo (R2 ~0,15). Desta forma, a associação proposta é bastante limitada na explicação do fenômeno crescimento econômico e distribuição de renda. Isso significa que o crescimento econômico por si não contribui de forma expressiva na redução da desigualdade da distribuição de renda. Isso por si só faz com que a análise posta seja limitada e viesada.

    2) A educação possivelmente seja a ferramenta mais importante para remoção das desigualdades de oportunidade. Contrariamente ao que autor afirma de que as universidades são “sequestradas pelas elites”, na atualidade a maior parte dos alunos matriculados nas universidades públicas do Brasil são oriundos de escolas públicas. Assim, a observação do autor valia para um passado não muito distante, mas não representa mais a atualidade dos fatos (basta entrar nas páginas das universidades públicas e buscar os relatórios de perfil dos estudantes para confirmar minha afirmação de que são os alunos de escola pública que em sua maioria frequentam as universidades públicas atualmente).

    Em síntese, a diminuição da desigualdade de oportunidades pela educação é e sempre será o principal caminho de crescimento econômico com maior igualdade de distribuição de renda. Do contrario, continuaremos em uma condição de domínio e servidão (uma forma sofisticada de escravidão e moderna de Brasil Colônia).

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